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Ao índio foragido

Estado de S. Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
09 de Abr de 2002

No fundo da mata, onde se esconde, Payakan podia pensar em qual a melhor contribuição lhe resta dar à causa que o lançou à fama

Paulinho Payakan, cacique da tribo dos Kayapós, era uma das principais lideranças indígenas quando, há exatamente 10 anos, foi acusado de, embriagado, agredir e estuprar a estudante Sílvia Letícia da Luz Ferreira, de 18 anos, em Redenção, no sul do Pará. Dois anos depois do episódio, Payakan foi absolvido num primeiro julgamento. Submetido a uma segunda apreciação, em 1998, foi condenado a seis anos de prisão, em regime fechado. Sua esposa, Irekran, que o teria ajudado a imobilizar a estudante, foi impronunciada. Prevaleceu o argumento da defesa, de que ela não tinha consciência do que estava fazendo; era uma "índia pura". Mas o grau de aculturação do marido não lhe permitiu tirar benefício da tese.

Em último grau de recurso, o Supremo Tribunal Federal confirmou a sentença condenatória imposta ao cacique. Há um mês e meio, entretanto, Payakan está fora do alcance dos agentes da Polícia Federal, chamados a cumprir o mandado judicial. Ele se refugiou em algum ponto da reserva dos Kayapós, a terceira maior do país, com 3,2 milhões de hectares. Sua localização nesse mundo de floresta e água, com poucas vias de acesso, é difícil. Mais problemático ainda é sua retirada da área: os Kayapós, que somam dois mil índios, já advertiram que a prisão do cacique será interpretada como uma declaração de guerra. Reagirão a ela como guerreiros, com perfeito domínio do "teatro de operações".

A persistência dessa situação de impasse e indefinição desgasta o poder público, do judiciário ao executivo. Mas desgasta também a "causa indígena", que o cacique sempre usou como escudo protetor e meio alquímico para transformar um crime comum hediondo em um delito político. É desmoralizante testemunhar a impotência do aparelho de Estado na execução de uma decisão legal. A Polícia Federal está sendo obrigada a negociar a rendição do cacique, seguidas vezes anunciada e frustrada. Mas uma solução de força pode resultar em muitas mortes, sem a certeza de cumprimento da ordem superior.

A fórmula conciliadora proposta diante da circunstância especial, bem amazônica, não é mais honrosa: Payakan cumpriria a pena na própria aldeia, como se estivesse submetido a prisão domiciliar, da qual ele e os seus serão árbitros e fiadores. O problema é que a natureza do crime não casa com pena tão branda, que acabaria funcionando como mera penitência. Os próprios súditos do cacique não aceitam essa hipótese remediadora, interpretando-a como a imposição da lei dos brancos em pleno território indígena.

Voltar a ser índio

Alguém com mais senso de humor, e também com um misto de ceticismo e cinismo, concluiria do imbróglio envolvendo as tratativas entre a justiça, a polícia, a Funai e os índios que a fórmula conciliatória acabaria por impor a Payakan a pena de... voltar a ser índio. Como tem feito na maioria do tempo desde 1998, indo pouco a cidades com receio de ser preso, agora ele teria que ficar na própria aldeia ao longo de seis anos seguidos. Seria, de fato, um castigo para o cacique?

Payakan tem boa casa e comércio ativo em Redenção, a maior cidade às proximidades da aldeia A-Úkre. Já foi dono de outra casa em Belém. Não era incomum, alguns anos atrás, encontrá-lo no lobby do Hilton Belém, o único cinco estrelas da capital paraense, ou dirigindo seu carro esportivo com ar condicionado, vidro elétrico e outros acessórios, como película. Gostava de usar roupas de griffe e óculos escuros caros. Era, afinal, personalidade internacional, premiado pela ONU com o Global 500 por sua luta em favor da ecologia.

Essa luta alcançou seu ápice em 1989. Payakan foi um dos organizadores do I Encontro dos Povos Indígenas, realizado em Altamira, na Transamazônica, para protestar contra a construção de grandes barragens hidrelétricas na Amazônia (sua irmã, Tuíra, agitou ameaçadoramente um facão a centímetros do rosto de um dirigente da Eletronorte). O alvo mais direto era a usina de Kararaô (hoje rebatizada para Belo Monte), no Xingu, o rio que drena grande parte dos territórios indígenas mais centrais e isolados da margem direita do Amazonas. Payakan brilhou ao lado do roqueiro inglês Sting e outras celebridades. Chegou a ser levado a Washington pelo etnobotânico Darrel Posey para convencer o Banco Mundial a não mais conceder empréstimos a grandes aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia, por seu impacto sobre o meio ambiente e as populações indígenas.

O objetivo foi alcançado. Logo depois, dizendo-se ameaçado de morte, Payakan pediu socorro a ONGs internacionais ambientalistas. Durante seis meses circulou por várias partes do mundo, quase como um exilado político, cercado por mulheres solidárias e bebidas reconfortadoras. De volta ao Brasil, sentiu que sua taba era pequena demais e restritivos os horizontes de um simples cacique. O constrangedor episódio do estupro foi uma espécie de Tordesilhas para Payakan, um pé estabelecido sobre suas responsabilidades de líder de uma das mais ativas comunidades indígenas e outro no usufruto das prerrogativas dessa condição.

Contracanto

Em plena semana da Eco-92, o encontro internacional sobre ecologia e desenvolvimento realizado no Rio de Janeiro, a matéria de capa com a qual a revista Veja rompeu o silêncio em torno do crime, carregando nas cores do preconceito e nos tons sensacionalistas, provocou um enorme impacto. Foi o contracanto à crescente canonização do líder seringueiro Chico Mendes, assassinado quase três anos antes no Acre por um obscuro e selvagem fazendeiro, indiferente à fama mundial de sua vítima, vista apenas como insuflador de invasores, não como o mártir da ecologia. O líder de uma minoria racial, que conseguira dar repercussão incomum à causa em função da competência com que se houve na sua divulgação, cometia o mais abjeto dos crimes contra outra minoria, ainda minoria no mundo dos brancos a despeito de tudo, e sobretudo nos sertões amazônicos: a mulher.

Payakan também contribuiu involuntariamente para o arrefecimento de uma bandeira de luta dos índios xinguanos: a unificação de todas as reservas situadas no interflúvio Araguaia-Xingu-Tapajós. Juntas, elas somariam 12 milhões de hectares, 30% mais do que a maior reserva indígena, recém-criada na época, a dos Yanomamis, entre Roraima e o Amazonas, com 9 milhões de hectares, que tanta celeuma (e mortes) provocou.

A causa sagrada dos índios xinguanos talvez não atraísse tanta ira, se tivesse ido em frente. Se até alguns anos antes eles eram uma barreira intransponível às invasões das frentes pioneiras nacionais, agora já faziam numerosos acordos comerciais com espertos intermediários da exploração do principal recurso existente em seus domínios, a árvore de mogno, o ouro verde.

Além de permitir a extração da madeira, os índios poupavam os madeireiros de ter que cumprir a legislação florestal, que lhes impunha o reflorestamento da área aproveitada. A partir da premissa de que a exploração por terceiros dos recursos naturais das reservas indígenas é ilegal, a sua prática passava a ser acobertada pela leniência ao crime. Seja dos índios como das autoridades públicas encarregadas da questão.

Aberta a primeira fresta, a porta acabaria escancarada. Além de madeireiros, empresas interessadas em utilizar essências, óleos ou plantas do território indígena se apresentaram para oferecer novos contratos às tribos e, de quebra (ou como mais-valia extra), presentes, que podiam ir de quinquilharias a avião. Desde que, naturalmente, pudessem também usar a imagem dos índios e do seu habitat.

O ingresso no mundo do dinheiro e do que ele proporciona de melhor (ou mais tentador), o consumismo, não foi incondicional. Algumas lideranças impuseram limites e trataram de fiscalizar o cumprimento das regras estabelecidas. Esses cuidados permitiram que, mesmo acessíveis aos extratores de madeira, as áreas indígenas ainda se mantivessem como as menos devastadas, ou mesmo as mais íntegras. Mas a dinâmica do ato de comprar e vender, de pagar e reter, de aplicar e gastar, pode ter feito de Payakan uma de suas vítimas, como já fora mortal para a primeira das grandes lideranças indígenas do país, o Xavante Mário Juruna, o primeiro parlamentar índio da história brasileira.

A história das relações contemporâneas entre os descendentes dos primeiros habitantes do Brasil e os sucessores dos colonizadores europeus, indo dos Waimiri-Atroaris da mina do Pitinga aos Gaviões da aldeia Mãe Maria, ou dos Kayapós aos Xavantes, é rica demais para caber em apressadas abordagens jornalísticas ou coniventes (e convenientes) enfoques de parceiros antropológicos e afins. Independentemente de seus enredos, elas resultaram no aniquilamento das mais notórias lideranças, afogadas pelas ondas deletérias derivadas dessa relação.

No fundo da mata, onde se esconde de uma sentença cristalinamente estabelecida em processo judicial regular, bem que o cacique Payakan podia pensar em qual a melhor contribuição que lhe resta dar à causa que o lançou à fama e, nela, ao ocaso. Depois de ter feito tanto em benefício dos seus irmãos, já é hora de parar de lhe causar constrangimentos. Seguramente, para voltar a ser uma liderança entre dois mundos é preciso que vença os desafios de um e de outro, submetendo-se a um para recuperar a autoridade moral de outro. Enquanto pode.

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