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Sinais preocupantes

O Globo, Opinião, p. 21
Autor: PIOVESAN, Flávia; RIOS, Aurélio Veiga
06 de Set de 2012

Sinais preocupantes

Flávia Piovesan e Aurélio Veiga Rios

Em 13 de agosto último, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em decisão unânime de sua 5ª Turma, reconheceu que não houve a necessária audiência prévia das comunidades indígenas afetadas no processo de licenciamento ambiental para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A Corte decidiu que a violação ao direito de consulta prévia dos povos tradicionais implica afronta à Constituição e à Convenção 169 da OIT ratificada pelo Brasil. O comando constitucional é expresso ao consagrar que "o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos (...), em terras indígenas só pode ser efetivado com autorização do Congresso, ouvidas as comunidades afetadas" (art. 231). Esta exigência também é prevista pela Convenção 169 da OIT, que demanda a consulta prévia às comunidades indígenas afetadas "antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de exploração dos recursos existentes em suas terras" (art. 15). Além de inconstitucional, a inexistência de audiência prévia constitui um ilícito internacional.
Argumentou a decisão que a referida usina "encontra-se inserida na Amazônia Legal e sua instalação causará interferência direta no mínimo existencial ecológico de comunidades indígenas, com reflexos negativos e irreversíveis para a sua sadia qualidade de vida e patrimônio cultural em suas terras imemoriais e tradicionalmente ocupadas". Em nome dos princípios do desenvolvimento sustentável, da precaução e da prevenção, enfatizou que a inexistência de audiência pública resultaria na nulidade da autorização concedida.
Ainda que venha a ser suspensa tal decisão pelo STF, a Comissão Interamericana (OEA) já havia se utilizado da mesma argumentação para decidir pela suspensão das obras de Belo Monte, em abril de 2011.
Ao acolher denúncia submetida pelo Movimento Xingu Vivo para Sempre e por outras 40 entidades, a Comissão da OEA solicitou ao Brasil a adoção de medidas urgentes para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, recomendando a imediata suspensão do processo de licenciamento da usina, até que fossem observadas condições mínimas, como a consulta prévia, livre e informada com as comunidades afetadas. Determinou, ainda, fosse assegurado o amplo acesso ao estudo de impacto socioambiental do projeto, já que no local há 30 terras indígenas com 24 povos e línguas diferentes.
O Estado brasileiro qualificou a decisão da Comissão Interamericana como "precipitada e injustificável". Como retaliação, o Brasil retirou seu embaixador junto à OEA, decidiu não pagar sua quota por meses, desistiu da candidatura de um membro brasileiro para a Comissão e deflagrou um processo voltado ao "fortalecimento do sistema interamericano" (com fortes inclinações para limitar sua capacidade de agir). Isto tem encorajado posições ainda mais extremas, sobretudo de Equador e Venezuela, recentemente questionados em casos de direitos políticos e liberdade de expressão. Diversamente da Venezuela - que tem atacado com agressividade o sistema interamericano, recusando-se a cumprir suas decisões quando lhe são desfavoráveis -, o Brasil, até o caso Belo Monte, assumia uma postura orientada pelo respeito ao multilateralismo, com a implementação das decisões internacionais, honrando os princípios da boa-fé e da prevalência dos direitos humanos.
Neste preocupante contexto, soma-se o polêmico ingresso da Venezuela no Mercosul, em direta afronta ao tratado de Assunção, que condiciona a admissão de um novo membro à decisão unânime dos membros fundadores, bem como aos Protocolos de Ouro Preto e de Ushuaia concernentes à cláusula democrática. Na época, não houve o aval do Paraguai, que agora posiciona-se contrariamente à adesão da Venezuela por deliberação de seu Senado.
O estado de direito não pode restar comprometido pela vontade unilateral de Estados, que só aceitam as decisões internacionais que lhes forem favoráveis e que subordinam o respeito às regras jurídicas a juízos de conveniência política.
Na qualidade de ator global, com crescentes responsabilidades internacionais, aguarda-se do Brasil o pleno e o absoluto respeito às normas internacionais, endossando a credibilidade das organizações internacionais e fortalecendo o multilateralismo, em defesa da democracia, dos direitos humanos e do estado de direito.

Flávia Piovesan é professora da PUC-SP e procuradora do Estado de São Paulo
Aurélio Veiga Rios é procurador federal dos Direitos do Cidadão

O Globo, 06/09/2012, Opinião, p. 21

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