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Comunidades tradicionais: a singularidade da atuação defensorial, a interação com política de estado

Fórum DPU (Defensoria Pública da União) n. 7, p. 7-8
Autor: COUTO, Estêvão Ferreira
31 de Dez de 2016

Comunidades tradicionais: a singularidade da atuação defensorial, a interação com política de estado

Por Estêvão Ferreira Couto - Defensor Regional de Direitos Humanos em Minas Gerais

A atuação em Ofício de DHTC (hoje DRDH), a partir de 2012, trouxe a minha atenção, inter alia, para a assistência jurídica a comunidades tradicionais, principalmente quilombolas, junto a dois grandes conflitos envolvendo a ocupação parcial de Parques Nacionais (um desses casos resultou em ação civil pública que deu origem ao projeto divulgado no site projetocanastra.com.br).
O caso a seguir ilustra um aspecto dessa atuação. No Estado de Minas Gerais, com quase 590 mil quilômetros quadrados, premido pela falta de condições materiais e humanas para atender a todas as demandas que me eram/são apresentadas, tendo sido procurado por um representante de comunidade quilombola do interior e ciente de que já havia um Inquérito Civil Público aberto há mais tempo sobre o mesmo assunto, fiz contato institucional com o Procurador da República que estava in loco, colocando-me à disposição para atuar em parceria, especialmente em situações em que a abordagem diferenciada da Defensoria poderia agregar qualidade à assistência jurídica.
Como resposta, recebi uma comunicação, datada de julho de 2014, que ostentava o seguinte último parágrafo: "Vale destacar, que o perfil traçado pela Constituição Federal de 1988 (artigos 127 e 129) nitidamente priorizou a defesa das comunidades remanescentes de quilombos, ao Ministério Público, incumbindo a ele a defesa dos interesses sociais, individuais indisponíveis e do patrimônio público e social das comunidades quilombolas" (sic).
As inovações da estrutura jurídico-formal da Defensoria Pública dos últimos dez anos, desconhecidas do nobre membro do Parquet, que culminaram na Emenda Constitucional n 1o 80/2014, lançaram luz sobre uma atuação - não somente das Defensorias, mas também de outros legitimados coletivos - que, aos olhos apressados, parecia ser exclusiva do Ministério Público.
A ânsia corporativista do MP em proteger "seu espaço" é completamente despropositada, pois as tutelas coletivas da Defensoria e do Ministério Público nesse assunto trabalham com ênfases distintas, embora mutuamente complementares, em benefício das comunidades defendidas, o que vem a ressaltar o acerto da decisão do STF de afastar qualquer dúvida quanto à legitimidade ativa defensorial em matéria coletiva.
Os dispositivos constitucionais específicos que protegem comunidades indígenas e quilombolas (arts. 231 e 232 da Constituição, e art. 68 do ADCT) estão imersos no "caldo" dos arts. 215, 216 e 216-A da Carta Magna, que fornece pelo menos uma baliza conceituai e normativa importante: o patrimônio cultural brasileiro ombreia indivíduos, grupos, povos e comunidades que geram, mantêm, perpetuam e desenvolvem esse patrimônio.
O patrimônio material, expresso em objetos, bens, sítios, áreas, terras, marcos, símbolos, fortalece e impede o desaparecimento da identidade dos indivíduos e grupos que, por sua vez, guardam, revivem, renovam e transformam as referências materiais e imateriais, dando à nação um sentido de unidade (nos pontos de partida da trajetória histórica) e de relevante diversidade (dos modos de vida em uma sociedade geográfica e culturalmente extensa e, portanto, necessariamente plural).
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) vem complementar e reforçar esses dispositivos constitucionais, assegurando o protagonismo das comunidades na defesa dos seus direitos e afastando qualquer caracterização das comunidades como objetos. Os grupos tradicionais são sujeitos que podem e devem participar ativamente das definições sobre seus direitos e territórios.
O Ministério Público tende a enfatizar os aspectos relacionados ao patrimônio público e à ordem jurídica. A Defensoria Pública propende a focalizar no imprescindível protagonismo das comunidades que, dentro dos limites das normas constitucionais e internacionais, precisam ser senhoras de seus destinos. O adversário, na maioria das vezes, é o Poder Público que, por ação ou omissão, burocratiza e frustra a concretização de direitos e que, frequentemente, posiciona o ser humano hipossuficiente como última prioridade da política pública, bem atrás dos interesses econômicos e fiscais que incidem sobre a situação.
O filme-documentário Vozes da Resistência: os quilombos urbanos de Belo Horizonte, lançado no final do ano passado e disponível na Biblioteca da DPU (e, mediante pedido, na unidade da DPU em Minas Gerais), procura apresentar essa perspectiva defensorial, iluminando as possibilidades de que as comunidades participem ativamente da efetivação de seus direitos e das definições sobre seus territórios, diante da omissão e da lentidão da máquina pública em cumprir com suas obrigações. Se os quilombolas são vistos como sujeitos, as possibilidades de participação aumentam. Ao contrário, se eles constituem apenas um "patrimônio", as possibilidades diminuem.
A ênfase da Defensoria aponta igualmente para a constatação de que o direito das comunidades tradicionais, no ordenamento jurídico brasileiro, se sobrepõe às normas ambientais stricto sensu. Não é uma sobreposição para destruir ou eliminar, mas sim para relembrar que o componente humano, principalmente daqueles mais necessitados, faz parte, está ou pode ser conciliado com o meio ambiente. A DPU ainda está apenas "arranhando a superfície" dos conflitos envolvendo comunidades tradicionais e Unidades de Conservação (UCs) federais criadas a partir de "voos de helicóptero". Tem, ademais, um longo caminho a percorrer na defesa dos tradicionais/ribeirinhos que ocupam as margens de rios federais (art. 20, III, da Constituição).
Isso para citar apenas dois tópicos que compõem a matéria.
Os desafios são grandes: a lentidão da máquina administrativa federal que lida com comunidades quilombolas e indígenas; a ausência de especialidade das estruturas governamentais que tratam das outras comunidades tradicionais (a meu ver, fracassou o modelo do governo anterior, em que Secretaria de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR) e Secretaria de Direitos Humanos (SDH) eram somente "facilitadores" internos); o radicalismo de certos órgãos ambientais que parecem querer "passar uma borracha" nas realidades humanas; a insegurança jurídica diante do julgamento inconcluso da ADI no 3.239 e do precedente da PET n o 3388 (cuja "força moral e persuasiva" foi expressamente destacada pela Suprema Corte, embora negado seu caráter vinculante); a insegurança política quanto à continuidade de determinadas políticas públicas voltadas para as comunidades tradicionais, aliada à alteração das estruturas governativas de 1o. escalão que, até então, eram responsáveis pelo tema; o estabelecimento de um teto para os gastos públicos que pode comprometer os dispêndios esperados, embora seja importante relembrar que a eficiência e a efetividade das políticas públicas relacionadas já era, no governo anterior, mais um discurso do que uma prática (cf. por exemplo a série produzida pelo site www.socioambiental.org/pt-br/noticiassocioambientais/o-que-o-gover- no-dilma-fez-e-nao-fez-do-territorio- veja-toda-a-serie).
De qualquer maneira, deve ser frisado que as comunidades tradicionais são um assunto de Estado, não de Governo. Nessa linha, a continuidade das políticas públicas relacionadas, no meu entender, está protegida por normas constitucionais e por normais internacionais de direitos humanos incorporadas ao ordenamento jurídico interno e, como tal, a DPU deve funcionar como instrumento de sustentação de tal continuidade e como barreira que impeça o retrocesso.

Fórum DPU n. 7, p. 7-8

http://www.dpu.def.br/esdpu/jornaldpu/7-edicao

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