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Nova escola mobiliza os moradores de Uatumã

Valor Econômico - www.valoronline.com.br
Autor: Célia Rosemblum
18 de Mar de 2009

A cerca de 360 quilômetros de Manaus, às margens do rio Uatumã, há um galpão em obras. O teto está coberto com telhas de um material que lembra plástico. O piso de madeira, erguido a quase um metro do solo, parece pronto. Faltam as paredes para concretizar um dos sonhos de Maria Lucineide Rodrigues Miranda, 41 anos: uma escola de primeiro e segundo graus na comunidade de São Francisco do Caribi, onde mora, em que seus oito filhos possam estudar.

Há menos de dois meses, Neide, que é presidente da associação local de moradores, embarcou com quatro filhos rumo a Itapiranga, a 25 km de viagem pelo rio. Achou acomodações em casas de familiares para que eles pudessem seguir com os estudos, que na comunidade vão apenas até a quarta série do primeiro grau. Na última hora, voltou com Jonisson, de 12 anos, o mais novo do grupo, para casa. "Perdi a coragem de deixar ele sozinho."

Agora ela espera ansiosa a abertura da escola de São Francisco do Caribi, uma das 20 comunidades que formam a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã, no Baixo Amazonas, a cerca de 360 km de Manaus, uma viagem de 16 horas em barco regional. Pela área de 424 mil hectares - algo como metade da Região Metropolitana de São Paulo - estão espalhadas 280 famílias. Ali, quase metade dos 823 habitantes já teve malária. A luz que a maioria (79%) conhece é de lamparinas.

O índice de analfabetismo na reserva, de 43%, é cerca de quatro vezes maior que a média do Estado (10,8%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A escolaridade de 28% dos moradores varia da primeira à quarta série do ensino fundamental. Da quinta à oitava série são 20%. Entre o primeiro e o terceiro ano do ensino médio o total é de 4%. Benefícios dos governos federal e estadual respondem por 30% da renda per capita anual, de R$ 863,00.

A escola é parte de um programa da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) para promover o desenvolvimento local e, ao mesmo tempo, impedir o desmatamento a partir da valorização da floresta em pé, com atividades sustentáveis para gerar renda. A FAS trabalha com o apoio do governo do Amazonas e aposta em parcerias com a iniciativa privada. Bradesco e Coca-Cola, por exemplo, fizeram contribuições de R$ 20 milhões cada, assim como o governo estadual, para um fundo que gera os rendimentos usados nos programas.

"Essa escola é um sonho de quase 30 anos que começa a se realizar", diz Neide. "Temos a oportunidade de ver as coisas acontecerem muito rápido", avalia, numa demonstração de que também o tempo, e não apenas as distâncias, têm na amazônia uma escala própria.

Na pequena casa onde até agora funcionava a escola da comunidade estavam matriculadas seis crianças. Assistiam juntas às aulas da primeira à quarta série, das 7:00 às 11:00, dadas por um professor que se deslocava da cidade para a reserva de segunda a sexta-feira.

O novo prédio terá capacidade para 70 alunos. Ao lado dele haverá um alojamento para os quatro professores, que darão aulas do primeiro ano até a conclusão do ensino médio. Neide gostaria também de construir um lugar para abrigar as crianças que vierem de locais mais distantes da reserva para estudar. Mas ainda não sabe se isto será possível.

Dentro do espírito guardião da floresta, que norteia as ações do FAS, a madeira usada na obra é de manejo - argelim e maçaranduba. As telhas são de material reciclado. Mas foi uma queimada que abriu o terreno para a construção. "Tivemos que tacar fogo porque não tinha ninguém para puxar os troncos", conta Neide. "A gente lembra o compromisso de não poluir, mas cadê o dinheiro?", procura explicar Salomão Barbosa, presidente da Associação Agro Extrativista da RDS.

Salomão, que completou o primeiro grau, está "muito esperançoso de conseguir um futuro melhor para a reserva". E a escola é fundamental para isso. Seu plano é, no futuro, ocupar parte do terreno, que foi doado pela Petrobras, com um viveiro de árvores nativas e fazer seu remanejamento para áreas degradadas. Mas pretende ir mais longe. "Aqui poderia ser um centro de pesquisa, com botânica, com flora, para criar projetos que não agridam o meio ambiente."

Ao mesmo tempo em que começa a construir um futuro que parece melhor, a comunidade de São Francisco do Caribi vê alguns sinais de recuperação de um passado que guarda com carinho na memória. Jaime Neves Miranda, pai de Neide e vice-presidente da associação, chegou ao local no início dos anos 70, atraído por sua beleza. "Na época era quase tudo virgem", recorda. "A gente via tartaruga, pirarucu, peixe-boi."

A inauguração da hidrelétrica de Balbina, em 1988, mudou tudo. "Acabou com essa beleza. Era uma água muito linda, um cristal dentro do copo", lembra Neide. Represada por quinze anos durante as obras, a água do lago de Balbina desceu o rio. Quando passou pela comunidade, completando um percurso que de barco dura 12 horas pelo Uatumã, "veio matando tudo", conta seu Jaime. Os peixes sumiram, a caça morreu e até os cachorros que bebiam água no rio ficaram doentes. Foram vários os casos de malária e hepatite.

Durante muito tempo só havia no rio tucunarés e piranhas, espécies predadoras do topo da cadeia. E detritos, muitos detritos tóxicos, conta Carlos Gabriel Koury, engenheiro florestal e coordenador do programa de unidades de conservação do Idesam - Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, associação sem fins lucrativos que trabalha em parceria com a FAS.

Só agora o Uatumã começa a se recuperar e a pesca voltou a ser possível. Balbina hoje é vista como um erro pelo governo e por cientistas. Sua geração é baixa em relação à área alagada. Por ter sido construída em área florestada, que provoca intensa decomposição de material orgânico no fundo do lago, emite grande quantidade de gases de efeito-estufa. Mais que uma termelétrica movida a carvão vegetal com o mesmo potencial.

Hoje, a vida na comunidade melhorou, avalia Neide. "Mas ainda está longe de ser boa." Os moradores parecem dispostos a buscar mais. Luiz Gonzaga de Aguiar, agricultor que avalia ter "uns 75 anos", é um dos mais entusiasmados. O que sabe escrever, com muito capricho, é seu nome. Promete, porém, ocupar um dos bancos da escola "Se eu soubesse escrever mandava carta para todos os políticos, para defenderem a gente."

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