ISA
Autor: Gláucia Buratto Rodrigues de Mello
26 de Set de 2006
Em carta, a antropóloga Gláucia de Mello responde ao antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, que escreveu artigo publicado no site do ISA a respeito do estudo sobre o patrimônio cultural dos povos indígenas do Alto Xingu, do qual ela participou. O polêmico estudo é parte do licenciamento ambiental da Pequena Central Hidrelétrica Paranatinga II, que está sendo erguida em um dos principais formadores do rio Xingu, no Mato Grosso, em área considerada sagrada pelos índios. Ao defender a análise que fez no estudo encomendado pela Paranatinga Energia, dona do empreendimento, a antropóloga revela a existência de um laudo anterior que, segundo ela, "prejudica realmente os índios".
Leia a seguir a carta de Gláucia de Mello na íntegra.
RIO DE JANEIRO, 15 DE SETEMBRO DE 2006
CARTA DE RESPOSTA AO ARTIGO DO SR. CARLOS FAUSTO
Eu, Gláucia Buratto Rodrigues de Mello, venho por meio desta esclarecer às comunidades acadêmicas e científicas que me representam e que eu respeito, sobre o meu ponto de vista em relação ao artigo que escreveu o sr. Carlos Fausto e que ele fez veicular pela internet. Trata-se de um artigo irresponsável e desprovido de ética. Neste artigo, além de desfiar uma seqüência de julgamentos preconceituosos contra a minha função profissional e que eu vou discutir com ele em outra instância, ele julga sem a devida argumentação técnica o Relatório Final do Programa de Patrimônio Cultural, realizado por conceituada empresa de consultoria, a Documento Antropologia e Arqueologia SS Ltda, um trabalho cuidadoso e realizado com rigor técnico e científico, coordenado pela L.D. Dra. Érika M. Robrahn-González que, para realizá-lo, formou uma equipe multidisciplinar de profissionais especialistas, eu, entre eles, antropóloga, doutora, especialista em imaginário antropológico pela Université de Grenoble II (1995-1999).
Eu não vou tratar aqui do relatório como um todo. Certamente, como coordenadora do trabalho e responsável pelo relatório, a Dra. Érika Robrahn-González está melhor capacitada para fazê-lo. Conto explicitar aqui apenas os pontos que me dizem respeito no tocante ao trabalho que realizei, visando assim esclarecer a improcedência dos julgamentos do sr. Carlos Fausto.
Pois bem, vejamos os argumentos do artigo do sr. Carlos Fausto...
Recentes notícias jornalísticas sobre o laudo encomendado pela Paranatinga Energia à empresa Documento Antropologia e Arqueologia ..
Eu quero desconsiderar a infelicidade do autor por iniciar um artigo com um pressuposto como Recentes notícias jornalísticas..., que não se sabe do que se trata, para discutir a informação seguinte: laudo encomendado pela Paranatinga Energia à empresa Documento Antropologia e Arqueologia. Sem qualquer critério, o sr. Fausto se deu ao trabalho de redigir o que se denominou um artigo sobre um pressuposto falso. Ora, EU NÃO FIZ UM LAUDO ANTROPOLÓGICO, tampouco o Relatório Final da Dra. Érika é um laudo.
Como antropóloga, sócio-efetivo da ABA, associação que me representa, que eu respeito e quero vê-la cada vez mais fortalecida, declaro que apoio inteiramente o legítimo esforço da nossa associação em formar comissão especializada de antropólogos capacitados a fazerem os laudos antropológicos. E isto, exatamente para evitar a produção de laudos feitos por outros profissionais que, sem as devidas formação e capacitação, venham a prejudicar os povos e comunidades que defendemos, como aconteceu, em novembro/2004, quando da produção de um LAUDO ETNO-HISTÓRICO E AVALIAÇÃO JURÍDICA E ANTROPOLÓGICA, realizado por Miguel B. Brito (advogado e geólogo); Samuel V. Cruz (indigenista e cientista social com área de concentração em antropologia) e Tereza de J. C. Rodrigues (historiadora, especialista em arquivologia), conforme se autotitulam no referido laudo, contratados por diretores da empresa Paranatinga Energia Ltda.
Sem as qualidades técnicas e sem o necessário conhecimento sobre a mitologia, a história e a arqueologia alto-xinguana, o laudo dos srs. Brito, Cruz e Rodrigues prejudica realmente os índios porque conclui que o Primeiro Kwarup foi realizado no Morená (e não no Sagihenhu, conforme afirmam os caciques e os pajés das aldeias, que autorizam apenas aqueles que sabem as estórias a falar sobre os seus mitos) e, além disso, o laudo ignora e desautoriza os estudos históricos e arqueológicos quanto à ocupação antiga do território por parte daqueles povos. De acordo com este laudo, como o Morená está dentro do Parque, distante 213,8 km em linha reta (cf. laudo referenciado, p. 23 em 25) do local do empreendimento, ele entende que não há o que se conversar com os índios. Não preciso discorrer mais sobre a seriedade e as conseqüências de um laudo deste nível e que queremos evitar.
No mesmo período, em dezembro/2004, o sr. Carlos Fausto entregou um LAUDO ANTROPOLÓGICO encomendado pelo Ministério Público Federal MT. Neste laudo, o sr. Fausto apresenta o que ele denominou uma cartografia sagrada xinguana que é, na verdade, o levantamento de quatro locais sagrados (dentre os vários que sequer são mencionados na cartografia sagrada do sr. Fausto) para os índios do Alto Xingu: o Morená, a gruta de Kamukwaká, o Sagihenhu e o Ahasukugu. Quem tiver maior interesse, que recorra ao laudo do sr. Fausto, intitulado: A ocupação indígena do alto curso dos formadores do rio Xingu e a cartografia sagrada alto-xinguana; eu vou me deter apenas a esclarecer os pontos que nos interessam aqui.
Pois bem, eu não sou especialista em cartografias, mas espero que uma cartografia localize e descreva com clareza os pontos aos quais ela serve. A cartografia do sr. Carlos Fausto levanta, como já mencionei acima, quatro locais sagrados: o Morená é um local geográfico e mítico localizado dentro do PIX; a gruta de Kamukwaká é um local geográfico e mítico localizado fora do PIX (e, devido ao seu grande valor mitológico e arqueológico, a Funai e o Iphan lutam para devolver aos índios); já o Sagihenhu e o Ahasukugu, apesar de terem sido arrolados entre os quatro locais sagrados, não são localizados pelo sr. Carlos Fausto na sua cartografia.
De acordo com os estudos que ele, vários outros etnólogos e eu realizamos, sabemos que os índios Kalapalo denominam Sagihenhu o local onde Sol e Lua, heróis culturais do Alto Xingu, netos do demiurgo Mavutsinin, realizaram o Primeiro Kwarup, em homenagem à mãe deles; muito mais do que uma cerimônia fúnebre de homenagem aos mortos, este feito tornou-se o modelo exemplar da cerimônia ritualística mais importante para os povos alto-xinguanos, por conferir-lhes identidade e, sobretudo, por constituir-se como fator de coesão cultural entre as etnias que formam o complexo cultural alto-xinguano. Não se discute, portanto, a importância que tem o Primeiro Kwarup para aqueles povos e que os interessados poderão consultar no sexto capítulo do nosso RELATORIO FINAL DO PROGRAMA DE PATRIMONIO CULTURAL, intitulado Estudos da mitologia sagrada dos povos xinguanos, com base no estudo que eu realizei.
Se o Sagihenhu não foi localizado pelo sr. Fausto, tampouco o Ahasukugu, igualmente importante para a mitologia alto-xinguana porque, de acordo com o mito, Ahasukugu é o local da aldeia da onça, pai de Sol e Lua, e onde eles dois teriam nascido. Esses dados são importantes aqui porque estão no cerne dos problemas que estamos discutindo. Ora, o empreendimento está sendo realizado no rio Kuluene, a 93,71 km lineares do limite sul do PIX ou a cerca de 200 km de distância do PIX, seguindo o traçado meândrico do rio Kuluene (cf. p. 31 do Relatório), numa região que os índios afirmam ter abrigado exatamente o Sagihenhu em questão. Se o sr. Fausto tivesse, ainda em 2004, localizado o Sagihenhu na sua cartografia sagrada ou, então, questionado a validade do contra-laudo realizado por profissionais que nem mesmo antropólogos eram, teria poupado a comunidade indígena de todo o desgaste por que estão passando desde então, bem como me teria poupado todo o trabalho de fazer o que eu fiz em campo e que passo a descrever.
Para o meu estudo, fiz a coleta de todas as variantes do mito do Kwarup, para o que eu visitei pelo menos uma aldeia de cada uma das nove etnias do alto-Xingu (Waurá, Kamayurá, Yawalapiti, Matipu, Kuikuro, Kalapalo, Aweti, Nafukwá e Mehinaku; mais outras três aldeias que visitei também: as aldeias Tanguro, Afukuri e Morená, dos povos Kalapalo, Kuikuro e Kamayurá, respectivamente, num total de doze aldeias visitadas), que ocupam as terras do alto Xingu, dentro do PIX. Eu não pretendia, nos quase quarenta dias corridos em que permaneci em campo, fazer uma exaustiva etnografia, tampouco uma acurada etnologia indígena, mesmo porque, como antropóloga, eu sei muito bem que não se faz um bom trabalho etnográfico com tão pouco tempo. Não contei com este trabalho, estar, tampouco, fazendo um laudo antropológico.
Eu fiz um trabalho pontual de coleta das variantes do mito do Kwarup, a fim de levantar, nestas variantes culturais do mesmo mito, elementos materiais nos relatos míticos, que permitissem aos meus colegas arqueólogos, localizar geograficamente o Sagihenhu, com vistas à investigação sobre a procedência da afirmação dos índios de que a obra está sendo construída em local sagrado deles, no local onde estaria o Sagihenhu. Coletadas as diversas versões ou variantes culturais do mesmo mito, solicitamos às lideranças do alto-Xingu que designassem, dentre eles, uma pequena comitiva de índios para nos acompanhar, a mim e a um arqueólogo da equipe, até o local em questão. O meu objetivo era obter in loco mais um relato do mito e, se possível, que o contador do mito e aqueles que o acompanhavam, indicassem pontual e geograficamente passagens e elementos materiais, presentes no mito, para auxiliar o estudo arqueológico, que estava sendo feito concomitantemente. Assim foi.
As lideranças indígenas concordam entre eles que os kalapalo sejam o povo mais autorizado para falar sobre o Sagihenhu, por isso, designaram entre eles, para nos acompanhar nesta visita: o cacique Tafukumã kalapalo (da aldeia Aiwa) e o cacique Arakunin Kalapalo (da aldeia Tanguro); além deles, eles indicaram dois tradutores para compor a comitiva: Luis Kalapalo e Tabatha Kuikuro. Além disso, no que me concerne no estudo, fiz a contextualização do universo cosmológico em questão, para o que me vali da literatura sobre os povos do alto-Xingu, incluindo-se o laudo do sr. Fausto (vários vezes citado), bem como os trabalhos anteriores dos vários pesquisadores dos povos xinguanos. Apresentei um rápido panorama do elevado nível da consciência política dos índios diante dos seus próprios problemas. Fiz uma rápida caracterização das aldeias que visitei, ressaltando a enorme boa vontade que os índios demonstraram em colaborar para o estudo, entendendo tratar-se do levantamento de dados e informações fundamentais para o estudo sobre impactos socioambientais que o Ministério Público exigiu da empreendedora, já que os dois laudos anteriores não foram suficientes.
Dentre as 123 páginas do meu trabalho no relatório, esclareço, em oito páginas inteiras, os métodos e procedimentos dos meus trabalhos de campo bem menos irresponsáveis e inconseqüentes do que levianamente o sr. Fausto julgou, a partir de duas passagens aleatórias do estudo. E, por fim, faço a análise simbólica da mitologia alto-xinguana e do mito do Kwarup, análise esta da competência de um especialista em imaginário antropológico e que ressalta a importância dos mitos para a integridade daqueles povos e para a preservação cultural das tradições, justificando os seus estilos de vida e dotando de significado as suas existências. Isto é um pouco diferente de um laudo antropológico, ou não?
Finalmente, sobre a outra acusação, igualmente grave e leviana do sr. Fausto no seu artigo, ele sugere que a empresa contratou profissionais para fazer um laudo para favorecê-la e prejudicar os índios. A Dra. Érika Robrahn-González terá a oportunidade de esclarecer melhor do que eu às comunidades acadêmicas e científicas sobre os objetivos e todo o aparato legal que amparou este nosso trabalho, bem como sobre as suas conclusões, uma vez que ela coordenou todo o trabalho; diga-se de passagem, com toda a competência que ela tem. Mais uma vez esclareço no entanto, sobre a acusação leviana do sr. Fausto, de que NÃO FIZEMOS UM LAUDO. Antes, FIZEMOS UM ESTUDO QUE É UM PROGRAMA DE DIAGNÓTICO DE PATRIMÔNIO CULTURAL, EXIGIDO PELO MINSTÉRIO PÚBLICO, COM O APOIO DO IPHAN E DA FUNAI, E QUE DETERMINA QUE O EMPREENDEDOR CUMPRA, OU SEJA, QUE ARQUE COM AS DESPESAS DELE DECORRENTES. Ora, uma exigência do Ministério Público não pode ser confundida com um trabalho pago pela empresa para favorecê-la.
Quão apressado, leviano, anti-ético e tendencioso foi o artigo do sr. Carlos Fausto, com todas as descabidas acusações que ele fez à toda a equipe e pontualmente a mim, conforme ele declara ....
Embora seja indelicado fazer considerações sobre a qualificação da equipe que executou os trabalhos, não posso me furtar a fazê-lo diante da imagem que vem sendo veiculada na imprensa e utilizada em diversos fóruns. Não pretendo analisar o currículo de todos os membros da equipe, composta por 20 pessoas, sendo quatro delas doutores. Interessa-me apenas focalizar a única antropóloga da equipe com titulação, Gláucia Buratto de Mello. Especialista em antropologia da religião e do imaginário, escreveu uma dissertação de mestrado sobre Caetano Veloso e um doutorado sobre comunidades alternativas religiosas no Brasil e sobre o milenarismo contemporâneo.
O sr. Carlos Fausto não deveria desabonar o trabalho de uma profissional altamente qualificada, que tem no seu curriculum quase vinte anos de pesquisa em lingüística, antropologia e sociologia, uma doutora antropóloga e socióloga, especialista em imaginário antropológico, com vários (e não apenas 3) artigos publicados sobre as pesquisas que ela já realizou, um livro inédito e a publicação francesa da sua tese de doutoramento. Se não sou uma antropóloga especialista em assuntos indígenas, conforme o senhor sugere e eu nunca disse o contrário, não pode o sr. Fausto julgar o meu trabalho, que é da minha competência fazer. Nada que se compare à retórica chula do sr. Fausto, quando escreve...
um ortopedista que aceite realizar um laudo sobre um problema neurológico
Eu fiz um competente estudo sobre o imaginário mitológico, que é da minha mais alta competência realizar. Como eu já disse acima, eu pouparei o meu leitor da minha apreciação quanto aos julgamentos levianos e preconceituosos do seu autor, um cientista social! Não vou comentar o que eu penso de um pesquisador que pinça no meu texto e no meu curriculum elementos e dados inteiramente fora de contexto, para afirmar que são metodologia minha ou qualificações minhas e que, na opinião dele, não me qualificariam para o trabalho que eu realizei.
Mas não posso me refutar aqui a considerar apenas alguns comentários preconceituosos que ele fez em relação aos meus objetos de pesquisa, sobretudo quando ele se referiu ao meu trabalho de dissertação de Mestrado. Será que o sr. Carlos Fausto julga que uma pesquisa sobre a cultura popular brasileira, que toma o caso de um legítimo expoente da MPB para a análise de símbolos e mitos sociais, seja uma antropologia menor? O sr. Carlos Fausto me desculpe, talvez, da próxima vez que eu me debruçar sobre um novo objeto de pesquisa antropológica, eu peça a sua licença para saber, antes, dele, se é legítimo o meu objeto de pesquisa, se eu posso fazê-lo, se é uma boa antropologia.
Nenhum antropólogo duvida da importância e das conseqüências dos laudos antropológicos. Quem está apto a fazer um laudo antropológico? qual é a capacitação necessária para fazê-lo? De quais critérios a ABA deverá se valer para a indicação dos especialistas em laudos antropológicos? Se o sr. Fausto queria trazer à tona este tema, ele poderia ser mais honesto, levantando objetivamente estas questões e eu não teria o desprazer de ter que explicitar aqui para os leitores sobre quem sou eu e o que eu fiz no relatório. Eu entendo que, na qualidade de cientistas sociais, devemos somar competências e esforços para a contribuição do conhecimento científico, para a melhor compreensão e inserção das comunidades que estudamos. É disso que devemos nos ocupar.
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