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A lei dos aimarás

CB, Mundo, p. 22
22 de Jun de 2004

A lei dos aimarás
Indígenas do Peru e da Bolívia invocam justiça tradicional e tomam nas mãos a punição de governantes violentos ou corruptos. Dois prefeitos já foram linchados e outras autoridades estão na mira das comunidades

Sandra Lefcovich
Da equipe do Correio

Os aimarás estão em pé de guerra. A resistência indígena à ordem estabelecida alarma os Estados andinos. Em menos de dois meses, dois prefeitos acusados de corrupção foram linchados em praça pública, um no sul do Peru e outro no norte da Bolívia. As comunidades argumentam que a Justiça e a polícia não atuam. Há, todavia, mais prefeitos e vereadores na mira das implacáveis comunidades.
  Nas capitais, sobram motivos de preocupação para os enfraquecidos governos. O Executivo boliviano admitiu que perdeu o controle nessa região do país. No Peru, o ministro do Interior à época do linchamento, Fernando Rospigliosi, teve de renunciar, mês passado, devido ao caos no Altiplano (planalto). O lago Titicaca — o mais alto do mundo, quatro mil metros acima do nível do mar — é compartilhado pelos dois países e é o centro de referência para os mais de 1,6 milhão de aimarás espalhados em quatro países.
  Os dois povoados que aplicaram a Justiça comunitária se localizam no território da nação aimará. Ilave, no Peru, encontra-se a 50 quilômetros de Ayo Ayo, na Bolívia. Em 26 de abril, em Ilave, a terceira maior cidade aimará peruana, o prefeito Cirilo Robles Callomani foi linchado por uma multidão de 10 mil pessoas, depois de 24 dias de protestos. Acusado pela comunidade de corrupção e administração fraudulenta, ele não renunciou. Em seu corpo, colocaram um cartaz de advertência: Assim morrem os corruptos.
  Já o povoado boliviano de Ayo Ayo, de sete mil habitantes, não perdoou o prefeito Benjamín Altamirano. A menos de 100 quilômetros de La Paz, a capital, ele foi atacado com golpes de pau e pedra por uma multidão que, depois de prendê-lo a um tronco, queimou-o. O prefeito, um político populista de direita, fora seqüestrado em La Paz e levado a Ayo Ayo.
Ameaça
Em assembléia depois do linchamento, moradores e camponeses justificaram a morte de Altamirano. A justiça foi feita, disseram, e explicaram que o ex- prefeito perseguia opositores com ajuda de fiscais e policiais da capital. Duas pessoas foram presas, acusadas de envolvimento no linchamento. Mas a comunidade ameaça explodir as torres de eletricidade caso os detidos não sejam soltos e a família de Altamirano não devolva os US$ 500 mil que teriam sido roubados pelo falecido. A população é uma das mais pobres da região, no país mais pobre da América do Sul.
  Dirigentes aimarás explicam que a tradição indígena contempla a aplicação da justiça pelas próprias mãos — incluindo a pena de morte — em paralelo aos tribunais oficiais do Peru e da Bolívia. Os aimarás bolivianos reivindicam a Justiça comunitária como herança de seus antepassados.
  O caso de Ilave é uma situação limite de fragmentação social e ineficácia estatal, que pode se repetir a curto prazo em ambos os países, explicou o antropólogo Carlos Iván Degregori à agência de notícias France Presse. A tendência à fragmentação se alimenta na atual cena política, sem partidos políticos ou com partidos extremamente débeis, opinou.
  Em Potosí, cidade boliviana, dirigentes camponeses advertiram que podem recorrer à Justiça comunitária” se as autoridades não atenderem os apelos de investigar denúncias de corrupção.
Duas Justiças
Análise do site Econoticias avalia que a sensação é que há duas Justiças: Uma, a oficial, quase sempre favorável aos mais ricos e poderosos, e a outra, imposta pelos mais pobres. O texto lembra o caso de Yerko Kukok, ministro de Governo do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e considerado um dos responsáveis pela repressão ao levante popular de outubro do ano passado. Cerca de 80 pessoas morreram, e Lozada renunciou. Kukok confessou o roubo de US$ 250 mil, mas foi beneficiado pelo perdão judicial previsto na legislação boliviana.
  A rebelião aimará ocorre em conjuntura de crise política, econômica e social nos dois países. O presidente do Peru, Alejandro Toledo, tem apenas 7% de popularidade. Uma greve geral geral foi convocada para o dia 14 de julho. Já o presidente da Bolívia, Carlos Mesa, enfrentará no dia 18 um referendo sobre a exploração do petróleo e do gás natural. Os aimarás, sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais defendem a nacionalização.
  Ontem, Mesa pediu ajuda da população para enfrentar com diálogo e sem balas as minorias radicais que querem convocar greves. Depois de 22 dias de protestos, as estradas do interior que ligam os dois países andinos foram desbloqueadas. Mas a trégua deve ser breve.
MANDAMENTOS DO IMPÉRIO INCA
Os três princípios dos indígenas aimarás e quéchuas
Ama Killa
não ser preguiçoso
Ama Llulla
não mentir
Ama Shua
não roubar

PARA SABER MAIS
História milenar
  Os aimarás são um povo milenar dedicado à pecuária e à agricultura. Até hoje, utilizam técnicas ancestrais de cultivo. Foram eles que domesticaram a batata, que apresenta 200 variedades no Altiplano (planalto andino).
  Esse grupo se assentou nas margens do lago Titicaca em 1580 a.C. e ali se manteve até 1200 d.C., quando foi conquistado pelos incas, que desceram de Machu Picchu em direção ao sul e dominaram territórios até a porção norte do que hoje pertence à Argentina. Nesse período, a população aimará estava debilitada por 15 anos de seca.
  De acordo com os censos mais recentes, há 1,3 milhão de aimarás na Bolívia, 300 mil no Peru, 50 mil no Chile e várias comunidades no norte argentino.
  Segundo a tradição, Mama Capac e Mama Ocllo emergiram do mitológico Titicaca para dar à luz o Tahuantinsuyu (Estado Inca). Felipe Quispe, mallku (máximo dirigente, condor) da Confederação Sindical Única de Camponeses da Bolívia (Csucb), é um dos principais defensores do nacionalismo aimará.
  Quispe afirma que uma causa sagrada o chama à ação. Do Titicaca, afirma, ouve sussurros de versos da revolução indígena e, inspirado neles, quer a restauração da sociedade pré-hispânica, o Collasuyo (uma das quatro partes do Estado Inca) e a expulsão dos colonos brancos. Ele defende também os mandamentos ancentrais que proíbem mentir, roubar e ser preguiçoso.
  Os enfraquecidos Estados latino-americanos têm, nos últimos anos, sofrido a pressão de dezenas de grupos autóctones que batalham por melhores condições de vida. Muitos, como parte dos aimarás, defendem até autonomia territorial para implantar as próprias formas de governo. Quispe prega a desobediência às autoridades e bandeiras bolivianas e quer que o poder válido seja o das comunidades.

CB, 22/06/2004, Mundo, p. 22

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