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O Xingu em guerra e o convite à raposa

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
20 de Jan de 2006

O Xingu em guerra e o convite à raposa

Washington Novaes

A vida é sempre difícil para o índio brasileiro - ou não tem terra onde possa viver a seu modo, exercer sua cultura, ou é acusado de ter terra demais, de impedir o "progresso", como na mais recente polêmica que ocupa páginas dos nossos jornais; ora é acusado de ser protegido demais, ora se diz - como diz agora a Anistia Internacional (Folha de S. Paulo, 7/1) - que "o governo e o Judiciário brasileiros fracassaram na proteção ao direito dos índios à terra". O final de dezembro e começo de janeiro não foram diferentes. Jornais trouxeram muitas notícias sobre os guarani-caiovás, mais uma vez despejados em Marangatu (MS) por decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que suspendeu a execução de decreto presidencial que homologara a demarcação de suas terras - devolvendo-os à rotina de fome e desespero que já levou centenas deles ao suicídio e dezenas de crianças à morte. Ou sobre os crenaques, de Minas Gerais, bloqueando estrada, inconformados com a não-demarcação de suas áreas. Ou os caingangues de Santa Catarina, também bloqueando rodovia pelas mesmas razões.
Não bastasse isso, índios do Parque do Xingu, liderados pelo iawalapiti Piracumã, foram a Brasília avisar à Fundação Nacional do Índio (Funai) que "partirão para a guerra" se não forem interrompidas as explosões de rochas no Rio Kuluene para implantação de uma hidrelétrica. Em princípio, a obra deveria estar suspensa por causa de ação movida pelo Ministério Público Federal. Ela se encontra em área sagrada dos xinguanos e sua implantação prejudica a fauna ictiológica do rio, básica para sobrevivência desses povos.
A construtora alega que a hidrelétrica teve o consentimento de Aritana e outros chefes xinguanos, em acordo estimulado pelo governador Blairo Maggi (MT), que prometeu aos índios R$ 1,3 milhão (Correio Braziliense, 30/12). Complicado, porque entre índios do Xingu não há delegação de poder. O chefe só fala em seu próprio nome. E, mesmo que falasse por outros, só uns poucos chefes do parque assinaram. O próprio Aritana, diz seu irmão Piracumã, "assinou sem ler".
Em meio a tantas aflições, foi lançada a autobiografia Orlando Villas-Boas - História e Causos, que relata a saga dos irmãos criadores do Parque Indígena do Xingu, em 1961. Orlando morreu em 2002, mas o livro foi revisto por sua esposa Marina e pelos filhos e completado por um prefácio da antropóloga Betty Mindlin e depoimentos de amigos de Orlando.
É um livro que juristas e outros interessados deveriam ler para se aproximar da cultura dos grupos xinguanos, que tanto poderia nos inspirar neste momento de impasse da nossa civilização. Logo na introdução, Orlando cita Claude Lévi-Strauss, para quem "não estamos em contato com um povo de cultura primitiva, mas com um povo de cultura paralela (...), uma outra humanidade, com uma outra ética, outra moral, outra visão de mundo". Para o já falecido antropólogo Pierre Clastres, em A sociedade contra o Estado, são povos que vivem a "democracia do consenso", em que chefe não dá ordens e todos os indivíduos têm direitos iguais e são auto-suficientes. Como não há delegação de poder, não pode haver repressão organizada, ninguém domina ninguém.
Betty Mindlin cita o pensamento de Darcy Ribeiro, para quem os irmãos Villas-Boas "compuseram as vidas mais extraordinárias e belas de que tenho notícia". De fato, foram admiráveis. Moradores de uma pensão em São Paulo no início da década de 40, Cláudio, Orlando e Leonardo sonhavam em embrenhar-se pelo Brasil. Todos os fins de tarde, passavam horas diante de um mapa, imaginando aventuras.
Não tiveram êxito em sua primeira tentativa de integrar-se à expedição Roncador-Xingu, com a qual o governo Vargas pensava em ocupar o Brasil Central. Mas foram de "jardineira" até a antiga capital de Goiás e dali, parte a pé, parte de carona, até Leopoldina (hoje Aruanã), 160 quilômetros além. Compraram uma canoa e, após 22 dias a remo pelo Araguaia, chegaram a Aragarças, onde se iniciaria a expedição.
Foram contratados como trabalhadores braçais, até descobrir-se que eram alfabetizados e passassem a outras funções. Em outro livro, Orlando contou que, entre os demais contratados, o que menos crimes de morte tinha respondia por seis ou sete. E eram eles que iam "civilizar os índios" - entre os quais Orlando passaria 40 anos sem nunca ver um "dar um tapa na cara do outro".
A missão do grupo era "abrir uma picada" de 480 quilômetros até o Rio Kuluene, o mesmo da hidrelétrica que agora ameaça provocar guerra. O mesmo rio que, ao juntar-se ao Batovi e ao Ronuro, faz nascer o majestoso Xingu, no lugar chamado Morená, território camaiurá, onde o herói mitológico Mavutsini tudo criou para os povos que habitam o parque indígena - uma ilha de beleza, hoje sitiada por um mar de soja e pastagens estimulado por um governo estadual (de Mato Grosso) a quem se acaba de entregar todo o licenciamento ambiental rural e de atividades madeireiras naquela unidade da Federação, a que mais devasta a Amazônia e o Cerrado (isso é que é confiar na raposa...).
Orlando e seus irmãos tremeriam diante dessa notícia e das ameaças ao belo Kuluene, no qual deságua o transparente Tuatuari, em cujas margens se situa a aldeia iawalapiti, onde moram Piracumã e Aritana, filhos do grande chefe Paru, que não queria viver como um branco - ele o disse ao autor destas linhas há mais de 20 anos. Porque sabia, como Orlando afirmou a este jornal (4/2/1979), que "integrar é destruir o índio".
Mas a vida nunca foi fácil para os índios. E os xinguanos acabarão vencendo essa parada também.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 20/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

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