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Sigilo prevalece no meio ambiente?

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
03 de Nov de 2006

Sigilo prevalece no meio ambiente?

Washington Novaes

Dois episódios recentes no Brasil puseram em foco um tema pouco habitual na comunicação, mas nem por isso menos importante: a relação entre informação e meio ambiente. No primeiro deles, concedeu-se no Sul do País licença para implantar uma hidrelétrica, quando o respectivo estudo de impacto ambiental ocultava que o reservatório inundaria milhares de hectares de floresta de araucárias que deveriam ser protegidos. No segundo, um respeitado cientista, depois de anos de negociação, conseguiu fechar um acordo com 13 aldeias de um mesmo grupo indígena, para ali pesquisar conhecimentos a respeito de determinada planta, que poderiam levar à produção de um medicamento novo e importante; quando tudo parecia acertado, três outras aldeias vetaram o acordo, que se inviabilizou. No primeiro caso, discutiu-se muito o que fazer, dado o fato consumado do fechamento das comportas da barragem e da inundação da área de araucárias. No segundo, pesquisadores inconformados não aceitavam que grupos minoritários de uma etnia pudessem impedir o 'avanço da ciência', contrapondo ao desejo da pesquisa seu direito - numa sociedade em que ninguém pode dar ordens a ninguém - de não concordar com essa atividade, que se basearia num conhecimento social, de todos.

Dois livros também recentes - Direito à Informação e Meio Ambiente, do professor Paulo Affonso Leme Machado (Malheiros Editora, 2006), e Socioambientalismo e Novos Direitos - proteção jurídica à diversidade biológica e cultural, da promotora de Justiça Juliana Santilli (Editora Peirópolis, Instituto SocioAmbiental e Instituto Internacional de Educação do Brasil, 2005) - suscitam importantes discussões em torno dos dois temas.

Respeitado no País e fora, com vários livros publicados na área do Direito Ambiental, o professor Leme Machado vem agora discutir, entre vários temas, uma hipótese jurídica: se o interesse social pela informação sobre meio ambiente pode prevalecer sobre o segredo empresarial. E em que circunstâncias. Isso significa discutir se a informação deve ser ou não mantida secreta; se deve ser comunicada a todos, e não a um só grupo; e que normas devem ser observadas na divulgação, para respeitar determinados valores.

Tema difícil e complexo, que exigiu do autor longa viagem pela legislação constitucional e ambiental de muitos países, às convenções e aos tratados internacionais, aos princípios constitucionais e ao acervo legislativo brasileiros. Porque 'a democracia', diz ele, 'nasce e vive na possibilidade de informar-se. O desinformado é um mutilado cívico. Haverá uma falha no sistema democrático se uns cidadãos puderem dispor de mais informação que outros sobre um assunto que todos têm o mesmo interesse de conhecer, debater e deliberar'.

É um terreno vital, porque exatamente do sigilo indevido podem nascer os privilégios (econômicos, políticos), como pode ser favorecida a corrupção. Nos negócios públicos, principalmente, tudo deveria vir à luz, para que a sociedade possa informar-se, exigir, cobrar, não aceitar. Mas também nos negócios privados há limites para o sigilo.

No fundo, sempre a mesma pergunta: a quem pertence a informação?

'A possibilidade de livre acesso a qualquer dado ou fato ocorrido em espaço público não permite que a informação possa ser propriedade somente dos que já estão informados, quaisquer que sejam eles', diz o jurista. 'Os comunicadores sociais não podem reter em seu poder as informações de interesse geral. Os profissionais da comunicação fazem a ligação entre a fonte da notícia e seus destinatários, mas ninguém pode transformar-se em proprietário dessa informação.' O sigilo, portanto, 'só se pode conceder quando ele não contrarie o interesse social e nem possa prejudicar a saúde humana e o meio ambiente'.

Já o livro da promotora Juliana Santilli examina 'a influência do socioambientalismo sobre o sistema jurídico constitucional e infraconstitucional - nos terrenos da cultura, do meio ambiente, dos povos indígenas e quilombolas', assim como a função social da propriedade. E, com sua experiência no Núcleo de Direitos Indígenas e no Instituto Socioambiental, aliada agora à vivência na área do Direito, a autora se detém na aguda questão dos direitos dos povos indígenas e quilombolas na área da conservação e utilização da biodiversidade - terreno complexo, que vem levando a discussões acirradas entre cientistas, ambientalistas e representantes dos povos tradicionais. Não apenas no Brasil. Tanto que na reunião da Convenção da Biodiversidade este ano, em Curitiba, não se conseguiu avançar nessa área. Essencialmente porque não se chega a acordo entre cientistas, que se julgam prejudicados em seu direito de pesquisar, e povos tradicionais, que temem a apropriação de seus conhecimentos e a biopirataria. Às vezes, dizem esses povos, bastam três ou quatro palavras para abrir as portas a um conhecimento muito valioso; basta dizer 'tal planta serve para tratar tal doença'. Essa informação pode ser valiosa não apenas em termos científicos, mas também comerciais.

'Um dos pilares fundamentais do regime jurídico sui generis a ser construído', pensa Juliana Santilli, 'deve ser o reconhecimento da titularidade coletiva dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais sobre os direitos intelectuais associados aos seus conhecimentos tradicionais, por se reportarem a uma identidade cultural coletiva e a usos, costumes e tradições coletivamente desenvolvidos, reproduzidos e compartilhados.'

Levados ao centro do debate, os dois livros poderão dar contribuição decisiva para o avanço de temas muito pouco discutidos.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 03/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

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