VOLTAR

Proposta que ameaça o licenciamento ambiental volta à pauta do Congresso

Galileu - https://revistagalileu.globo.com
16 de Fev de 2018

Proposta que ameaça o licenciamento ambiental volta à pauta do Congresso

Entenda como funciona e a quem interessa o fim do licenciamento ambiental no Brasil

16/02/2018 - 12H02/ atualizado 12H0202 / por Felipe Floresti

Movimentos por moradia e ambientalistas estão em pé de guerra no extremo sul de São Paulo. Tudo por causa de um terreno de 8,3 hectares na margem do maior reservatório de água da região metropolitana, a represa Billings. A disputa entre os que lutam pela construção de um residencial para milhares de pessoas e quem deseja proteger o terreno batizado de Parque dos Búfalos, porém, só existe graças à anuência da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), que dispensou a necessidade de estudos técnicos aprofundados, e diariamente prédios surgem sem que seus impactos sejam levados em consideração.

Para ser construído em qualquer lugar do Brasil, todo empreendimento precisa passar por um processo chamado licenciamento ambiental. O empreendimento contrata uma empresa privada para a realização dos estudos solicitados pelo órgão licenciador, que o analisa e decide pela liberação da obra e possíveis alterações no projeto. Essa etapa serve não apenas para barrar projetos inviáveis como também para que sejam levantadas alternativas que evitem ou minimizem os impactos socioambientais da obra. Dentre as avaliações, a mais completa é o Estudo de Impacto Ambiental, que é a condição básica para o licenciamento em casos de efetivo impacto ambiental. Ou pelo menos deveria ser.

No caso da represa Billings, o Residencial Espanha foi planejado para abrigar até 20 mil pessoas nos seus 193 prédios. É mais do que a população de 72% dos municípios brasileiros - isso em uma região já superpovoada e que é uma das últimas áreas verdes à beira da represa na cidade. Nem as 18 nascentes que escorrem por lá serviram para que o órgão licenciador, no caso a Cetesb, desistisse de substituir o Estudo de Impacto Ambiental por outro relatório mais simples.

À pedido dos moradores vizinhos, que há anos utilizavam a área como espaço de esporte, lazer e rituais religiosos, o Ministério Público passou a acompanhar o caso. A conclusão foi clara: o relatório se mostrou "notoriamente insuficiente no sentido de se obter um diagnóstico minimamente fidedigno". Quatro nascentes foram omitidas e a localização de uma delas foi adulterada. Com pouco tempo de observação, nem mesmo os animais foram considerados. Sobrou até para as corujas-buraqueiras, que sumiram no documento oficial.

No fim, até os limites descritos no próprio projeto foram desrespeitados - a construção avançou sobre o pedacinho do terreno que deveria ser preservado. "O diagnóstico fraco e falho serviu para viabilizar um megaempreendimento inviável ambientalmente", concluiu o Ministério Público.

O conflito poderia ter sido evitado. O movimento em defesa do parque chegou até a indicar outras sete áreas na região mais adequadas para receber o residencial, mas foi ignorado. O atropelo das normas, no entanto, não é privilégio de São Paulo - a Cetesb inclusive é apontada com frequência como um dos mais bem estruturados órgãos ambientais do país.

"O governador Geraldo Alckmin disse outro dia que o atraso nas obras do metrô era devido a 'empecilhos ambientais'", diz Luis Enrique Sánchez, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e membro da Associação Internacional para Avaliação de Impacto.

"Tenho certeza de que a maioria dos governantes pensa da mesma forma. O meio ambiente, a licença, é visto como um problema." Não é difícil entender os motivos. Moradia rende mais votos que nascentes. Logo, natureza e licença ambiental viram "empecilhos". Não à toa, o governo discute a criação da Lei Geral do Licenciamento.

JOGO DE INTERESSES

Como em um passe de mágica, uma floresta com o tamanho de mais de 8 mil de campos de futebol de área ficou invisível. Pelo menos aos olhos da Engevix Engenharia, responsável pela elaboração do Estudo de Impacto Ambiental para a construção da hidrelétrica de Barra Grande, no Rio Pelotas, divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Não era uma floresta qualquer. A araucária, ameaçada de extinção, reinava por ali - restam apenas pequenos fragmentos de florestas naturais da árvore-símbolo da Região Sul do país. A floresta localizada no vale do Rio Pelotas era uma das mais importantes, com árvores de mais de 200 anos. A ameaça já era real no final da década de 1990, ano em que foi realizado o estudo. Era evidente que a simples existência da floresta ali inviabilizaria a construção da hidrelétrica.

A solução, então, foi transformar os 6 mil hectares de araucárias em "pequenas culturas, capoeiras marginais baixas e campos com arvoredos esparsos". Ou seja, no papel, o que era araucária virou mato. O Ibama acreditou e liberou a licença em 2001. Somente dois anos depois, quando a empresa solicitou a retirada de 1 milhão de metros cúbicos de madeira de dentro da represa, a verdade veio à tona. Era muita árvore para um lugar que só tinha mato. Mas aí a barragem de 180 metros de altura já estava de pé, e apenas 3% do total da floresta de araucárias sobreviveu ao alagamento.

A fraude rendeu à Engevix uma multa de R$ 10 milhões e a cassação do registro para realizar estudos ambientais. Mas nada disso impediu a represa de entrar em funcionamento em 2005 e continuar operando até hoje. "O empreendimento foi licenciado com uma premissa falsa, e isso tem acontecido Brasil afora", afirma Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental. O empreendedor é o responsável por entregar um estudo que pode apontar a inviabilidade técnica do seu projeto. Com milhões de reais em jogo, o melhor é entregar estudos ruins, incompletos ou adulterados. Um jeitinho que costuma dar certo.

O primeiro "empecilho" aparece justamente quando esses estudos malfeitos chegam às mãos de um técnico do órgão ambiental. "As empresas contratam consultorias para apresentar estudos de péssima qualidade. Aí, precisamos de uns seis pareceres até que venha uma informação de qualidade", explica Carlos Martins, técnico com experiência de dez anos no licenciamento de gás e petróleo. O resultado desse morde e assopra é um aumento considerável no tempo de duração do processo.

A velocidade também esbarra na própria estrutura do Ibama, responsável por empreendimentos cujo impacto atinge mais de um estado. São necessários profissionais de diversos perfis para analisar os muitos aspectos de um projeto. Quanto mais complexo ele é, mais pessoas são necessárias. E a mão de obra anda escassa. Enquanto os pedidos de licenciamento aumentam a cada ano, o número de servidores é praticamente o mesmo desde 2011. "É clara a necessidade de concursos para o Ibama como um todo. O pedido está no Ministério do Planejamento desde 2015", confirma a diretora de licenciamento do Ibama, Larissa Amorim.

A situação é ainda pior nos chamados órgãos intervenientes, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) - que ficou especialmente conhecido depois de barrar uma obra de interesse do então ministro Geddel Vieira Lima - e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Incorporadas ao processo de licenciamento quando o impacto atinge sua área de atuação, como nas hidrelétricas próximas a terras indígenas, as duas instituições contam com estrutura muito aquém da demanda, o que acaba atrasando ainda mais a licença.

Superados os desafios, com o parecer finalmente pronto, nada garante que ele será levado em consideração. O parecer feito pelos técnicos serve para embasar a tomada de decisão, mas os diretores do próprio Ibama podem decidir ignorá-lo. "É um contrassenso ter uma equipe técnica que trabalha há anos em um projeto e desconsiderar o parecer solenemente", diz Martins. "A presidência do Ibama diz que o trabalho é muito preciosista e valoriza a opinião do empreendedor em detrimento da análise técnica feita no próprio Ibama", completa Emerson Aguiar, servidor do Ibama.

SEM RESPOSTA

Para o advogado do Instituto Ambiental (ISA) Maurício Guetta, o licenciamento de Belo Monte foi "totalmente ilegal". Ainda que a Norte Energia, concessionária responsável pela obra, tenha feito 12 consultas públicas entre 2007 e 2012, os críticos afirmam que o espaço serviu só para fazer propaganda do projeto - as demandas foram ignoradas. "As considerações que são feitas pela população afetada raramente são levadas em conta na decisão do órgão licenciador. Em muitos casos, não são sequer respondidas", diz Guetta. Comunidades de pescadores ribeirinhos foram transferidas para longe do rio, e os índios do Xingu foram compensados com motores de barcos, televisões e refrigerantes.

Desde o início das obras, 50 mil pessoas se somaram aos 100 mil habitantes de Altamira (PA), onde a usina foi instalada. O índice de assassinatos subiu 80% entre 2011 e 2014. O esgoto da cidade, que era carregado sem tratamento pelas águas do Rio Xingu, passou a ficar acumulado após a construção da barragem - uma das condicionantes para a emissão da licença era justamente que 100% da população estivesse ligada aos serviços de água e esgoto. E a estrutura até foi construída, com 220 km de redes de esgoto e 170 km de abastecimento de água, mas, emitida a licença, a Norte Energia passou a jogar a responsabilidade de fazer a conexão das casas à rede para a prefeitura e os moradores. Mais de um ano depois do início da operação de Belo Monte, o esgoto segue sendo despejado nas águas do rio.

O Ministério Público recorreu à Justiça, que já emitiu sete liminares determinando a cassação da Licença de Operação. O "jeitinho" do governo foi apelar para a Suspensão de Segurança, uma lei criada no primeiro ano da Ditadura Militar que permite aos presidentes dos tribunais suspender unilateralmente decisões de instâncias inferiores sob alegação de "grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas". Assim, a obra segue em operação até que todo o processo seja julgado, algo que pode levar anos.

APRENDENDO COM OS ERROS?

Em outubro de 2015, o Brasil foi surpreendido pelo maior desastre ambiental da sua história. O rompimento de uma barragem da Samarco em Mariana (MG) deixou 19 mortos, afetou quase 40 cidades e cobriu o Rio Doce de lama e rejeitos. As condições para o maior desastre socioambiental do país foram criadas pela combinação de estudos incompletos e falta de fiscalização do órgão licenciador, no caso a Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais.

Nem mesmo o Estudo de Impacto Ambiental seria suficiente para evitar a tragédia, de acordo com o Ministério Público. É que o complexo da Samarco conta com duas minas de extração de minério de ferro, três usinas de beneficiamento, três minerodutos e três barragens. Em Mariana, cada estrutura foi licenciada de forma individual, sem levar em consideração o impacto acumulado pela soma das atividades - e foi justamente esse acúmulo que causou o rompimento da barragem do Fundão. Somente um estudo que analisasse o complexo como um todo seria capaz de avaliar os riscos. E ele até existe: é a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), prevista na lei, mas pouco cobrada e quase não utilizada. "As leis que regem o licenciamento são razoavelmente boas. Nosso problema é muito mais de falta de cumprimento dessa legislação", afirma o procurador da república Daniel Azeredo.

Poucos meses depois da destruição do Rio Doce, um decreto do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), condensou todas etapas do licenciamento em uma só. Com a limitada atuação do órgão ambiental, o início das obras é liberado automaticamente. O exemplo de Minas fez os olhos de muita gente brilharem em Brasília. "Há uma queda de braço entre aqueles que trabalham para afrouxar as regras e quem luta para torná-las mais rigorosas", conta o deputado federal Alessandro Molon (Rede), líder da bancada ambientalista. Desde 2013, Molon aguarda ser votado no Congresso um projeto de lei de sua autoria que prevê maior independência das empresas responsáveis pelos estudos de impacto, transparência dos processos e ferramentas que ampliem a participação da população diretamente impactada.

BRIGA DE CACHORRO GRANDE

Mas não é bem esse tipo de mudança que o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, tem em mente. Acusado de crime ambiental por destruir e danificar uma Área de Proteção Permanente em uma das suas propriedades, ele usou como base para sua versão da Lei Geral do Licenciamento outro projeto de lei, este elaborado pelo deputado federal Mauro Pereira (PMDB) com a contribuição das confederações nacionais da indústria e do agronegócio. De tão agressivo, o projeto encontrou resistência até dentro do próprio governo. Em carta aberta, o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, fez uma série de críticas à proposta de Padilha, como a que delega aos estados a definição sobre o rigor - ou falta dele - no licenciamento. É o chamado "licenciamento flex", que acarretaria uma guerra ambiental entre os estados, que, para atrair grandes investimentos, fariam vista grossa para os possíveis impactos.

Sarney Filho também condenou a licença por adesão e compromisso, o que, na prática, acabaria com todo o processo, limitando o poder público a punir empresas por impactos já consolidados, além do chamado "fast track", que determina o tempo máximo de oito meses para aprovação do licenciamento e de apenas quatro meses para obras consideradas estratégicas. Para o Ibama, o prazo é irreal. Mesmo quando tudo caminha bem, são necessários de 12 a 18 meses para fazer tudo direitinho. Caso o tempo não fosse suficiente, a aprovação seria automática.

Se por um lado a carta de Sarney impediu, pelo menos por hora, o fim do licenciamento ambiental, por outro quase custou sua cabeça, colocada a prêmio pela poderosa bancada ruralista. Para evitar novos desgastes, o governo levou a discussão para os bastidores. "O ideal é que o debate fosse feito em público, para que não chegasse o prato feito para a sociedade", diz Molon. Para tentar barrar o licenciamento flex, a tendência é de que seja aprovada a isenção de licenciamento para atividades agrossilvipastoris em áreas com menos de 15 módulos fiscais, o que representa 97% das propriedades rurais do país. Na Amazônia, por exemplo, seria a permissão para desmatar fazendas com até 1,5 mil hectares.

Caso as leis de licenciamento realmente sejam afrouxadas, casos como o do residencial construído na represa Billings tendem a se multiplicar. Três anos depois do início do projeto, as nascentes e as corujas-buraqueiras que foram omitidas do relatório oficial também já não existem na vida real.

Atualização: no dia 16 de fevereiro de 2018, as obras do Residencial Espanha já estão praticamente concluídas, mas ainda não recebeu moradores. Enquanto isso, no Congresso Nacional, a discussão sobre a Lei Geral do Licenciamento volta à pauta no ponto onde parou: o substitutivo relatado pelo deputado ruralista Mauro Pereira (MDB-RS). O texto é fortemente apoiado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que negocia a aprovação em troca de apoio ao governo do presidente em exercício Michel Temer. A reportagem foi originalmente publicada em junho de 2017, na edição número 311 da Galileu.

Perguntas frequentes sobre o licenciamento ambiental

Quem faz?
O Ibama é o responsável pelo licenciamento de atividades desenvolvidas em mais de um estado e daquelas cujos impactos ambientais ultrapassem os limites territoriais. Nos demais casos, fica a cargo dos órgãos estaduais ou municipais.

Como funciona?
Primeiro, o órgão licenciador determina os tipos de estudos que devem ser feitos. Quando é constatada a possibilidade de impacto ambiental, o Estudo de Impacto Ambiental deve ser providenciado. Os interessados no empreendimento encomendam então o estudo a uma empresa especializada e, com base nele, o licenciador analisa a viabilidade ambiental e estabelece exigências técnicas para a implantação.

O que é avaliado?
Os estudos abordam necessariamente as condições da biota, dos recursos ambientais, as questões paisagísticas e sanitárias e o desenvolvimento socioeconômico da região. A Licença de Operação, que autoriza o início do funcionamento do empreendimento, só é concedida após vistoria para verificar que todas as exigências foram atendidas.

https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2018/02/proposta-que-a…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.