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Terra de Golias predadores

OESP, Aliás, p. J12
Autor: HARDMAN, Francisco Foot
31 de Dez de 2006

Terra de Golias predadores

Francisco Foot Hardman

Há muito soou o alarme. Imagens tenebrosas do aquecimento global povoam todos os dias sites, canais de TV, revistas, jornais, documentários. Mas ainda se trata dos fatos e incidentes de forma isolada, como eventos aleatórios. Agora mesmo celebra-se a passagem de dois anos do tsunami no Sudeste asiático. A palavra foi universalizada, ganhou ares de metáfora no jornalismo econômico, nos cadernos de cultura, nas páginas de moda, na imprensa de fofoca. Tsunami adquiriu conotação positiva, ou seja, uma mudança imprevista mas bem-vinda na vida das pessoas. A Indonésia continua a ser, para muitos, a terra do desastre distante, mesmo se ainda não tenha terminado a contagem de seus mortos. Quase ausentes as análises articuladas, que vinculem catástrofes particulares ao problema global.

A terrível seca de 2005 na Amazônia parece ser outro exemplo dessa desarticulação. Mas cientistas sérios e compenetrados nos oferecem dados e imagens, quase diariamente, acerca do caos ambiental. Por mais concretos que sejam, o tema permanece pairando, em abstrato, como assunto longínquo no tempo e no espaço, espécie de ficção científica que não nos toca. No entanto, a velha dicotomia romântica campo X cidade, que segundo o historiador Raymond Williams terá sido das mais duradouras e produtivas oposições na cultura ocidental desde a era das revoluções industriais, já não é mais capaz de dar conta das paisagens infernais que nos circundam, em escala planetária. A explosão, há dias, de um oleoduto em Lagos, na Nigéria, apenas nos repõe diante do cotidiano inseguro e violento na maioria das metrópoles mundiais, especialmente nas mais pobres. A vida no campo passou a ser em muitos casos simulacro do caos urbano, sem seus atrativos. Praias e litorais são sinônimos de colapso no abastecimento, de multidões descascantes, da falsa euforia cervejeira, de águas impróprias. Os ricos buscam resorts, seus refúgios se parecendo cada vez mais com casamatas ou com mosteiros laicos feitos do exibicionismo de sua careza e, normalmente, feiúra. Vivemos nossas ditaduras da felicidade, em altissonantes e iluminadíssimos cenários, em efemérides espetaculosas (quem se lembra, por exemplo, para além da breguice desses desfiles de papais noéis gigantes, tanto maiores quanto a instituição financeira que os patrocina, de algum conto verdadeiro de Natal?), que se impõem em magnificência mercadológica em proporção inversa à crise moral das instituições, ao vazio das almas, ao sentimento do trabalho degradado e das energias gastas em vão, por imprestáveis ou, pior, devastadoras. A catadora de lixo e filósofa popular Estamira, do filme homônimo, reaparece em primeiro plano, com sua face de louca-lúcida, com sua frase-denúncia: somos o que restou do Grande Desperdício.

Temos atuado no mundo como espécie predadora "por natureza" e parece que nosso destino é o da auto-aniquilação. Talvez o que nos separe de nossos primos primatas não seja mesmo nenhum grau convincente de inteligência ou capacidade de linguagem, ou mesmo a habilidade na fabricação de instrumentos de trabalho. A linha divisória de nossas culturas - vale dizer, a de humanos iluministas, civilizados, tecnológicos - em relação às dos outros mamíferos é a perseverança, a disposição, o denodo com que continuamos, há séculos, a buscar, seja por guerra, saque, escravidão ou uso indiscriminado das fontes naturais de energia, nossa própria extinção. Incapazes de conviver pacificamente com a consciência da morte, aceleramos os relógios e corremos para ela, querendo fazer crer que essa atração irresistível para o desastre fatal possa ser bem justificada "em nome do progresso", das miragens do moderno.

Corremos atrás de Tio Sam e agora corremos atrás da Muralha da China. A ditadura da felicidade é outro nome para a ditadura do econômico. A China continua a fascinar os tecnocratas ocidentais: capitalismo desembestado com Estado autocrático, abençoado por Stalin e Mao, é a franquia com que todos sonhavam, pois lá o trabalho escravo ou semi-escravo da maior população de espoliados do planeta pode vingar sem susto. Quem ainda se ilude com este modelito, veja por favor Still Life, novo filme de Jia Zhang-Ke, em que a megaconstrução da maior hidrelétrica do mundo, a barragem das Três Gargantas, é representada no que produziu de trabalho compulsório, no deslocamento involuntário de populações inteiras, no dilaceramento das identidades pessoais e coletivas, no fim brusco de cidades e memórias. E, claro, na diluição generalizada das ideologias.

Fim de ano, o século 21 avança, sem utopias ao alcance de nossos sonhos. Poderíamos adiar por momento a passagem desta meia-noite e pensar no que o desenvolvimentismo a qualquer preço e o crescimento a todo vapor estão nos proporcionando, o que eles nos reservam em futuro próximo, a partir de qualquer prospecção medianamente realista. Mas pausas para reflexão saíram de moda há tanto tempo... Linguagens hoje são feitas para apropriação imediata de meios e projeção confiável de resultados. Devem ser rápidas. Narrativas são bem-vindas se apenas forem molduras práticas e palatáveis a projetos, de preferência repletos de estatísticas. Na impossibilidade de construir sentidos minimamente compartilháveis, subjugamo-nos ao império de números anônimos, à atração de gráficos em várias cores. Pedimos ao primeiro conferencista de plantão e à primeira mídia no ar que nos proporcione um tarô high-tec, com as taxas do crescimento sustentável, sem se dar conta do absurdo e da operação irracional embutidos nessa operação de "normalizar o contingente".

A ditadura do econômico é também a ditadura do projeto, que, quanto mais extravagante, melhor. Essa categoria migrou da engenharia para a economia com facilidade. Arquitetos e urbanistas muitas vezes a utilizam sem perceber a armadilha em que se podem enredar. Até na teoria literária, tem-se como anátema aquele escritor que não revele, desde o início, seu "projeto literário", conceito ambíguo, no mais das vezes construção ideológica do próprio crítico para autojustificar seu gosto estético, suas escolhas políticas ou, pior, sua adaptação ao jogo de valores da bolsa de sistemas teóricos.

Se pudéssemos de fato refletir em tempo adequado, não o raso do imediatismo, mas o fundo da posteridade geracional, veríamos que as políticas ambientais efetivas são as melhores estratégias desenvolvimentistas de que dispomos. Detentores, não se sabe até quando, de invejável patrimônio hídrico, vegetal, animal e mineral, seria de esperar, na cena internacional, maior presença e até liderança de nossa diplomacia nas instâncias e organismos gerenciadores do meio ambiente global. Mas para isso, claro, os tantos espaços vermelhos das labaredas que ainda desmatam grandes extensões de nossas coberturas vegetais (vide, por exemplo, as imagens atualizadas de queimadas do World Fire Atlas - WFA, da Agência Espacial Européia - ESA, disponíveis na internet) teriam que diminuir sensível e persistentemente. Em mais essa ocorrência trágica, passível de controle, nos igualamos ao continente africano. Ações de repressão e de prevenção têm sido feitas, com o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama à frente, mas são minúsculos gestos de Davi contra Golias hiperpredatórios, descendentes diretos de nossos colonizadores, muito bem organizados para assassinatos florestais, muitas vezes em consórcio com o agronegócio de tipo mais oportunista nas fronteiras do Norte e Centro-Oeste (onde a pecuária extensiva em ondas expansivas desmedidas é seu braço mais tentacular). A venda ilegal de madeiras no mercado nacional e internacional é uma das pontas dessa cadeia que alia crimes a negócios.

Vimos, em vários momentos recentes, a ministra Marina Silva e o presidente do Ibama, Marcus Barros, em investidas firmes contra "deflorestadores" contumazes. Também já se verificou que a questão das licenças ambientais longe está de ser entrave a projetos de rodovias, hidrelétricas e termoelétricas, cujos atrasos são muito mais atribuíveis à burocracia entre instâncias superpostas e à má gestão governamental e/ou empresarial. É preciso, no entanto, aumentar os recursos materiais e humanos da Pasta. A biografia da ex-seringueira e hoje ministra é sem dúvida motivo de orgulho nacional, muito para além de qualquer paixão partidária. Sua seriedade e carisma, ademais, têm conquistado audiências importantes, inclusive no plano internacional.

O conceito de sustentabilidade, que preside a política do Ministério do Meio Ambiente, sempre sujeito às análises críticas de cada processo em particular, não colide com a idéia de desenvolvimento e com imperativos de crescimento. Pensar nesses termos é reintroduzir um pensamento dualista e simplório ali onde a dialética tem lugar mais acertado. Não se pode, nem na microrregião, nem no plano nacional, nem no mundial, em se tratando de recursos naturais não renováveis, raciocinar sem os limites e possibilidades impostos pela situação a que o planeta foi conduzido. Isto é, considerados os níveis de consumo de energia e de uso de tecnologias agressivas ao ambiente pela população humana em sua escala atual.

Se a economia política continuar a ser feita por executivos urbanóides completamente alienados da questão ambiental global estamos feitos, ou seja: continuaremos na trilha da Gaia ao Caos, como as catástrofes climáticas presentes estão, de bom tempo para cá, sinalizando, cada vez de modo mais eloqüente. O aquecimento global não é mais conceito abstrato, é realidade sensível nos poros da pele, a cada dia, mês, ano. Nossas moças do tempo repetem, em performances monótonas, a elevação de temperaturas médias em todas as estações, continentes, países e Estados. E também o aumento do diferencial entre mínimas e máximas. Seriam curiosidades de almanaque, se não fosse o dramático sintoma que revelam.

Permito-me finalizar com um apelo ao presidente Lula. Presidente, você, que tem celebrado o Natal com os catadores de papel em São Paulo, fique em pensamento nesta passagem de ano, não só com o seu passageiro governo, mas com a vida das gerações que virão. Que tal uma virada, uma marca, não só na folhinha do novo calendário, mas na ação ecológica de longo prazo, esta sim digna do melhor espírito desenvolvimentista? Assim como Gilberto Gil tem sido das melhores surpresas nas políticas culturais do País, creio qu a manutenção e revalorização das políticas ambientalistas capitaneadas por Marina Silva, pelo diálogo crítico e criativo que poderá oferecer com a chamada "área econômica", é a melhor estratégia de quem não pretende fazer do crescimento mero rito numérico, mero mito infernal. E sei que parcela ponderável da sociedade brasileira também pensa assim.

Francisco Foot Hardman é professor titular de Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp

OESP, 31/12/2006, Aliás, p. J12

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