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Ser índio brasileiro hoje

O Globo, Prosa & Verso, p. 6
19 de Abr de 2008

Ser índio brasileiro hoje
Livros de projeto ligado ao Museu Nacional apresentam dilemas atuais dos povos indígenas

Rachel Bertol

Abrir o "cofre" das universidades, onde costumam ficar enclausurados conhecimentos essenciais, como afirma o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima, é um dos objetivos da série Via dos Saberes, sobre os índios brasileiros, produzida pelo projeto Trilhas de Conhecimentos, ligado ao Museu Nacional da UFRJ. São quatro livros, publicados no início deste ano na Coleção Educação para Todos, da Unesco e do MEC, nos quais se tem uma boa amostra do trabalho realizado na universidade junto a movimentos indígenas, e que se distancia da antropologia clássica. O primeiro volume da série, por exemplo, "O índio brasileiro - O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje", é assinado por Gersem dos Santos Luciano Baniwa, destacado líder indígena e o primeiro índio a obter o grau de mestre em antropologia no Brasil, na Universidade de Brasília, em 2006. A série foi pensada para a formação do crescente número de estudantes universitários indígenas no país (cerca de 5 mil entre formados e formandos), mas ganha sentido mais amplo com a lei sancionada em março pelo presidente Lula, que obriga o ensino da história e da cultura indígena no ensino médio e fundamental.
- Os livros foram escritos antes da sanção da lei, mas em consonância com seu espírito, de que o Brasil é mais complexo do que a gente costuma aprender. Destacando a variedade do Brasil, esse país todo cheio de cisões que também é uma unidade, podemos entender a situação dos que estão em desvantagem, como é o caso dos índios afirma Antonio Carlos de Souza Lima, professor do Museu Nacional.
Livro mostra a montagem do regime de preconceito
Os livros estão sendo distribuídos a instituições de ensino de todo país e disponíveis, para download gratuito, no site www.trilhasdeconhecimentos.etc.br. O segundo da série é o livro de história "A presença indígena na formação do Brasil", escrito pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular do Museu Nacional, e pelo também antropólogo Carlos Augusto da Rocha Freire, pesquisador do Museu do índio.
- Não se propõe a ser um manual didático. O livro mostra como se deu, dos alvores da Colônia até hoje, a montagem de um regime de preconceito no país. As pessoas não entendem o que acontece na atualidade porque não estudaram a História. É preciso mostrar que o panorama do Brasil é mais amplo do que as mídias costumam mostrar, salvo exceções. A mídia está longe de conhecer a situação indígena - diz Souza Lima.
Por isso, a importância de se abrirem "os cofres" das universidades, onde há grande produção de estudos etnográficos sobre povos indígenas, como sobre suas cosmologias e ritos, cujo conhecimento é fundamental para a compreensão da sua organização social.
- É preciso que essa riqueza que as etnografias têm mostrado chegue a um público mais abrangente, pois assim poderemos entender o que nos torna diferentes uns dos outros, como, de resto, é diferente toda a Humanidade: os franceses, por exemplo, têm cosmologia bem diversa dos brasileiros - observa o antropólogo.
Segundo o IBGE, há 734 mil índios no país (população que cresce cerca de 4% ao ano), representantes de 220 povos e que falam 180 línguas. Seus direitos são o tema do terceiro livro da série, "Povos indígenas e as leis dos 'brancos': o direito à diferença", organizado pela advogada Ana Valéria Araújo, com artigos de advogados indígenas das etnias wapixana, pankararu, kaingang e mbyá guarany.
- São quatro advogados indígenas escrevendo sobre pontos fundamentais, que podemos resumir como o direito à diferença no Brasil, que não descende de uma história única, mas de muitas histórias, paralelas, interconectadas, divergentes - diz Souza Lima.
O último livro da série é mais técnico, um manual sobre as línguas dos índios (cujo dia é comemorado hoje).
Na apresentação do projeto, o antropólogo destaca: "Quem sabe aí a tão propalada 'inclusão dos menos favorecidos' venha a perder o risco de ser, para os povos indígenas, mais um projeto massificante e etnocida".

O Globo, 19/04/2008, Prosa & Verso, p. 6

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