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Ruralistas e indústria ameaçam licenciamento

Valor Econômico, Especial, p. A14
Autor: CHIARETTI, Daniela
28 de Abr de 2017

Ruralistas e indústria ameaçam licenciamento

Daniela Chiaretti

Na maior investida desde a aprovação do novo Código Florestal em 2012, a bancada ruralista do Congresso se aliou à indústria e sustenta na retaguarda setores do governo abrigados nos ministérios de Minas e Energia e Transportes para acertar o que pode vir a ser a Lei Geral de Licenciamento Ambiental. Na outra ponta, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) procura proteger a legislação existente, os recursos naturais e as populações tradicionais de iniciativas com potencial ambiental desastroso.
A maior ameaça sobre a mesa neste momento é o parecer recente do deputado Mauro Pereira (PMDB- RS) apresentado à Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. O texto é considerado péssimo por ambientalistas, técnicos e pesquisadores da área, mas agrada ao agronegócio e à indústria. Representou, ainda, uma ruptura nas negociações que vinham sendo conduzidas por José Sarney Filho, ministro do Meio Ambiente, desde que assumiu a pasta há quase um ano e colocou o licenciamento ambiental como prioridade.
O texto de Pereira agrega itens que não faziam parte do acordo político acertado com Sarney Filho.
Como há regime de urgência neste tema, a proposta pode seguir para votação em plenário na Câmara a qualquer instante.
O principal ponto de discórdia é a extensa lista de isenções de licenciamento ambiental proposta. Pelo texto do deputado gaúcho, ficariam livres de licenciamento ambiental obras de saneamento, dragagem em hidrovias e portos, obras em ferrovias e rodovias, melhorias em sistemas de transmissão e distribuição de energia, pesquisa mineral na primeira fase exploratória. No entendimento do MMA, algumas atividades e empreendimentos poderiam ter licenciamento simplificado, mas não dispensa de licença.
A abertura de estradas na Amazônia, por exemplo, é um dos maiores vetores do desmatamento, sua pavimentação também pode ter potencial devastador. "Estão confundindo. Quando se fala em isenção de licenciamento, não estamos falando de obras novas. O que falamos é de manutenção", defende Pereira.
Ele cita como exemplo a manutenção da BR-163, o grande canal de escoamento de grãos do centro- oeste. "O que estamos falando é que a restauração, o recapeamento e a manutenção da estrada não precisam de licenciamento ambiental. O mesmo para aeroportos e ferrovias."
O entendimento de Nilson Leitão, presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), é mais elástico. "A BR-163 só tem sete metros de largura. Ali passam 17 mil carretas por mês. Eu não quero que tenha licença ambiental para duplicar uma estrada que já está pronta. Os que não querem desenvolvimento, por alguma razão, não querem dar licença", segue.
Os técnicos do Meio Ambiente, no exemplo da estrada, discordam desta narrativa. Se uma estrada, em seu licenciamento original, previa a duplicação, não é preciso novo rito. Caso contrário, sim.
Outro ponto de discórdia é o que vem sendo chamado de "aspecto locacional", conceito defendido por Sarney Filho desde que assumiu negociar a matéria. "Não se pode exigir de um posto de gasolina o mesmo que se exige de uma refinaria", costuma exemplificar. E a licença do mesmo posto de gasolina tem que observar a relevância ambiental da área onde irá se instalar. Trata-se de diferenciar o tratamento de um empreendimento planejado em um polo industrial de São Paulo ou no coração da Amazônia.
"Este é o maior ponto de discussão", opina Shelley Carneiro, gerente-executivo de Meio Ambiente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), dando a versão da indústria, que não apoia a lista de isenção do texto do relator. "O método que o MMA colocou para dizer o que é 'relevância ambiental' é frágil", reclama. "Está vago."
No entendimento ambiental, não há nada de vago. A ideia é considerar a relevância ambiental de uma área e cruzá-la com o potencial poluidor da atividade em questão, algo mais sofisticado que o mero critério do zoneamento econômico-ecológico. Também é preciso estabelecer um padrão nacional, para evitar guerras ambientais entre Estados com normas mais rígidas ou mais permissivas.
"Há evidências de que essa 'guerra' já esteja instalada atualmente, em face da inexistência da Lei Geral do Licenciamento Ambiental", diz parecer assinado por Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, presidente do Ibama, a agência ambiental responsável pelo licenciamento federal. O substitutivo de Pereira na comissão da Câmara tem por base o texto elaborado sob coordenação do MMA, diz o texto assinado por Suely. Mas com "alterações que implicarão problemas sérios na futura lei, assim como retrocessos em nossa legislação ambiental", continua o parecer da presidente do Ibama.
A discussão em torno de uma lei geral de licenciamento ambiental existe há 12 anos no Congresso, no Executivo e no Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama. Há dezenas de iniciativas nas três frentes. Sob o termo "flexibilização" se encaixam mais de 20 projetos de lei tramitando no Congresso, alguns com potencial de neutralizar a legislação ambiental. "Assumi esse processo porque estava ficando insustentável segurar um retrocesso no licenciamento ambiental no Congresso", diz Sarney Filho ao Valor.
A partir de reuniões com os setores interessados, Sarney Filho foi negociando e costurando um texto. Acertou com o agronegócio que o cultivo de espécies agrícolas, a pecuária extensiva e a silvicultura de florestas plantadas seriam liberados de licenciamento ambiental, desde que estivessem de acordo com o que estabelece o novo Código Florestal e a legislação ambiental em vigor - pontos que contrariam pesquisadores e ambientalistas.
"Chegamos a uma proposta que não era unanimidade, nem o projeto dos sonhos de ambientalistas, do agronegócio e da produção. Mas era uma melhora substancial e dava garantias de segurança socioambiental", diz o ministro.
O nó político explodiu no começo de abril, com o texto de Pereira incorporando itens não acertados com o MMA. "O que aconteceu foi que consultores que trabalham comigo foram chamados a mostrar o relatório a técnicos da Casa Civil. Ali analisaram que teria que se melhorar mais o relatório, para se adequar às necessidades do país", explica Pereira. "Esses assessores, que participaram de todas as negociações, demandaram um encontro no quinto escalão da Casa Civil e saíram de lá com essa proposta, que é um retrocesso inaceitável", retruca Sarney Filho. Segundo ele, a Casa Civil declarou apoio ao texto do MMA.
Hoje existe o texto consolidado pelo MMA, de 4 de abril e remetido à Casa Civil, e o texto de Pereira. "Assumi a relatoria há um ano, ouvi mais de 30 entidades neste processo", diz Pereira. "A palavra-chave é desburocratizar", defende o deputado Nilson Leitão (PSDB/ MT), um dos líderes ruralistas no Congresso. Segundo ele, a tendência é o texto seguir para votação mas os pontos em discordância receberiam tratamento diferenciado.
Leitão diz que não há consenso sobre a intervenção de órgãos no licenciamento como a Fundação Nacional do índio (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelas unidades de conservação federais.
Se um empreendimento minerário quer agir dentro de uma floresta nacional, por exemplo, o gestor da unidade de conservação pode barrar a licença de início. O Ibama, naturalmente, pede parecer da Funai quando um empreendimento pode afetar terras indígenas.
"A maioria das licenças hoje está parada porque existe um senão da Funai ou do ICMBio. O problema é que a Funai não funciona, demora para responder", diz Leitão. "Queremos inverter o jogo e comunicar a Funai depois. Assim o prejuízo da omissão será dela", diz.
"A inversão do prazo é uma aberração", reage o advogado Maurício Guetta, do Instituto Sociambiental (ISA), ONG referência na luta pelos direitos indígenas e quilombolas, e no monitoramento das unidades de conservação do país. "A mesma bancada parlamentar que diz que a Funai demora, tem um ministro da Justiça [Osmar Serraglio, do PMDB/RS] que corta quase a metade dos cargos da área de licenciamento da Funai", lembra Guetta. "Deste modo, um órgão que já é muito deficitário passa a sobreviver por aparelhos."
"O licenciamento demora porque os Estudos de Impacto Ambiental são péssimos", diz Sandra Cureau, subprocuradora geral da República que coordenou a Câmara de Meio Ambiente do MPF por dez anos. "São os empreendedores que pagam os estudos. É claro que nunca irão dizer que a obra que querem fazer é ruim, que causará muito impacto", segue ela. "Um bom estudo de impacto ambiental nunca irá atrasar o licenciamento."
Segundo ela, a proposta de Pereira é inconstitucional. Na Constituição, obras ou atividades que causem "significativo impacto ambiental" têm que ter Estudo de Impacto Ambiental. "Se passar, irá provocar uma montanha de ações judiciais", prevê.
Nilvo Silva, ex-diretor de licenciamento do Ibama na gestão da ex-ministra Marina Silva e hoje um consultor especialista no assunto, lembra que a discussão sobre licenciamento ambiental no Brasil, embora longa, produziu muita prática de licenciamento e muita experiência acumulada. "No Brasil temos certa ambiguidade. Queremos desempenho, mas não damos capacidade para os órgãos ambientais", diz ele.
Para Silva, a proposta de Pereira "vai em rumo totalmente contrário às evidências". "Precisamos de regras mais claras. De uma regra geral, que depois os Estados afinem. E não dizer que é cada um por si", registra. Ele não concorda com o acordo do MMA, que dispensa de licenciamento silvicultura de florestas plantadas, que tem impacto ambiental.
"A discussão legítima seria debater se o licenciamento é o melhor instrumento ambiental para isso. Mas esse debate não acontece. Dizer que não se quer nenhum controle, não existe, não pode ser aceito", diz.

Valor Econômico, 28/04/2017, Especial, p. A14

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