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Nem tudo o que afunda é ação de Bolsa de Valores

OESP, Vida, p. A18
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
15 de Out de 2008

Nem tudo o que afunda é ação de Bolsa de Valores

Marcos Sá Corrêa*

A notícia de que 142 monumentos seculares, 111 edifícios tombados, o retiro de verão da escritora Agatha Christie e quase 300 quilômetros de praias podem se afogar na Inglaterra, engolidos pela mudança climática, conseguiu o impossível em tempos de obsessão internacional. Ela furou a casca da crise financeira e amanheceu esta semana na primeira página do jornal The Guardian.

Ponto para o repórter Steven Morris. Ele não poderia ter encontrado uma hora melhor para nos lembrar de que nem tudo o que pode afundar no mundo de uma hora para outra é a cotação de bolsa.

Há coisas mais concretas em jogo. A lista que ele publicou vinha de um dossiê da National Trust, uma fundação com 3,5 milhões de doadores e 52 mil trabalhadores voluntários, responsável por um patrimônio ambiental e histórico orçado em mais de 300 prédios, parques, moinhos, estradas, relíquias da revolução industrial, parques e florestas. Pelo menos 50 milhões de pessoas visitam anualmente esses lugares. A National Trust mostrou que, com o gelo do Ártico derretendo a olhos vistos, há um inestimável tesouro público sob risco de inundação em uma parte considerável da costa inglesa.

Da lista consta Saint Michael, o penhasco onde o Cristianismo fincou o pé no país de Gales há dois milênios. O monte já constava das rotas comerciais na Europa há mais ou menos 2.500 anos. No século 12, enobreceu-se com a abadia fortificada que é um dos grandes trunfos turísticos da Inglaterra. Tem um castelo medieval ainda habitado. E, como o Mont Saint Michel, na Normandia, é uma ilha que a maré baixa emenda uma vez por dia à terra firme.

Por seu relevo escarpado, Saint Michael, em si, construído no alto de pedras, está fora de perigo. Mas o relatório dá, no máximo, 45 anos de sobrevida à passarela que liga o rochedo à terra. Há destinos piores, como o de Bossington, vilarejo de uma só rua, onde as casas mantêm seus tetos de palha e os fornos de pão estufando o adobe das fachadas. Ali, a erosão ameaça os pântanos e bosques que margeiam suas estradas e são parte inseparável da paisagem.

Pior é o caso dos jardins de Westbury Court, um parque plano, à beira-mar plantado ainda no século 17. Ele brotou entre canais e aléias de árvores hoje com mais de 300 anos. Guarda, como troféu vivo, um carvalho que tem fama de ser o mais velho da Inglaterra. Quarenta anos atrás, estava a um passo da ruína, com canais assoreadores e canteiros invadidos pelo mato. Por pouco, não se rendeu à especulação imobiliária. A prefeitura local comprou-o a tempo, salvando-o das mãos de um incorporador, entregou-o à National Trust, que fez dele um dos melhores endereços turísticos de Gloucestershire. De repente, ei-lo classificado entre 13 monumentos sob "alto risco". É candidato sério a acabar debaixo d'água, se o nível do Atlântico passar do ponto.

Phil Dyke, um conselheiro da National Trust, queixou-se ao repórter do Guardian que está passando da hora de tomar providências contra o que vem por aí nas próximas décadas. E pensar no que tende a acontecer "daqui a 20, 50 ou 100 anos", como se sabe, não é o forte dos governos que vivem no ritmo das emergências políticas. Isso inclui a realocação de cidades inteiras. Não é, portanto, um plano fácil de engolir. "Ainda estamos para ver homens públicos que acordem de verdade para o impacto da mudança", disse ele. Dyke lamenta que a Inglaterra tem 30 agências diferentes para tratar do assunto. E por isso é difícil planejar a longo prazo. Reclama de barriga cheia, como se diz aqui no Brasil.

* É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 15/10/2008, Vida, p. A18

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