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Eles vão morrer logo mais

Veja, Ambiente, p. 68-73
07 de Jan de 2015

Eles vão morrer logo mais
O boto-cor-de-rosa é caçado para virar isca de peixe. E um crime, tratado até hoje com leniência, que a partir de 2015 passará a ter controle rigoroso

Jennifer Ann Thomas, de Tefé (AM)

A matança ocorre à noite. Os pescadores entram no Rio Amazonas, numa região conhecida como calha do Alto e Médio Solimões, no noroeste do estado, à procura de uma presa que, se a lei fosse seguida, não deveria ser alvo de arpões nem de redes: o boto-cor-de-rosa. A espécie, endêmica da região, é um dos símbolos da fauna brasileira, uma das mais diversas do planeta. O golfinho é um mamífero inofensivo a humanos. Além de subir à superfície a cada cinco minutos, é facilmente avistado de fora da água, em virtude de sua cor característica. Fascina os turistas, principalmente estrangeiros que vêm ao Brasil para admirar a natureza bela e crua, tida como intocada. Por séculos, a convivência do homem com os botos foi equilibrada. Sua carne, repleta de fibras musculares, é insossa. Por isso, não o caçamos. Era o que acontecia até os anos 2000, quando estudiosos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia notaram que os botos estavam sumindo em ritmo alarmante, com redução de 7% ao ano na população. O motivo: os pescadores descobriram que o animal é uma eficiente isca para capturar o piracatinga, peixe carniceiro vendido em mercados colombianos e do norte do Brasil. A matança noturna ignora a lei que protege a espécie, e em teoria deveria punir caçadores com prisão de seis meses a cinco anos. É um cenário que pode mudar a partir de 2015, já que a fiscalização finalmente aprimorou um modo de flagrar os criminosos, utilizando-se de recursos científicos na descoberta da cadeia bandida.
Todo ser vivo tem de tirar da natureza seu sustento. Mas nossa espécie supera qualquer outra no quesito destruição. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza, ao menos 200 espécies são extintas todos os anos em consequência de ações humanas. Há neste momento 20 000 em risco de sumir do planeta. No Brasil, 1173 estão à beira do desaparecimento, segundo relatório divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente. Entre elas figuram animais que só podem ser encontrados em habitats da América do Sul, a exemplo da ararinha-azul, do mico-leão-dourado e do boto-cor-de-rosa.
O golfinho brasileiro de água doce é capturado facilmente em redes - e nem esboça reação, já que por séculos esteve acostumado a uma relação pacífica com humanos. Os caçadores não distinguem machos, fêmeas ou filhotes. Matam todos e os cortam em pedaços, transformados em isca para pegar o piracatinga. "Um boto nos rende entre 350 quilos e 1 tonelada de peixe", diz Juvenal dos Santos, pescador da cidade de Tefé (AM), ao confessar um crime ambiental que deveria levá-lo à cadeia. "Consigo pegar mais de um boto por dia, então é possível calcular quanto isso dá de lucro", acrescenta. A turma de Badá Cunha, de Manacapuru (AM), garante ser ainda mais tristemente eficiente: um grupo de outros oito pescadores captura 3000 exemplares de boto por ano.
Quem deveria impedir a matança? O Ibama, o Ministério Público, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas e, em última instância, o Ministério do Meio Ambiente. Por que não fizeram isso até agora? "É impossível fiscalizar o Amazonas", protege-se o procurador da República no estado, Rafael Rocha. Mas ele mesmo já apresenta uma solução: "Em vez de investir em ter 100 000 homens procurando caçadores, pode-se cortar o sistema pelo topo, pelos frigoríficos, os que mais lucram com o comércio ilegal".
Deu-se um primeiro passo com uma moratória que proíbe por ao menos cinco anos, contados a partir deste mês, a pesca de piracatinga - afinal, capturar esse peixe é a principal razão de os botos serem transformados em iscas. Agentes de fiscalização, por incompetência ou má-fé, dizem nunca ter flagrado um caçador em ação. Mas há até um vídeo da Associação Amigos do Peixe-Boi mostrando a pesca ilegal. VEJA visitou uma série de confessos caçadores e frigoríficos que vendem toneladas de piracatingas sabendo que foram pescados com iscas do golfinho ou, o que também configura crime ambiental, com carne de jacaré (a alternativa mais abundante, mas ao mesmo tempo mais perigosa). Apenas no maior frigorífico de Manacapuru há cerca de 50 toneladas do peixe em estoque. Estima-se que pelo menos metade tenha sido pescada atraída por tripas de boto. Os 64 frigoríficos da região exportam todos os anos 1550 toneladas de piracatinga para a Colômbia. Para que isso ocorra, 4000 botos são mortos. Em restaurantes e mercados do Norte, porém, o piracatinga é vendido com outro nome, douradinha, para tentar disfarçar o indisfarçável, o crime cometido por toda a cadeia de pesca, distribuição e venda (veja o quadro na pág. 70).
O Ministério Público desconfia da existência de uma quadrilha organizada, chefiada por homens que ganharam o apelido de "patrões da pesca" e estão sob investigação. As pistas levam a crer que são os próprios donos de frigoríficos. Na pesca de piracatinga poderiam ser usadas iscas regulares, como a de boi. O boto é preferido por duas razões. A primeira é puramente mesquinha: a carne de boi precisa ser comprada, enquanto o boto é capturado sem custos, para além da desfaçatez moral. A segunda mostra a crueldade desses caçadores. O boto solta um cheiro que atrai enormes cardumes. Por isso, os pescadores gostam de despedaçá-lo e espalhar as partes pela beira do rio, como armadilhas para que o piracatinga caia nas redes.
Para chegar aos "patrões da pesca", a fiscalização desenhou um plano elaborado. Amostras de piracatinga foram analisadas por geneticistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mesmo no caso de a isca ter sido usada há mais de um ano, o DNA do boto (ou do jacaré) continua no estômago do peixe. Detectá-lo é evidência de que o produtor levou ao mercado o piracatinga pescado com boto. Diz Haydée Cunha, chefe do projeto da UFRJ: "A ciência forense é o melhor caminho para chegar a qualquer matador, inclusive o de animais. Tenho certeza de que, se identificarmos onde estão os resquícios do DNA da espécie ameaçada, chegaremos aos culpados".
Os pescadores amazonenses reclamam, é claro - e convém lembrar que os honestos pagam o pato pelos desonestos. O esforço maior da fiscalização em 2014, de modo a preparar o terreno para a proibição da pesca de piracatinga agora a partir de 2015, fez com que eles trabalhassem com cautela. Um deles, Nilson de Oliveira Cunha, revela já ter abandonado a isca ilegal, a contragosto, para trocá-la pela de boi. "Não é bacana ser preso", diz, para avançar na certeza de impunidade, "mesmo sabendo que ficaria muito pouco tempo na cadeia". A reportagem de VEJA acompanhou Cunha durante uma pesca de piracatinga com boi. Ele só se queixava: "Se tivesse boto, já estaria cheio de peixe. Mas, como é boi, demorou a aparecer".
À fragilidade do controle soma-se a arte dos fiscais de circular pelas áreas de pesca olhando para o lado contrário de onde está um caçador irregular. Antes desse renovado esforço para pegar os criminosos, mesmo organizações criadas para garantir a defesa dos animais silvestres fingiam que nada acontecia - ou, quando é ainda mais preocupante, chegavam a deixar que os pescadores cometessem o crime em áreas de preservação onde atuam.
O caso mais grave, e que simboliza o cenário de "terra de ninguém" da Amazônia, é o do Instituto Mamirauá. Em 2014, a organização conservacionista, fomentada pelo governo federal, publicou o livro A Mortalidade de Jacarés e Botos Associada à Pesca de Piracatinga na Região do Médio Solimões, no qual contabiliza o abate de 2300 jacarés na área sob seu cuidado, mas de nenhum boto. Em apenas uma semana na Amazônia, VEJA identificou uma série de réus confessos da captura do boto no Rio Solimões. Pesquisadores do Instituto Mamirauá, contudo, negam a caça do boto - os que aparecem mortos, asseguram, morreram naturalmente ou emalhados em redes de pesca.
Ex-funcionária do Mamirauá, a bióloga Verónica Iriarte escreveu em 2013 um relatório no qual afirma ter "coletado evidência empírica que indica que o boto é usado como isca nos rios da reserva ambiental". No mesmo ano, e-mails trocados por pesquisadoras do instituto e um aluno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com o qual o Mamirauá tem uma parceria firmada, destacavam que ao menos 363 amostras de isca de boto-cor-de-rosa foram coletadas nas reservas de Mamirauá. Um dos animais mais belos de nossa fauna, antes numeroso na Amazônia, está à beira da extinção pelo claro descaso tanto da fiscalização do governo federal quanto de conservacionistas que, embora contratados para protegê-lo, constroem uma parceria que, evidentemente, preocupa pela irresponsabilidade.

Veja, 07/01/2015, Ambiente, p. 68-73

http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-boto-cor-de-rosa-e-cacado-pa…

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