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Grilagem na rodovia BR-319: 2 - Grilagem de terras

Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br
Autor: FERRANTE, Lucas; ANDRADE, Maryane B.T.; FEARNSIDE, Philip Martin
02 de Ago de 2021

Grilagem na rodovia BR-319: 2 - Grilagem de terras

Por Philip Martin Fearnside
Publicado em: 02/08/2021

Por Lucas Ferrante, Maryane B.T. Andrade e Philip M. Fearnside

Uma série de medidas que facilitam a grilagem de terras foi promovida pelo Presidente Bolsonaro com o apoio da bancada ruralista no Congresso Nacional. "Grilagem" no Brasil se refere à apropriação ilegal de grandes áreas de terras do governo (quase sempre sob floresta amazônica), após o que essas áreas são frequentemente "regularizadas" (muitas vezes por meios corruptos) e, com ou sem "regularização", as áreas geralmente são subdivididas e vendidas posteriormente [1]. Observe que o termo "land grabbing" (a tradução em inglês de grilagem) difere do uso do termo na África e na Ásia, onde se refere à compra de terras agrícolas locais por interesses estrangeiros para culturas de exportação [2]. No Brasil, grileiros muitas vezes contratam pistoleiros para expulsar violentamente quaisquer pequenos agricultores ou outros reclamantes [3].

Em 10 de dezembro de 2019 o Presidente Bolsonaro emitiu uma medida provisória (MP-910) que permitia a legalização de reivindicações de terras de até 15 módulos fiscais (i.e., posses de 1.500 ha na Amazônia) por meio de uma mera "autodeclaração" de propriedade e, com exceção de casos especiais onde houver indícios de infração, sem qualquer forma de fiscalização in loco [4]. Isso tem o efeito de legalizar a grilagem na Amazônia [5]. A MP-910 vigorou por 120 dias, após o qual essa medida provisória foi transformada em projeto de lei (PL-2633/2020) [6]. Quando aprovada, esta será a terceira "lei da grilagem", as duas primeiras, em 2004 e 2017, tendo sucessivamente aliviado as restrições à regularização de reivindicações ilegais de terras [7]. Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados que permitiu a expiração da MP-910, não permitiu que o projeto fosse levado ao plenário para votação.

Isso mudou repentinamente em 01 de fevereiro de 2021, quando as presidências de ambas as casas do Congresso Nacional foram conquistadas pela coalizão "Centrão" de partidos políticos que apóiam Bolsonaro em questões relacionadas à agenda "ruralista", tornando a rápida aprovação provável [8]. Da mesma forma, está em andamento um projeto de lei no Senado (PL-510) que também legalizaria ações com base na autodeclaração e sem fiscalização [9]. A área máxima que pode ser legalizada por requerente tem aumentado sucessivamente: de 100 ha para 1500 ha em 2009 e para 2.500 ha em 2017 [10].

Também não foi levado ao plenário enquanto o Rodrigo Maia ocupou a presidência da Câmara dos Deputados o projeto de lei (PL-191/2020) apresentado ao Congresso Nacional pelo Presidente Bolsonaro em 05 de fevereiro de 2020 que abriria terras indígenas para mineração, barragens e agronegócio [11]. Se aprovada (como é provável), abriria terras indígenas para implantação dessas atividades por pessoas não indígenas, com consequências desastrosas tanto para os indígenas quanto para a floresta amazônica [12]. As terras indígenas do Brasil protegem mais floresta amazônica do que as unidades de conservação federais [13].

Uma medida provisória (MP901) também foi apresentada pelo Presidente Jair Bolsonaro que reduziria o percentual de áreas de propriedades rurais que o Código Florestal Brasileiro exige que sejam mantidas como "reserva legal" de 80% para 50% nos estados amazônicos de Roraima e Amapá [14]. Isso provavelmente pressagiaria uma mudança semelhante para outros estados amazônicos. Embora essa medida provisória também tenha expirado, é preocupante que possa ser elaborado um projeto de lei para implementar as mesmas disposições, como no caso da MP910.

Além de medidas que facilitam a grilagem de terras e incentivarem o desmatamento em terras públicas [15], o governo federal tem tomado medidas para abrir terras indígenas ao agronegócio. Entre elas está a Instrução Normativa no 9/2020, assinada pelo titular da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 24 de abril de 2020, que regulamenta a emissão do documento "Declaração de Reconhecimento de Limites", permitindo a ocupação e até mesmo a venda de áreas em terras indígenas [16, 17]. As terras indígenas estão sobre grande pressão do agronegócio, madeireiros e mineração (tanto por grandes empresas quanto por garimpeiros individuais), e os assassinatos de líderes indígenas aumentaram substancialmente por esse motivo [18, 19]. A Instrução Normativa no 9/2020 regularizaria a invasão em terras indígenas e em terras legalmente protegidas por outros povos tradicionais.

Em reunião ministerial no dia 22 de abril de 2020, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, opinou que o governo deve aproveitar a "oportunidade" apresentada pela atenção da mídia ser concentrada na pandemia de Covid-19 para aprovar mudanças "infra-legais" na regulamentação do meio ambiente e na regularização de reivindicações de terras ilegais, pedindo ao governo "passar a boiada", a "boiada" referindo-se às mudanças para enfraquecer a regulamentação ambiental [20].[21]

Notas

[1] Brito B, Barreto P, Brandão Jr A, Baima S & Gomes PH (2019) Stimulus for land grabbing and deforestation in the Brazilian Amazon. Environmental Research Letters 14: art. 064018.

[2] Oliveira GLT, McKay BM & Liu J (2021) Beyond land grabs: New insights on land struggles and global agrarian change. Globalizations 18: 321-338,

[3] Fearnside PM (2008) The roles and movements of actors in the deforestation of Brazilian Amazonia. Ecology and Society 13: art. 23.

[4] PR (Presidência da República) (2019) Medida Provisória No 910, de 10 de dezembro de 2019. PR, Brasília, DF. https://bityl.co/6NLA

[5] Branford S & Borges T (2019) Bolsonaro's Brazil: 2019 brings death by 1,000 cuts to Amazon - part one. Mongabay, 30 de dezembro de 2019.

[6] Congresso Nacional (2020a) PL-2633/2020. Câmara dos Deputados, Brasília, DF.

[7] Fearnside, P.M. 2020. O perigo da "lei da grilagem". Amazônia Real, 22 de maio de 2020.

[8] Ferrante L & Fearnside PM (2021) Reviravolta no Congresso Nacional ameaça Amazônia. Amazônia Real, 09 de março de 2021.

[9] Senado Federal (2021) Projeto de Lei no 510, de 2021. Senado Federal. Brasília, DF.

[10] Fearnside, P.M. (2021) Desmatamento ilegal zero, mais uma distorção do Bolsonaro. Amazônia Real, 26 de abril de 2021.

[11] Congresso Nacional (2020b) PL 191/2020. Câmara dos Deputados, Brasília, DF.

[12] Ferrante L & Fearnside PM (2020a) O Brasil ameaça terras indígenas. Amazônia Real, 06 de maio de 2020.

[13] Nogueira EM, Yanai AM, Vasconcelos SS, Graça PMLA, Fearnside PM (2018) Brazil's Amazonian protected areas as a bulwark against regional climate change. Regional Environmental Change 18(2): 573-579.

[14] Congresso Nacional (2019) Medida Provisória no 901, de 2019. Congresso Nacional, Brasília, DF.

[15] Ferrante L & Fearnside PM (2019) O novo presidente do Brasil e "ruralistas" ameaçam o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global. | Amazônia Real, 30 de julho de 2019.

[16] Batista JP (2020) Funai edita medida que permite ocupação e até venda de áreas em Terras Indígenas. Instituto Socioambiental.

[17] FUNAI (Fundação Nacional do Índio). (2020) Instrução Normativa No 9, de 16 de abril de 2020. Diário Oficial da União, Edição 76, Seção 1, p. 32.

[18] Hanbury S (2019) Murders of indigenous leaders in Brazilian Amazon hits highest level in two decades. Mongabay, 14 de dezembro de 2019.

[19] HRW (Human Rights Watch) (2019) Rainforest Mafias: How Violence and Impunity Fuel Deforestation in Brazil's Amazon. HRW, New York, EUA. 163 p.

[20] Youtube (2020). Reunião Ministerial em 22 de Abril, falas Ricardo Salles.

[21] Este texto é traduzido de: Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. 2021. Land grabbing on Brazil's Highway BR-319 as a spearhead for Amazonian deforestation. Land Use Policy 108: art. 105559. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2021.105559. A pesquisa dos autores é financiada exclusivamente por fontes acadêmicas. LF e MBTA agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). PMF agradece CNPq (429795 / 2016-5, 311103 / 2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03).
Os autores:

Maryane Bento Trindade de Andrade é mestranda em Ciências de Florestas Tropicais no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ela faz pesquisa sobre a dinâmica e estoque de carbono de florestas na zona de influência da BR-319.

Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Philip Martin Fearnside
É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br

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