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Território Matsés: articulação sem fronteiras contra a exploração petrolífera

Boletim Isolados - http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br
Autor: Rafael Nakamura
02 de Mai de 2016

A bacia do rio Jaquirana, continuação do rio Javari na região de fronteira do estado do Amazonas, no Brasil, com o departamento de Loreto, no Peru, é tradicionalmente ocupada pelo povo Matsés, cujas aldeias ficam localizadas nas duas margens ao longo do rio que divide os dois países. No lado brasileiro, os Matsés (também chamados de Mayoruna) vivem na Terra Indígena (TI) Vale do Javari. Homologada em 2001, ela também abriga territórios dos povos Kanamari, Korubo, Kulina, Marubo, Matis, Tsohom Dyapá e isolados - trata-se do maior número de registros de isolados em uma mesma TI, 11 deles confirmados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

No outro lado da fronteira, os Matsés vivem nas aldeias da Comunidad Nativa Matsés (CNM) e utilizam a Reserva Nacional Matsés, a proposta de Reserva Territorial Yavarí-Tapiche e o recém-categorizado Parque Nacional Sierra del Divisor, áreas que fazem parte do território ancestral Matsés e também de povos indígenas isolados. A bacia compreende reservas de petróleo e gás, fato que há tempos desperta o interesse de empresas do ramo e traz insegurança para os povos indígenas que habitam a região. No momento, a situação de maior alerta é no Peru, onde lotes concessionados para empresas petrolíferas estão sobrepostos a esses territórios.

Atualmente, as principais ameaças em território Matsés no Peru são os lotes 135 e 137, concessionados em 2007 pela Perupetro, agência reguladora estatal peruana encarregada dos contratos de exploração de hidrocarbonetos. Os contratos, de 40 anos de duração, foram firmados com a empresa Pacific Stratus Energy S.A, cuja sucursal no Peru é uma subsidiária da Pacific Exploration & Production Corporation, empresa canadense que também atua na Colômbia, Guiana, Guatemala, Brasil e Belize.

O lote 135 se sobrepõe a uma grande área do Parque Nacional Sierra del Divisor, à quase totalidade da proposta de Reserva Territorial Yavarí-Tapiche (para isolados) e a uma parte da Reserva Nacional Matsés. Mais ao norte, o lote 137 se sobrepõe a 36% da Reserva Nacional Matsés e a 49% da CNM, segundo informações da organização peruana Centro para el Desarollo del Indígena Amazónico (Cedia). Os dois lotes fazem limite com a fronteira com o Brasil, que coincide com limites da TI Vale do Javari, o que explica a preocupação de outros povos indígenas que habitam esta região com a possibilidade de exploração do petróleo.

Já de início, quando os lotes 135 e 137 foram concessionados, os Matsés passaram a manifestar sua posição contrária à exploração de petróleo em seu território - atividades exploratórias realizadas nas décadas de 1970 e 1980 tiveram graves impactos sobre o povo Matsés em ambos os países. Em 2009 esse posicionamento ganha força com a I Reunião Binacional Matsés Brasil Peru. Pela primeira vez, os Matsés que vivem no Brasil, atualmente representados pela Organização Geral Mayoruna (OGM), e no Peru, representados pela Comunidad Nativa Matsés, se reuniam formalmente para fortalecer seus vínculos na luta pela proteção de seu território tradicional. "A reunião binacional Matsés, que acontece todos os anos, é uma aliança estratégica na luta que travamos continuamente contra a exploração de petróleo em nosso território", explica Felix Mebu Tumi Menque, jovem liderança da aldeia Buenas Lomas Nueva, da CNM.

As reuniões seguiram acontecendo e com o passar dos anos os Matsés fortaleceram sua atuação política conjunta na proteção de seu território. A presença de autoridades dos Estados peruano e brasileiro nas reuniões demonstra a disposição das comunidades para o diálogo, mesmo sem que até agora seus direitos tenham sido efetivamente respeitados.

"Nós sabemos que o Estado não conhece a situação que vivemos. Apesar de sermos os guardiões dessa fronteira viva, não temos o reconhecimento do governo peruano", diz Felix Mebu. A aliança parte de um entendimento comum da noção de território entre os Matsés no Brasil e no Peru. "Os Estados do Brasil e do Peru dividiram os índios, mas nós reparamos que os problemas de um lado também atingem o outro e por isso começamos as reuniões binacionais. Esse é um espaço que conquistamos", completa Raimundo Mean Mayoruna, presidente da OGM, que vive na aldeia Soles, no lado brasileiro.

Em 2016, a Binacional Matsés chegou à sua sexta edição. Realizada entre os dias 5 e 7 de abril, na aldeia Trinta e Um, TI Vale do Javari, a reunião contou com a presença do presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, além do representante do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE) para assuntos de povos indígenas, Marco Túlio Cabral. Novamente, o documento final rechaça qualquer atividade petroleira dentro das terras Matsés e solicita que o órgão indigenista brasileiro, em diálogo com o MRE, transmita aos órgãos de Estado do Peru a posição do povo Matsés sobre os impactos da prospecção sísmica nos lotes 135 e 137.

A resistência ao petróleo

Durante o encontro deste ano, as falas contra a exploração de petróleo se repetiam nos discursos das lideranças de diversas aldeias. O rechaço dos Matsés às atividades petrolíferas em seu território se explica pela visão dos indígenas de que se trata de uma ameaça ao seu bem viver, já experienciada por eles anteriormente. "Por que eu iria querer sujar minha terra? Quero que meu filho cresça nessa terra e possa se sustentar", questiona Gilberto Tumi Mayoruna, segundo cacique da aldeia Nova Esperança, TI Vale do Javari. "Quando tiram petróleo destrói tudo, morrem os animais e os peixes. Nós índios não fazemos isso", argumenta.

A nova forma de fazer política estabelecendo canais de diálogo com a sociedade não indígena não exclui as formas tradicionais de resistência de um povo guerreiro que tem em seu território a memória dos antepassados. "Nessa terra viveram meus pais e antes viveram os pais deles, essa terra é nossa. Os brancos estão dizendo que o que está embaixo da terra é deles e só o de cima é nosso, mas na verdade é tudo dos Matsés", esbraveja durante o encontro Romulo Tëca, liderança da aldeia Puerto Alegre, da CNM. "Eu não gosto do que diz o Estado, eles estão nos ameaçando, querem acabar com nosso povo. Vamos mostrar que somos guerreiros. O Estado aqui somos nós, que vivemos nessa terra", completa.

A insistência do Estado peruano em manter os contratos dos lotes, contrariando as sucessivas negativas dos Matsés em autorizar quaisquer atividades exploratórias em seu território, é o que mais gera inquietação. Os contratos de concessão dos lotes firmados com a Pacific Stratus Energy em 2007 não foram antecedidos de um processo de consulta aos povos indígenas da região.

No Peru não há impedimento legal para a concessão de blocos de exploração petrolífera em territórios indígenas, nem mesmo no caso das reservas destinadas a povos isolados e de recente contato. Mesmo o Estado peruano sendo signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, as concessões frequentemente são feitas sem consultar os povos afetados.

Por outro lado, a própria "Lei do Direito à Consulta Prévia aos povos indígenas ou originários" (Ley No 29785) e sua recente regulamentação têm sido criticadas pelos povos indígenas no Peru, por não se ter chegado a um acordo com as organizações indígenas e por não terem incorporado suas observações. Tudo isso gera um quadro de insatisfação e por vezes de conflitos. "Eu já vi uma picada dos petroleiros, fiquei muito bravo, estão desrespeitando nosso povo, passando por cima de nossa terra", conta Romulo Tëca.

Em 2009, o Peru viveu episódios marcantes de conflitos entre povos indígenas e forças de segurança do Estado, tendo justamente a exploração de recursos naturais (incluindo petróleo e gás) em territórios indígenas como pano de fundo. Buscando viabilizar a implementação do tratado de livre comércio entre o Peru e os Estados Unidos, o governo do então presidente Alan García promoveu uma série de alterações na legislação peruana, por meio de um pacote de decretos legislativos. As alterações permitiam a exploração de recursos naturais na Amazônia e violavam direitos assegurados aos povos indígenas no Peru. Como resposta, os indígenas iniciaram uma jornada de protestos sem precedentes na Amazônia peruana, em agosto de 2008.

Os meses seguintes foram marcados pela indisposição do governo para o diálogo com os povos indígenas, culminando em nova jornada de protestos pacíficos. Como resposta, nos dias 5 e 6 de junho de 2009 a polícia nacional foi acionada para acabar com bloqueios de rodovias na cidade de Bagua, norte do país. A violenta repressão resultou em dezenas de indígenas mortos e desaparecidos, mais de 20 policiais mortos, além de centenas de feridos e detidos no episódio que ficou conhecido como Baguazo, ou Massacre de Bagua. Os manifestantes eram principalmente dos povos Awajun e Wamba, que apontavam que as mudanças do governo Alan García facilitariam a entrada de multinacionais em seus territórios. Até hoje lideranças indígenas são processadas e perseguidas politicamente pelo Estado peruano.

Os conflitos associados à exploração petrolífera não são uma novidade para os Matsés e demais povos indígenas do Vale do Javari. Nas décadas de 1970 e 1980, a presença de empresas petrolíferas se intensificou com a realização de levantamentos, perfuração de poços e abertura de picadas para prospecção sísmica pela Petrobrás, no lado brasileiro, e pelas companhias Atlantic Richfield Company (ARCO), Servicios de Exploración de Petroleo (Sexpet) e Amoco, no Peru. Nessa época passaram a ocorrer os encontros de indígenas com funcionários das empresas e, em 1983, um trabalhador da Petrobrás foi flechado por isolados no rio Jandiatuba, um afluente da margem direita do Solimões.

Em março de 1984, um novo aviso dos índios: mais um trabalhador flechado, desta vez no igarapé São José, afluente do Itacoaí. As atividades de prospecção seguiram e, no ano seguinte, em setembro de 1984, um funcionário da Funai e outro da Companhia Brasileira de Geofísica, que acompanhavam a equipe da Petrobrás, foram mortos. Só então a Petrobrás paralisou suas atividades, deixando rastros que podem ser encontrados até hoje, como tambores de armazenamento e clareiras no meio da mata.

O contato de alguns grupos Matsés se deu nesse contexto e a experiência foi transmitida aos que vieram depois. "Os estudos sísmicos causaram impactos ambientais e trouxeram doenças desconhecidas. Os Matsés não sabiam como tratar", conta Felix Mebu. Alguns, já mais velhos, guardam a lembrança do que viveram ou do que escutaram dos pais. "Para tirar petróleo os pesquisadores soltavam bombas na terra. Teve muita morte por diarreia, febre, dor de cabeça, umas dez famílias morreram. Não tinha Funai, não tinha cuidados médicos, por isso que morreu tanta gente", lembra Waki Mayoruna, cacique da aldeia Lobo.

Protegendo os isolados

A espécie de trauma coletivo justifica a posição firme dos Matsés no rechaço à exploração de petróleo em seu território e a preocupação com os isolados. "Existem informações de isolados na região e nos preocupamos com eles. Divulgamos a presença deles porque eles não têm como dizer: 'Eu vivo aqui, aqui é minha terra'. Por isso fazemos esse papel de falar em nome deles", explica Raimundo Mean.

Segundo a Nota técnica do CTI sobre a presença de isolados no alto Jaquirana, constam informações sobre a ocupação contemporânea da região da bacia do Batã e cabeceiras de afluentes do rio Jaquirana e Curuçá por índios isolados. Essas informações já foram trabalhadas em uma expedição da Funai. "A expedição em 2014 durou em torno de 15 dias. Fomos até a cabeceira do Jaquirana, próximo à Serra do Divisor, onde fizemos a expedição via terrestre e vimos ali a presença de vários vestígios da presença de isolados, como quebradas, que eram mais evidentes", relata Iltercley Chagas Rodrigues, Coordenador Técnico Local da Funai de Atalaia do Norte (AM), que trabalha junto aos Matsés no rio Jaquirana.

O servidor da Funai fala ainda sobre uma segunda expedição que também conseguiu identificar vestígios. "No igarapé Paraguai, a expedição registrou evidências que confirmam os testemunhos e relatos históricos dos Matsés de que há ali a presença de isolados. Encontramos nas praias cerâmicas que provavelmente devem ser de uso contínuo dos isolados no período de vazante do rio, quando a praia acaba se tornando um ambiente de acampamento", conta Iltercley. Novos trabalhos de localização estão sendo feitos pelo órgão indigenista na região para qualificar as informações sobre isolados, podendo levar a sua confirmação pelo Estado brasileiro.

No Peru, diversas fontes também mencionam a existência de isolados nas bacias dos rios Jaquirana, Javari e Tapiche. Apesar da consistência das informações, o Estado peruano até hoje não tomou nenhuma providência efetiva para a proteção dos povos isolados e tem seguido a política de concessões florestais madeireiras nas áreas em questão. "Queremos que o governo peruano reconheça o território de nossos irmãos em isolamento voluntário dentro do Parque Nacional Sierra del Divisor. Nós, como protetores deles, queremos que o Estado considere nossa proposta da Reserva Indígena Yavarí-Tapiche no Plan Maestro do parque", argumenta Felix Mebu.

Até mesmo o Estudo de Impacto Ambiental para a prospecção sísmica e perfuração exploratória no lote 135 reconhece a presença de isolados, ao estabelecer um protocolo de relacionamento com povos em isolamento ou contato inicial. O documento elaborado pela empresa Domus Consultoria Ambiental, a serviço da Pacific Stratus Energy, não assegura medidas eficazes de combate a doenças infectocontagiosas que podem ser fatais aos índios isolados, já que estes não possuem imunidade para doenças que nos são comuns. Além disso, as medidas propostas expõem indígenas e funcionários da empresa a situações de risco, ao sugerir que em eventual situação de contato se utilize, por exemplo, megafones para a comunicação e, em casos extremos, pistolas sinalizadoras. "Hoje nós nos socializamos um pouco mais e apesar do contato seguimos tendo problemas como as doenças que chegaram. Nosso temor, como humanos, é que eles [os isolados] possam passar por problemas maiores que os nossos", diz Felix Mebu.

Atividade de alto risco

Outros povos indígenas no Peru não conseguiram evitar a exploração de petróleo em seus territórios. Também ao norte do país, os Achuar, por exemplo, sofreram durante décadas os efeitos devastadores das atividades da Occidental Petroleum (Oxy), que causou diversas mortes prematuras entre os indígenas, graves problemas genéticos, além da degradação ambiental. A contaminação atingiu as águas de uso dos Achuar, nas quais a companhia despejou metais pesados como cádmio, chumbo e arsênico, segundo reportagem da Amazon Watch. Em 2006, um estudo do Ministério da Saúde do Peru concluiu que quase todas as pessoas que fizeram o teste nas comunidades Achuar possuíam níveis de cádmio acima do aceitável.

A Occidental Petroleum explorou o território Achuar de 1971 até 2000 e recentemente foi condenada na corte estadunidense a pagar compensações a cinco comunidades Achuar. No ano de 2000 o bloco foi assumido pela empresa argentina Pluspetrol, que continua violando os direitos dos povos indígenas e os padrões internacionais para exercer atividades de exploração. Desta vez, junto aos Achuar, estão os povos Quechua e Urarina processando a Pluspetrol. "A relação das atividades petroleiras com o meio ambiente já diz tudo. As experiências no Equador, no Peru, são nefastas. Por mais que os técnicos digam que existem tecnologias e metodologias que podem minimizar os impactos no meio ambiente, não vejo como conciliar", opina Eriverto Vargas, conhecido como Beto Marubo, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, da Funai.

Em fevereiro de 2016, um grave vazamento no principal oleoduto na Amazônia peruana poluiu os rios Chiriaco e Morona, localizados no departamento de Loreto, levando o governo a declarar estado de emergência em 16 comunidades que dependiam desses rios em sua vida cotidiana. Os Matsés sabem bem do perigo que significa a exploração de petróleo para suas vidas e seu território. Os riscos estão claros para todos os atores envolvidos, inclusive para as empresas.

"Sabemos que as atividades de exploração de petróleo não têm segurança. As empresas dizem que agora a tecnologia é mais avançada, mas em qualquer atividade grande como essa, sempre existem problemas de saúde, problemas sociais, poluição, contaminação de água dos rios", frisa Raimundo Mean. Resta saber se os Matsés terão força para barrar os interesses de gigantes multinacionais e quais direitos serão colocados em primeiro plano pelos governos do Brasil e do Peru.

http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2016/05/02/1432/

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