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Ameaça de extinção da Seind causa revolta em índios do Amazonas

Amazônia Real - http://www.amazoniareal.com.br
Autor: Elaíze Farias
03 de Fev de 2015

O governador reeleito do Amazonas, José Melo (PROS), planeja extinguir várias das 35 secretarias que existiam na gestão anterior, para equilibrar os gastos públicos e garantir investimentos nos quatro anos de mandato. Entre as pastas em vias de corte, está a Secretaria de Estado para Povos Indígenas (Seind), considerada uma referência nacional por ser o primeiro órgão indigenista estadual do país criado por lei. Na Amazônia, outras secretarias estaduais indígenas foram criadas, seguindo o exemplo da Seind.

Resultado de uma longa mobilização de indígenas do Amazonas que remonta a década de 90, a Seind foi criada, em 2009, pelo ex-governador e hoje ministro das Minas e Energia, Eduardo Braga (PMDB). A secretaria nasceu para substituir a Fepi (Fundação Estadual dos Povos Indígenas), criada no governo de Amazonino Mendes (PDT), em 2001.

À agência Amazônia Real, o novo líder do governo na Assembleia Legislativa do Amazonas, deputado estadual David Almeida (PSD) disse que, em reunião na quarta-feira (28), o governador José Melo comunicou que a Seind seria uma das secretarias extintas. "A Seind vai ser incorporada em outra secretaria", afirmou o deputado.

Em entrevista à reportagem nesta terça-feira (03), o governador José Melo não confirmou a extinção da secretaria indígena. "Até agora não disse que vou extinguir a Seind. Evidentemente que se tivesse esse condão, eu iria consultar todos os interessados. São quase 300 mil índios e 63 etnias. Portanto, tem que ter tratamento diferenciado", afirmou.

O fato é que o possível corte da Seind provocou uma reação imediata das lideranças indígenas do Amazonas. Desde a semana passada, elas tentam formalizar um diálogo com o governador, sem sucesso. Nesta segunda-feira (02), diretores da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) pediram uma audiência com Evandro Melo, chefe da comissão da reforma administrativa e irmão do governador, mas também não foram atendidos.

Nesta terça-feira (03), cerca de 300 indígenas fizeram um protesto em frente ao auditório Belarmino Lins, anexo da Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM), na zona centro-sul de Manaus. No plenário da Assembleia Legislativa aconteceu a solenidade de leitura da Mensagem Anual do Governo.

A reportagem da Amazônia Real acompanhou todo o desenrolar do protesto dos indígenas. Eles não puderam entrar no auditório do plenário da Assembleia. Seguranças avisaram que o local estava "lotado". Eles foram encaminhados a acompanhar a solenidade por telões internos do auditório Belarmino Lins, onde não havia autoridade alguma para ouvi-los.

Os indígenas que se manifestavam contra a extinção da Seind também não foram procurados por parlamentares. Eles foram embora da Assembleia por volta das 11 h (horário local) sem ser ouvidos por algum membro do governo do Amazonas.

Em outra tentativa de dialogar o fim da secretaria, uma comissão de lideranças indígenas das etnias Sateré-Mawé, Tenharim, Mura, Tukano e Ticuna, entre outras, marcou uma reunião ainda nesta terça-feira (03) com o presidente da Assembleia Legislativa, Josué Neto (PSD). As lideranças disseram, posteriormente, que a reunião havia sido cancelada pelo parlamentar.

O indígena da etnia Tukano Maximiliano Correa, coordenador-geral da Coiab, articulador da reunião com o presidente da Assembleia e com representantes do governo, disse que no encontro previsto com o deputado estadual Josué Neto, as lideranças queriam conversar para tentar convencê-lo a orientar os demais parlamentares a não votarem pela extinção da Seind, já que o projeto que prevê corte das secretarias será enviado à Casa para votação.

"Estamos todos insatisfeitos com a decisão do governador. Ele deveria, em sinal de respeito com nós indígenas, consultar as organizações, como a Coiab, para avaliar o trabalho da Seind. Discutir questões financeiras, discutir os projetos desenvolvidos, se há demandas ou não, o que é útil para a comunidade. A partir dessa conversa tomar uma decisão conjunta", disse Correa.

Segundo Maximiliano Correa, com a extinção e a possível transferência das ações para um departamento vinculado à outra secretaria, as políticas públicas para os povos indígenas perderão autonomia.

"Isso representa um fracasso para nós, porque os povos lutaram tanto por isso. Isso é uma grave violação contra os direitos dos indígenas. Fiz parte das discussões que criaram a Fepi e aquilo representou um grande avanço", disse Correa.

Apesar de ser favorável à manutenção da Seind, o coordenador da Coiab critica a condução da gestão da secretaria e o baixo orçamento da pasta.

"Há necessidade da Seind continuar existindo, mas não com a continuidade que está aí. É preciso uma nova equipe, com novo pensamento e mais articulada para buscar recursos", disse Correa.

Quem votou em Melo se diz traído

No protesto na Assembleia Legislativa do Amazonas, muitos indígenas afirmaram que se sentiram traídos por José Melo e destacaram que votaram no político e fizeram campanha eleitoral para ele, em 2014.

"Não esperávamos uma decisão dessas. Votei e subi no palanque com ele em Tabatinga (a 1.108 quilômetros de Manaus). A Seind nos atendeu muito pouco, mas também não tinha dinheiro. E não queremos que acabe. Queremos que ela siga em frente como secretaria e que se faça a mudança da parte das pessoas que estão ali dentro para que o órgão seja conduzido melhor", disse José de Souza Ferreira, 52, mais conhecido como Zeca Cocama, da etnia cocama, morador da aldeia Luiz Ferreira, na região do Alto Rio Solimões.

Raquel Santos, da etnia Munduruku e moradora da Terra Indígena Quatá-Laranjal, município de Borba (a 151 quilômetros de Manaus), se disse "revoltada".

"Isso é revoltante. Entra um governo que buscou apoio dos parentes e muitos de nós levaram bandeira para a rua, pregaram cartazes nas suas casas. O governador não conhece a realidade dos indígenas de nosso Estado", disse.

Raquel destacou que a Seind é uma conquista do movimento indígena, que surgiu de muito diálogo e abriu oportunidade para os indígenas.

"É uma secretaria que tem dificuldade por falta de dinheiro, mas sem ela vai ser pior. Sua extinção será um retrocesso muito grande. Pensa só: se como secretaria já tinha dificuldade de atuar, imagine como apenas um departamento de outra secretaria", disse Raquel.

O indígena Clóvis Rufino, da etnia Marubo, morador da Terra Indígena Vale do Javari, também se mostrou contrário à extinção da Seind. Ele disse que o órgão é uma instância de Estado que facilita o diálogo dos povos indígenas com o gestor e representa o Amazonas nos grandes fóruns mundiais em apoio aos povos indígenas.

"O Vale do Javari vai perder R$ 4 milhões de reais que estão previstos nos projeto de desenvolvimentos que foram aprovados pela Seind", disse.

Ele contou que, especificamente na região do Vale do Javari, o órgão deu apoio nas realizações de oficinas que criaram subsídios para apresentações de demandas das associações indígenas daquele território. Também atuou em parcerias que facilitaram as ações com Barco PAI, que beneficiaram os 5,4 mil indígenas do Vale do Javari.

Rufino contou que não esperava que o governador do Amazonas se posicionasse pela extinção da Seind.

"Os povos indígenas do Amazonas apoiaram sua candidatura com esperança de melhorar a secretaria para que ela funcionasse com condições estrutural, humana e financeira. Isso significa para nós do Vale do Javari a volta ao passado e a continuação da marca de discriminação por parte do Estado. Agindo assim, o governador não cumpre sua promessa de campanha e trai os indígenas", disse.

Governador diz que está indeciso

Embora nos bastidores do governo é certa a extinção da Seind, o governador José Melo disse à agência Amazônia Real que somente na tarde desta terça-feira (03) é que iria avaliar a estrutura de reforma administrativa que foi montada para dar "seu toque especial".

Durante seu discurso na Assembleia Legislativa do Amazonas, Melo afirmou que "não vai acabar com as políticas para os indígenas" e que vai "aprimorar os serviços", mas não fez referência à possível extinção da Seind.

"A partir de hoje (03) vou tratar do assunto. Vou avaliar o projeto de reforma que me foi apresentado. Eu não quero acabar com nada, quero aprimorar. Mas não posso continuar com a estrutura de custo de pessoal que tenho hoje. Tem que ter sacrifícios de todos os lados. Para que a gente possa reduzir os custos da máquina. Não é que eu quero fazer, é inexorável. Mas não tenho ainda o formato na minha cabeça quem vai acabar, quem não vai acabar", disse Melo, em entrevista aos jornalistas

O governador afirmou que até a próxima sexta-feira (06) deverá concluir a análise e na segunda-feira (09) ou terça-feira (10) encaminhará o projeto para votação na Assembleia Legislativa.

Segundo José Melo, o governo do Amazonas tem 5,9 mil cargos comissionados em suas estruturas. Ele disse que a reforma administrativa prevê cortes de até 20% destes cargos. Atualmente, o governo possui 35 secretarias de Estado. Outra que também pode ser extinta é a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia (Secti).

O deputado estadual David Almeida (PSD) disse que o corte nos gastos públicos prevê uma economia de R$ 700 milhões para serem aplicados em investimentos no Estado do Amazonas.

Projetos e parcerias

O orçamento atual da Seind é de R$ 4,412 milhões, segundo o titular da pasta, Bonifácio José, da etnia baniwa. A secretaria tem 38 funcionários em cargos comissionados e funciona em um prédio alugado no Centro antigo de Manaus.

Segundo Bonifácio José, 30% do orçamento são destinados à folha de pagamento dos servidores (não há funcionários concursados). Outros 30% vão para custos administrativos. O restante vai para o orçamento-fim, sendo que 20%, contudo, são contingenciados. O gestor da pasta considera o orçamento muito irrisório, pois significa apenas 0,4% do orçamento total do Estado - a receita do Amazonas foi de R$ 15 bilhões em 2014, segundo o site do governo do Estado.

Bonifácio classificou de "falta de respeito" contra os povos indígenas a extinção da Seind em um Estado com "mais de 170 mil índios vivendo com 33 milhões de território".

Bonifácio José, assim como outros indígenas entrevistados para esta reportagem, estão preocupados com o futuro das parcerias firmadas em 2014. Somente com BNDES, a Seind firmou parceria de R$ 16 milhões. Outras fontes de recursos também foram celebradas, como o Fundo Amazônia, por exemplo, que resultariam em um total de R$ 60 milhões a partir de 2015. Segundo Bonifácio, essas parcerias só foram possíveis de serem firmadas devido à credibilidade e autonomia administrativa da Seind.

"Somos uma secretaria pequena, mas mesmo assim temos mostrado nossa capacidade e credibilidade, executando o que é possível fazer. Mas esse valor aumentaria a partir de agora, com as parcerias", disse.

Entre as atividades realizadas pela Seind desde 2009, Bonifácio José citou a realização de capacitação com professores do Cetam (Centro de Educação Tecnológica do Amazonas) na formação de 400 técnicos em enfermagem indígenas de 15 municípios do Amazonas.

Outra atividade citada foi a elaboração de planos de gestão destinados a terras indígenas Tenharim Marmelos, com os índios tenharim, e Camicuã, com os índios apurinã. A ação, além de capacitação, também inclui compras de equipamentos de monitoramento territorial, transportes e construção de casas de farinha e criação de peixe em cativeiro.

"Nesse período assessoramos 16 secretarias municipais dos povos indígenas que foram criadas no Amazonas. Temos trabalho de interface com 52 instituições do Estado. A criação da Seind também tem importância simbólica, pois foi referência em outros Estados para que seus governos criassem suas próprias secretarias indígenas, como ocorreu no Acre, no Tocantins, no Amapá e agora em Roraima ", disse.

Política de assistencialismo

O antropólogo Ademir Ramos, que foi o primeiro presidente da Fepi, disse que a criação da Seind consolidou a política indigenista no Amazonas, sob a direção dos próprios indígenas, daí a necessidade de garantir a sua continuidade.

"Esse cenário que estamos vivendo hoje eu vivi anos atrás, quando o Eduardo Braga tentou acabar com a Fepi. Ele queria reduzir para uma secretaria executiva. Conseguimos, eu e lideranças indígenas, uma audiência, que foi tensa, mas mesmo assim ele reconsiderou e anos depois criou a Seind. Mudou a tabuleta, mas não mudou o orçamento. O que dá para fazer com R$ 4 milhões anuais num Estado com quase 200 mil índios? Embora os recursos sejam mínimos, mas criou-se um status de política de Estado com a secretaria", explicou Ramos.

Para Ademir Ramos, a justificativa do governo de que a extinção vai economizar gastos representa "uma verdade curta, burocrata e economicista".

"O que representa R$ 4 milhões para a estrutura do Estado? Se a Seind for extinta e se converter em um departamento de uma Secretaria de Ação Social será uma atividade assistencialista e deixará de ser política de Estado", afirmou.

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