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Escola indígena - o direito à diferença

Correio Braziliense, Direito & Justiça, p. 1
Autor: SIFUENTES, Mônica
22 de Abr de 2002

Em 1940, realizou-se em Patzcuaro, no México, o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, com a presença de diversos representantes de países da América, inclusive o Brasil. Dizem que, durante o evento, um dos presentes observou a ausência dos próprios índios, os verdadeiros interessados e destinatários do tema ali discutido, motivo pelo qual imediatamente se formou uma comissão, encarregada de convencê-los a participar. A empreitada logo se revelou nada fácil: desconfiados da repentina gentileza dos brancos, foram necessários alguns dias para que os indígenas acreditassem na importância do congresso para a garantia dos próprios direitos.

Aceito o convite, um ressabiado grupo finalmente adentrou o recinto onde se realizava o congresso, sendo entusiasticamente aplaudido pelos engravatados senhores que representavam os diversos países do continente americano. O dia era 19 de abril e a data, pela ''sua importância na história do indigenismo'', foi dedicada à comemoração do Dia do Índio nas Américas.

Em 1943, o presidente Getúlio Vargas, acolhendo a proposta subscrita pelo representante brasileiro no Congresso Indigenista, instituiu no país o dia consagrado aos índios (DL no 5.540, de 2/6/43). Ao estilo da famosa Lei Áurea, que decretou a abolição da escravatura, foi estabelecido em dois simples artigos: ''Art. 1o - É considerada Dia do Índio a data de 19 de abril; Art. 2o - Revogam-se as disposições em contrário''. Ponto final. Nenhuma medida social ou política a motivar a comemoração.

Melhor teriam feito os ilustres e bem intencionados participantes daquele memorável Congresso Indigenista se tivessem adotado como lema o refrão da música, composta décadas depois por Jorge Benjor, lembrando-se do tempo em que ''todo dia era dia de índio''. Lamenta-se que eles agora só tenham o dia 19 de abril.

Ironia à parte, o quadro descrito acima é emblemático de como se tem tratado a questão indígena nos séculos que nos separam do ''descobrimento''. Muito pouco, ou quase nada, se fez pela preservação de sua cultura, de seus costumes e de sua história, desde que os nossos índios foram apresentados às cortes européias como espécime exótico, sobre o qual Rousseau criou o mito do ''bom selvagem''.

A realidade vivida pelos nossos povos indígenas, passados mais de 500 anos, não é nada romântica.

Como juíza federal em Ilhéus, em 1994, ao dar cumprimento à Carta de Ordem emanada do Supremo Tribunal Federal, realizei inspeção judicial na aldeia dos Pataxós Hã-Hã-Hãe, no município de Pau Brasil, no sul da Bahia. Causou-me viva impressão a situação de penúria dos habitantes daquela que se convencionou chamar de aldeia Caramuru-Catarina Paraguaçu: umas duas centenas de barracos de pau-a-pique, sem a mínima infra-estrutura sanitária, uma sala dentro do posto da Funai com alguns medicamentos chamada eufemisticamente de ''posto de saúde'', poucas plantações, a água potável vindo de fora, a terra seca, que já fora uma grande plantação de cacau, a escola primária (até a 4ªsérie), funcionando precariamente com professores da própria comunidade, que, por sua vez, careciam de preparo. Nada semelhante ao que se espera encontrar em uma aldeia indígena. Era simplesmente uma aldeia de pessoas no limite da miséria.

O grupo que restou dos Pataxós Hã-Hã-Hãe, orgulhoso de ter sido uma grande nação, encontra-se tanto na Bahia quanto em Minas Gerais, praticamente aculturado. Isso quer dizer que os seus membros se adaptaram aos usos e costumes trazidos pelos brancos, mas continuam longe da sociedade civilizada, ou seja, aquela que presumivelmente oferece acesso aos meios básicos de sobrevivência: alimentação, higiene, saúde e, sobretudo, educação. Desconheço que outras tribos, salvo uma ou outra que tenham conseguido se preservar, escondendo-se mais e mais no coração das nossas florestas, vivam em melhores condições que os Pataxós.

Toda essa situação é, a meu ver, fruto de uma política que o tempo comprovou ser equivocada: a de que os indígenas deveriam ser ''incorporados'' à comunidade nacional, à civilização trazida da Península Ibérica pelos brancos. Sob o falacioso argumento de se tentar assegurar aos indígenas o direito à igualdade, na verdade negava-se-lhes o direito à diferença.

A Constituição de 1988, a primeira a trazer um capítulo inteiro dedicado aos indígenas, retratou a mudança de filosofia e postura a nortear o relacionamento dos indígenas com a sociedade instituída pelos brancos. Não bastava dizer, como ficou expresso no caput do art. 231, que o Estado lhes reconhecia a organização social, os costumes, as crenças e tradições. O verdadeiro instrumento para o resgate da identidade indígena, e esse foi um dos raros momentos de grande sensibilidade do legislador constituinte, estava em meio ao capítulo que cuidava da educação. Às comunidades indígenas foi conferido, pela norma constitucional, o direito de utilizarem os próprios processos de aprendizagem, bem como a sua língua materna (art. 210, 2o), no ensino fundamental regular. Vale lembrar que, de acordo com as normas jurídicas anteriores, apenas a língua portuguesa era admitida na alfabetização oficial.

A escola indígena passou a ser concebida, desse modo, como uma escola diferenciada e, sobretudo, bilíngüe. Deverá ser um espaço adaptado aos usos e costumes de cada tribo (e no Brasil são aproximadamente duzentas), onde a língua-mãe conviva pacificamente com o português, em intercâmbio positivo de culturas, como marca da diversidade tão peculiar ao nosso país.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 9.424/96) foi fiel a esse espírito, afirmando que a educação escolar fornecida aos índios deverá lhes proporcionar ''a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciências''.

Lamentavelmente, o processo de implantação das escolas indígenas tem sido lento: novas filosofias impõem mudanças de mentalidades, tanto no governo que as executa quanto na sociedade que as recebe e multiplica. Urge se tomem providências concretas, mais rápidas e eficazes, não sendo demais lembrar que o tempo torna irreversíveis alguns males. A escola indígena é a esperança de que afinal renasça, pelas crianças, a identidade cultural e, com ela, o respeito e a dignidade de cada um desses povos, herdeiros legítimos de um Brasil que já foi completamente verde, azul e amarelo.

Correio Braziliense, 22/04/2002, Direito & Justiça, p. 1

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