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Salles ignora Lei da Mata Atlântica e flexibiliza proteção

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Autor: Daniele Bragança
21 de Abr de 2020

O ministro Ricardo Salles determinou que a partir de agora os desmatamentos irregulares feitos na Mata Atlântica até 2008 serão anistiados ou terão recomposição menor, seguindo regra prevista no novo Código Florestal. Até então, o Ministério do Meio Ambiente usava o entendimento de que a regra vigente era a expressa na Lei da Mata Atlântica, que prevê multa e recuperação de toda área desmatada sem autorização a partir de 1993.

ONGs e MPF estudam formas de barrar a mudança na Justiça.

O novo Código Florestal (Lei 12.651/2012) determina que toda ocupação de área de preservação permanente (APP) - topo de morro e beira de rio e nascentes - feita em propriedade rural até julho de 2008 deverá ser considerada área consolidada e as atividades nelas inseridas estão autorizadas a continuar. Para isso, o proprietário que desmatou é obrigado a se inscrever no Cadastro Ambiental Rural e aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). A partir disso, ele terá a obrigação de recompor essa mata desmatada em 1 metro (se a propriedade tem até 4 módulos fiscais), 8 metros (se a propriedade tem entre 5 e 15 módulos fiscais) ou 15 metros (se a propriedade tem mais de 15 módulos fiscais).

Pela regra da lei da Mata Atlântica, todo desmatamento de vegetação no bioma só é permitido com autorização e nunca em áreas de preservação permanente. Ou seja, não há a hipótese legal de considerar essa área desmatada sem autorização como área consolidada. Mesmo se a área foi toda desmatada para plantio ou sofreu incêndio, após 1993, ela ainda é considerada Mata Atlântica e o proprietário que a desmatou poderá sofrer com embargo e multa, além de ter que reflorestar o que derrubou.

A decisão de Salles, oficializada no início de abril, segue um parecer pedido pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) à Advocacia Geral da União (AGU) e anula a decisão do próprio Ministério do Meio Ambiente, feito em 2017, de seguir a Lei da Mata Atlântica.

"Essa decisão vai contra o próprio princípio de legalidade, já que desconsidera uma lei anterior. É uma decisão ilegal e descabida", diz o biólogo João de Deus Medeiros, coordenador-geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica. "O ministro não pode escolher qual lei seguir. Se há uma lei geral de proteção de florestas e uma lei específica para uma floresta, aquela floresta vai ser regida pela lei específica", diz Medeiros, que também é conselheiro do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).

Histórico

Desde a aprovação do novo Código Florestal, também conhecido como Lei de Proteção da Vegetação Nativa, em 2012, entidades do agronegócio tentam fazer valer o marco temporal de julho de 2008 que considera todo desmatamento irregular em APP ou em Reserva Legal como áreas consolidadas. Desmatamentos ilegais ocorridos até essa data não podem sofrer multas e tem regras mais frouxas para a recomposição. Mas para o Ministério do Meio Ambiente, a regra geral não valia para a Mata Atlântica, o único bioma do país com lei específica de proteção. A regra mais rígida embasou uma operação de fiscalização que gerou uma série de multas em propriedades rurais no Sudeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em 2015. A então ministra Izabella Teixeira chegou a ser convocada para se explicar na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, convocação feita pelo deputado Assis de Couto (PDT-PR).

A pressão ruralista funcionou e por quase dois anos o Ministério do Meio Ambiente deixou de aplicar multas na Mata Atlântica com base na Lei da Mata Atlântica.

"[O uso da regra do Código Florestal] foi fruto de uma chantagem dos ruralistas durante o desgoverno que estava tendo no último ano de Dilma. A Izabella [Teixeira, ministra do Meio Ambiente entre 2010 e 2016] foi colocada na parede para dar uma resposta", explica Mario Mantovani, diretor de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.

Em novembro de 2017, o ministro Sarney Filho restaurou a posição anterior de que o que valia para a Mata Atlântica era a regra mais rígida. Foi quando a Federação de Agricultura do Estado do Paraná (FAEP) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) encaminharam ofício à então ministra da Advocacia Geral da União (AGU), Grace Mendonça, pedindo que fosse revertida a decisão do Ministério do Meio Ambiente de suspender a aplicação das regras do novo Código Florestal à Mata Atlântica.

Apesar da pressão dos ruralistas e até da decisão do MMA em 2015, nos pareceres internos das procuradorias do Ibama, Ministério do Meio Ambiente e Serviço Florestal, a posição técnica era unânime em apontar que o marco era a Lei da Mata Atlântica. Em nenhum momento a Advocacia Geral da União questionou a aplicação desta regra. A mudança de entendimento na AGU ocorreu apenas em dezembro de 2019 e foi celebrada em solenidade no Palácio do Planalto, em dezembro, com a presença do presidente Jair Bolsonaro, o advogado-geral da União, André Luiz de Almeida Mendonça, e representantes de setores ruralistas, como o senador Luis Carlos Heinze (PP/RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.

No dia 06 de abril, Salles acatou a recomendação e determinou que o Ibama, ICMBio, Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e as suas respectivas Procuradorias (PFEs e SEDE) passem a adotar as regras do Código Florestal na Mata Atlântica. Isso significa que todos os autos de infração, embargos e multas que tenham sido aplicados com base na Lei da Mata Atlântica deverão ser anulados.

Metade do passivo ambiental de Áreas de Preservação Ambiental no país, ou seja, áreas de topos de morro e matas ciliares que não poderiam ter sido desmatados, estão localizados na Mata Atlântica. São cerca de 4 milhões de hectares localizados em 17 estados brasileiros.

"Se você for pegar os casos onde tem desmatamento hoje, você vai ver na região de Guarapuava, no Paraná, onde teve o maior processo contra a Lei da Mata Atlântica, criou-se um terrorismo nessa região contra a Lei da Mata Atlântica. Você vai ver esse desmatamento na divisa de Minas Gerais com a Bahia, lá no Vale do Jequitinhonha, para atividades criminosas do carvão, e você vai ver isso nas regiões metropolitanas, principalmente com a expansão imobiliária. Não tem mais conversão de áreas de Mata Atlântica para a agricultura ou pecuária como se tem em áreas de Cerrado ou Amazônia hoje, ela já está totalmente consolidada. Por isso foi fácil regulamentar a lei [em 2008], afirma Mario Mantovani. Segundo o diretor da SOS Mata Atlântica, a decisão de Ricardo Salles tem por trás "um ataque deliberado de um grupo que já foi colocado no devido lugar e agora reedita essa medida".

Oposição e contragolpe

A Rede de ONGs da Mata Atlântica e o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica fizeram um parecer contra o despacho de Ricardo Salles. O documento será enviado a 4ª Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR) do Ministério Público Federal, que deverá entrar com uma Ação Civil Pública contra a decisão do ministro Ricardo Salles e o parecer do AGU.

A ONG SOS Mata Atlântica está entrando na Justiça nos 17 estados que formam a Mata Atlântica e na Justiça Federal. A Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR) do Ministério Público Federal, junto com a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), enviaram ofício os membros do MPF e dos MPs estaduais dos 17 estados a expedirem recomendações aos gestores dos órgãos ambientais locais para que não apliquem o entendimento do Ministério do Meio Ambiente ou promovam qualquer ato para o cancelamento de autos de infração ambiental, termos de embargos e interdição e termos de apreensão lavrados com base na constatação de ocupação de Áreas de Preservação Permanente.

"O cumprimento e aplicação do despacho emitido pelo ministro do Meio Ambiente tem como consequência direta negar vigência à Lei da Mata Atlântica, além de implicar o cancelamento indevido de milhares de autos de infração ambiental e termos de embargos lavrados a partir da constatação de supressões, cortes e intervenções danosas e não autorizadas", explica o coordenador da 4CCR, o subprocurador-geral da República Nívio de Freitas.

A ex-presidente do Ibama, Suely Araújo, fez um parecer técnico para o Observatório do Clima, sobre a decisão de Salles. No texto, ela chama atenção para a abertura de precedente para ataque a outras regras de proteção do bioma. "Impõe-se realmente pronta reação a retrocessos nesse tema, sob pena de esvaziamento na prática da Lei no 11.428/2006".

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