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Sierra del Divisor: categorização avança na proteção florestal, mas desconsidera áreas de isolados

Boletim Isolados- http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2016/03/22/1208/
Autor: Nathália Clark
22 de Mar de 2016

A Serra do Divisor é um imponente complexo montanhoso que se divide entre o estado do Acre, no Brasil, e os departamentos de Ucayali e Loreto, no Peru. Por se tratar de uma das regiões de maior biodiversidade na Amazônia, em abril de 2006 ela foi declarada zona protegida pelo Governo do Peru. A então Zona Reservada Sierra del Divisor, uma categoria transitória de Área Natural Protegida (ANP), contava com 1,4 milhão de hectares. Passados quase dez anos e sob muita pressão e mobilização da sociedade civil nacional e internacional, em novembro de 2015 ela foi oficialmente categorizada como Parque Nacional, a categoria de ANP de maior proteção na legislação ambiental do país.

Segundo a Lei de ANPs do Peru (Lei No 26834), sendo o Parque uma área de uso indireto, ele não pode ser habitado. Por esse motivo, certos espaços onde havia comunidades campesinas e ribeirinhas foram desafetados no processo de categorização, o que acarretou a diminuição do tamanho da área, que passou a contar 1,3 milhão de hectares. O recém-categorizado Parque Nacional Sierra del Divisor compreende ecossistemas endêmicos e formações geomorfológicas que abrigam mais de 3 mil espécies de plantas, 570 espécies de aves, 300 tipos de peixes, mais de uma centena de répteis e anfíbios, e dezenas de mamíferos.

Além disso, junto com outras ANPs e comunidades nativas, do lado peruano, além de unidades de conservação e terras indígenas, do lado brasileiro - sendo a mais próxima a Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas -, o Parque também compõe um corredor internacional de áreas protegidas que se estende por toda a fronteira Brasil-Peru, e que abriga a maior concentração de povos indígenas isolados no mundo.

Segundo a lei peruana para povos indígenas em isolamento e contato inicial (Lei No 28736), de 2006, os territórios dessas populações devem ser reconhecidos como Reservas Indígenas (RI) - terras delimitadas pelo Estado a favor desses povos e que possuem intangibilidade transitória, ou seja, são intangíveis enquanto se mantenha a "situação" de isolamento e/ou contato inicial. São três os territórios de povos indígenas isolados aos quais se sobrepõe o Parque Nacional: a Reserva Territorial Isconahua e as propostas de reserva indígena Yavarí-Tapiche e Sierra del Divisor Occidental (ou Capanahua).

As duas propostas encontram-se no momento em fase de reconhecimento, enquanto que a Reserva Isconahua foi reconhecida em 1998. Antes, portanto, da promulgação da lei para isolados. Por essa razão, juntamente com outras quatro áreas, ela ainda se encontra sob a categoria de "Reserva Territorial" - territórios de isolados reconhecidos antes de 2006 e cuja proteção é de caráter regional, e não nacional. De acordo com a norma atual, as reservas territoriais deverão se adequar ao procedimento legal estabelecido a partir de 2006, sem prejuízos para a proteção já adquirida. No caso das demais propostas, a necessidade de se avançar no processo de reconhecimento é urgente, tendo em vista a inexistência de atos anteriores que confiram proteção às mesmas.

O problema é que, apesar de contarem com estudos em curso e com Opinião Técnica favorável emitida através de Oficio Circular 001-2013 pelo Viceministério da Interculturalidade (VMI), vinculado ao Ministério da Cultura, e referendada pela Comissão Multisetorial para a Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento Voluntário e Contato Inicial - instância de decisão composta por representantes do governo e da sociedade civil, responsável por analisar as propostas de reconhecimento territorial para esses povos no Peru -, as duas propostas de reserva foram desconsideradas pelo Serviço Nacional de Áreas Naturais Protegidas pelo Estado (Sernanp), órgão subordinado à Diretoria de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente, no processo de categorização. Como consequência, o Decreto Supremo de Criação do Parque ignora a existência de isolados nestas áreas, salvaguardando apenas os direitos dos isolados da reserva Isconahua.

"Não é tanto um problema de carência normativa, mas uma questão de dificuldade na implementação das normas", argumenta David González Rivera, especialista social do CEDIA (Centro para o Desenvolvimento do Indígena Amazônico), organização contratada para elaboração dos estudos prévios de reconhecimento de três propostas de reserva indígena na região - as duas às quais se sobrepõe a área do Parque Nacional Sierra del Divisor e a proposta de reserva Yavarí-Mirín.

De acordo com a gestora da unidade, María Elena Díaz, a comissão técnica de categorização, instalada em junho de 2006, apenas levou em consideração o que está oficialmente reconhecido e outorgado. "Iniciamos o processo de categorização junto a instituições que têm envolvimento com o tema, empresas estatais, o próprio Ministério da Cultura e, sobretudo, representantes de organizações indígenas (tanto a nível regional como nacional). Foi realizado um processo de consulta prévia com os povos indígenas locais, e trabalhamos o zoneamento levando em conta todos os aportes dados. A Reserva Indígena Isconahua, por exemplo, não ia formar parte do Parque, ela foi incluída a pedido das organizações indígenas. Mas não podemos trabalhar com propostas. O tema dos povos isolados é competência do Ministério da Cultura e não do Meio Ambiente. São eles que devem decidir como essas questões serão encaminhadas. No momento não temos um documento formal que nos diga que aquelas populações existem e se deslocam em espaços específicos", defende.

Para os indígenas, por outro lado, foi colocado claramente à comissão de categorização que a condição para que as organizações indígenas representadas - Aidesep (Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana) e Orpio (Organização Regional dos Povos Indígenas do Oriente) - apoiassem a criação do Parque era: "que a Reserva Territorial Isconahua e as propostas de RI Sierra del Divisor Occidental e Yavarí-Tapiche [também conhecida como Tapiche, Blanco, Yaquerana, Chobayacu y Afluentes] fossem consideradas dentro da proposta de categorização, sempre que na lei de categorização fosse expressa, em um ou mais artigos, o respeito pleno aos direitos individuais e coletivos dos parentes em isolamento voluntário" (trecho retirado da Carta No 148 da Aidesep, enviada ao Sernanp em 29 de agosto de 2012).

Ainda segundo o documento, caso essa exigência não fosse atendida, os indígenas propunham que o direito dos povos em isolamento fosse determinado nos processos que já haviam sido formalmente iniciados junto ao Estado, e que isso fosse feito antes do processo de categorização.

Segundo David Freitas, assessor técnico da Aidesep, as organizações indígenas participantes da comissão apoiaram a criação do Parque por conta da demora no processo de reconhecimento das duas propostas de reserva indígena. "Uma das formas de proteger aos isolados ali era apoiar a criação do Parque, já que esta categorização daria mais segurança e intangibilidade aos territórios. Entretanto, nossas demandas e posições não foram respeitadas", ressalta.

No âmbito da Reunião Binacional Matsés - fórum do povo Matsés no Brasil e Peru, coordenado pela Organização Geral dos Mayuruna (OGM) e Comunidad Nativa Matsés (CNM), que conta com o apoio e assessoria do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) desde 2009 e vai este ano para sua sexta edição - foram elaboradas sucessivas solicitações com respeito ao reconhecimento dos territórios de povos isolados da região, em particular das reservas indígenas Yavarí-Tapiche e Yavarí-Mirín.

Tais solicitações, como a Carta da CNM e OGM, a Carta dos Matsés e Orpio/Aidesep e a Carta Final da IV Binacional Matsés, foram apresentadas ao VMI e à Comissão Multisetorial em distintas ocasiões, mas nenhuma delas foi levada em conta do Decreto de criação do Parque.

"Estas graves omissões trazem incerteza e insegurança jurídica ao processo de reconhecimento prévio dos povos isolados que ali habitam. De forma concreta, os indígenas isolados que habitam as jurisdições territoriais das propostas Napo-Tigre, Yavarí-Mirín, Yavarí-Tapiche, Sierra del Divisor Occidental e Cashibo Cacataibo estão condenados a desaparecer por conta da demora e indolência de um Estado insensível, que protela o reconhecimento e, dessa forma, não faz com que sejam respeitados os direitos destas populações", lamenta David Freitas.

Conflitos de interesse

Além de se sobrepor a territórios indígenas, a área do Parque também está sobreposta por dois lotes petrolíferos: o 31-B e o 135, com licenças de exploração concedidas, respectivamente, às empresas Maple Gas Corporation del Perú e Pacific Stratus Energy (atual Pacific E&P). Este último também incide sobre a área proposta para a Reserva Indígena Yavarí-Tapiche. Existem ainda dois outros lotes na região próximos aos limites do Parque: o lote 137, também da Pacific E&P, que se sobrepõe extensamente à Comunidad Nativa Matsés, a parte da proposta de Reserva Indígena Yavarí-Tapiche e a parte da Reserva Nacional Matsés; e o lote 95, atualmente concedido para um consórcio formado pelas empresas Harken del Perú e Gran Tierra Energy, que se sobrepõe à proposta de Reserva Indígena Yavarí-Tapiche.

De acordo com a legislação peruana, "não é permitida a extração de recursos naturais, assim como modificações e transformações do ambiente natural" (Artigo 21o da Lei No 26834) em áreas naturais protegidas de uso indireto, como é o caso do Parque. Este, inclusive, foi o principal argumento apresentado por técnicos do Sernanp a organizações indígenas e indigenistas a respeito da sobreposição do Parque a propostas de reservas indígenas, já que, na prática, a área afetada pelo Parque contaria com maior proteção do que as próprias reservas indígenas, tendo em vista que a lei para povos isolados contém brechas para a flexibilização da intangibilidade destas áreas.

Por outro lado, a Lei de ANPs também determina que direitos adquiridos antes do estabelecimento de uma ANP devem ser respeitados, uma vez que estejam "em harmonia com os objetivos e finalidades para as quais a área foi criada" (Artigo 5o), e o Estado deve apreciar em cada caso a necessidade de impor novas restrições ao exercício desses direitos.

No caso do lote 135, o contrato de licença de exploração celebrado entre a agência reguladora Perupetro e a Pacific Stratus foi firmado através do Decreto Supremo No 063-2007-EM em 20 de novembro de 2007. Nesta data, a área já havia sido delimitada como Zona Reservada e o processo de categorização já estava em curso. Porém, como ainda não havia sido oficialmente categorizada, para fins normativos o contrato foi considerado um "direito previamente adquirido".

"O Parque é formado por cadeias montanhosas, e o que buscamos é proteger esses espaços, nos quais não deve ser permitido desenvolver atividades econômicas, ou seja, que não sejam extraídos recursos do interior da área para fins comerciais. Sendo assim, acredito que não há nada que se contraponha à proteção das populações isoladas. No entanto, o Estado peruano tem um contrato com essa empresa, o que significa que ela tem um direito adquirido. E como observa o marco de Áreas Naturais Protegidas, temos que garantir esses direitos", reforça a gestora do Parque.

Já a diretora de Povos Indígenas em Situação de Isolamento e Contato Inicial do VMI, Lorena Prieto, ressalta que, em certos casos, há alternativas para tentar reverter esse quadro. "Nas Reservas Indígenas idealmente não deveria haver lotes petrolíferos. No entanto, nas zonas onde há direitos previamente adquiridos, o Estado deve avaliar até que ponto estas atividades poderão afetar os povos que ali habitam. O Peru já possui procedimentos legais estabelecidos para elaborar opiniões técnicas prévias de caráter vinculante, por parte do Ministério da Cultura, a fim de salvaguardar os direitos dos povos isolados e em contato inicial (PIACI, na sigla em espanhol)", afirma Prieto.

O lote 135 abarca parte das bacias hidrográficas dos rios Tapiche (afluente do rio Ucayali) e Jaquirana (principal formador do rio Javari), na região da fronteira com o Brasil. Juntamente com a exploração madeireira, o narcotráfico e a mineração, a exploração petrolífera é considerada pelos indígenas uma das principais ameaças a seus territórios de ocupação tradicional e à vida dos povos em isolamento. Diversos vazamentos de petróleo já ocorreram em anos recentes na região amazônica do Peru. No fim de fevereiro deste ano, o governo declarou estado de emergência em 16 comunidades por conta de vazamentos na região de Loreto. O desastre afetou aproximadamente 31 mil pessoas, em sua maioria indígenas.

Por essas e outras razões, os representantes indígenas defendem que, ante indícios da existência de isolados dentro de uma área candidata a ANP, devem ser previstas medidas cautelares no processo de categorização. Por exemplo, a delimitação de suas zonas de ocupação como áreas de proteção estrita independentemente da etapa em que se encontre o processo de reconhecimento do(s) povo(s) isolado(s) e da(s) respectiva(s) reserva(s) indígena(s) em questão.

No caso das propostas de reservas sobrepostas pelo Parque Nacional Sierra del Divisor ainda não reconhecidas, já que a proteção estrita não foi assegurada no processo de categorização do mesmo, é preciso garantir esse direito no zoneamento dado pelo Plano Diretor, documento que orienta a gestão e o manejo do Parque, e cuja primeira versão está em fase de elaboração - de cinco em cinco anos é feita uma revisão do Plano.

"Temos que levar em conta no Plano Diretor que também há usos e costumes ancestrais de outros povos indígenas na área, o que não nos permite qualificar todo o espaço como de proteção estrita", pondera María Elena. Segundo ela, o processo de elaboração do Plano deve ser concluído em junho deste ano. "Esse é um tema prioritário para a Diretoria de Áreas Protegidas", completou.

David Freitas, da Aidesep, é mais incisivo e defende que a posição das organizações indígenas que acompanham a elaboração do Plano não seja flexível. "Deve-se garantir que as áreas das propostas também sejam consideradas zonas de proteção estrita. Além de abrigar uma enorme riqueza de flora e fauna, hidrocarbonetos e outros recursos naturais, elas também são habitadas pelos seres humanos mais desprotegidos, que tentam sobreviver em um mundo de constantes ameaças, propiciadas por atividades extrativistas geradas por uma ânsia incontrolável de acumulação de riquezas."

"Temos uma série de normas relacionadas, mas também muitos interesses econômicos gravitantes que instigam a não cumpri-las. A experiência tem demonstrado que os povos indígenas sempre conseguiram que suas reivindicações fossem atendidas através da luta. Nenhum Estado dá algo aos indígenas de forma desinteressada. Isto nos faz seguir fortalecendo as organizações a nível nacional, regional e local, pois sem pressão e luta não há futuro", complementa o assessor técnico.

No rastro dos isolados

As propostas de reserva indígena Yavarí-Tapiche e Sierra del Divisor Occidental foram apresentadas pela Aidesep no início dos anos 2000. Após longo período sem nenhuma medida efetiva adotada para o seu reconhecimento por parte do Estado peruano, a partir de 2012 foram iniciados estudos por parte do VMI. De acordo com David Rivera, um dos responsáveis pelos estudos prévios ora em elaboração, o processo de reconhecimento das mesmas já está em fase de finalização.

Ele adianta que foram encontradas muitas evidências em todas as áreas. "Essas zonas são historicamente áreas de trânsito dos isolados. Em toda essa região há bastante evidência de movimentação entre Peru e Brasil. Há um espaço amplo de trânsito de populações, uma espécie de corredor territorial migratório. Buscamos que se reconheçam esses territórios para que essas populações possam continuar se movimentando livremente", ressalta.

Rivera reforça ainda a importância dos mosaicos de áreas protegidas para conter as pressões externas. "Das ameaças na região, a exploração madeireira é a mais comum a todas as áreas. A zona entre a Serra do Divisor e a Reserva Nacional Matsés funciona como uma barreira para os madeireiros que querem entrar com trator e tudo. Nesse sentido, as ANPs têm sido um suporte a mais. As evidências nos mostram que elas estão servindo de refúgio para os isolados, tanto pelas lacunas políticas quanto normativas."

Mesmo com todos os indícios, o caminho ainda é longo. Seguindo o rito do Viceministério, assim que finalizados, os estudos serão apresentados à Comissão Multisetorial que determinará se as evidências apresentadas são suficientes para sustentar a existência de povos isolados nas áreas propostas. Em caso positivo, será produzido o Decreto Supremo de reconhecimento, que passará à Presidência do Conselho de Ministros para ser assinado pelo Presidente da República. O passo seguinte é a realização de novos estudos para categorização das áreas como Reservas Indígenas.

Pode servir de alento ou apenas mais um elemento para cobrança, mas a diretora de Povos Isolados do VMI garantiu que deste ano esse reconhecimento não passa. "Por muitos anos estes pedidos estiveram esperando para ser atendidos. Realizar este processo efetivamente é prioridade para o Ministério da Cultura em 2016", afirmou Lorena Prieto.

http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2016/03/22/1208/

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