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Reabilitado, projeto que dificulta demarcação de terra indígena ganha impulso na Câmara

G1 - https://g1.globo.com/
29 de Mai de 2021

Reabilitado, projeto que dificulta demarcação de terra indígena ganha impulso na Câmara
Texto flexibiliza uso exclusivo de terras pelas comunidades e União poderá retomar áreas reservadas em caso de alterações culturais. Bancada ruralista diz que dará segurança jurídica.

Por Elisa Clavery e Luiz Felipe Barbiéri, TV Globo e G1 - Brasília

29/05/2021 05h00 Atualizado há 3 semanas

Um projeto de lei protocolado há 14 anos que, segundo críticos, dificulta a demarcação de terras indígenas e fragiliza direitos dessas comunidades foi ressuscitado e poderá avançar na Câmara dos Deputados a partir do próximo mês.

Na última quarta-feira (26), o projeto entrou na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), presidida pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), aliada do presidente Jair Bolsonaro.

No mesmo dia, artistas como o humorista Fábio Porchat e a atriz Leandra Leal foram às redes sociais para criticar a matéria.

Para a bancada ruralista, a proposta dará segurança jurídica ao consolidar em lei o que hoje é previsto em decisões judiciais.

Após pressão de parlamentares ligados ao meio ambiente e da oposição, o texto não chegou a ser votado na CCJ.

Em 2018, houve uma tentativa de aprovar o projeto na CCJ, mas o parecer nunca chegou a ser votado. Foi arquivado com a mudança da legislatura. O projeto também já passou pelas comissões da Agricultura, em 2008, e dos Direitos Humanos - nesta última foi rejeitado, em 2009.

Veja no vídeo abaixo reportagem do Jornal Nacional sobre protesto de índios em 2017, em Brasília, contra projeto que transferia do Executivo para o Congresso a palavra final sobre demarcação de terras indígenas:

Nesta quinta-feira, Bia Kicis se reuniu com lideranças indígenas que pediram que a proposta não seja recolocada em pauta.

Ao G1, a deputada confirmou que não deve pautar o projeto na próxima semana, mas disse que não há "nada resolvido" para a semana seguinte.

O projeto é uma das prioridades da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Segundo o presidente da frente, deputado Sérgio Souza (MDB-PR), foi entregue a Kicis e ao presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), junto a uma série de outras propostas de interesse do grupo.

"Esse é um dos projetos que a FPA tem um cuidado especial. Ele não inova em nada. Na verdade, a segurança jurídica que ele dá é transferir o que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu para o corpo da lei. Senão, você fica à mercê da interpretação de cada cidadão brasileiro, de cada agente do Ministério Público, de cada juiz, de cada produtor rural", declarou Souza.

Veja no vídeo abaixo reportagem do "Fantástico" de maio do ano passado sobre demarcação de terras indígenas:

Críticos da matéria, contudo, argumentam que o texto ultrapassa os limites de um regulamento e tenta mudar preceitos da Constituição por meio de lei ordinária.

A deputada indígena Joenia Wapichana (Rede-RR) diz acreditar que, ao flexibilizar o usufruto exclusivo dos indígenas nas terras reservadas, o projeto permitiria por exemplo a instalação de hidrelétricas e atividades garimpeiras sem a consulta das comunidades.

Ainda segundo a parlamentar, não há urgência para pautar a proposta principalmente num momento de pandemia.

"[O projeto] é uma verdadeira afronta ao direito de demarcação aos povos indígenas, é cheio de vícios constitucionais", disse.

"A proposta defende interesses privados de alguns que querem cada vez mais diminuir o direito às terras indígenas. O principal direito do índio é a terra."

Alguns dos pontos criticados pela proposta são:

criação de um "marco temporal" para as terras consideradas "tradicionalmente ocupadas por indígenas", exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988;
possibilidade de retomada, pela União, das terras indígenas reservadas, em caso de "alteração dos traços culturais da comunidade";
flexibilidade do "usufruto exclusivo" das terras pelos indígenas, hoje previsto na Constituição;
permissão de contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas;
possibilidade de contato com povos isolados "para intermediar ação estatal de utilidade pública".
O projeto original, apresentado em 2007, altera o Estatuto do Índio para determinar que a demarcação das terras indígenas, feita hoje por ato da Fundação Nacional do Índio (Funai), seja submetida à apreciação do Congresso.

Em parecer apresentado no último dia 12, o relator da matéria, Arthur Maia (DEM-BA), rejeitou a proposta original por considerá-la inconstitucional, mas apresentou um novo texto com base em outros projetos anexados ao primeiro - alguns que também tramitam na Casa desde 2007.

Além de alterar o Estatuto do Índio, o relatório apresentado regulamenta um dispositivo da Constituição que trata das terras demarcadas. Segundo Maia, o parecer tem como objetivo consolidar entendimentos sobre o tema já fixados pelo STF.

"O substitutivo que apresentamos busca consolidar em lei o entendimento amplamente majoritário, em garantia da segurança jurídica", diz no relatório.

"Enxergando os indígenas como cidadãos brasileiros que são, pretendemos conceder-lhes as condições jurídicas para que, querendo, tenham diferentes graus de interação com o restante da sociedade, exercendo os mais diversos labores, dentro e fora de suas terras, sem que, é claro, deixem de ser indígenas."

Contudo, segundo nota da Assessoria Jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), divulgada nesta semana, a justificativa do relator "não procede".

"A Corte Constitucional nunca fixou tese sobre a matéria indígena, tanto é verdade que em 2019 (ainda pendente de julgamento) foi conhecida a repercussão geral da matéria indígena. Então, até que o STF julgue esse processo de caráter objetivo e fixe uma tese vinculante, é falácia o argumento do relator", disse.

A proposta
O relatório de Arthur Maia cria, por exemplo, um marco temporal para delimitar o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. Segundo o texto, são aquelas que, na data da promulgação da Constituição - isto é, 5 de outubro de 1988 - eram:

por eles habitadas em caráter permanente;
utilizadas para suas atividades produtivas;
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Segundo o parecer, a interrupção da posse indígena ocorrida antes de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada. A exceção é para caso de conflito de posse no período.

Uma das críticas para o dispositivo, segundo entidades ligadas aos direitos dos indígenas, é que a Constituição funciona retroativamente, o que resguarda os direitos territoriais violados antes de 1988.

Outra mudança polêmica, criticada por quem discorda do texto, é a possibilidade de validar títulos de propriedade ou posse em área das comunidades indígenas. Neste caso, a desocupação será indenizada pelo Estado.

Críticos alegam que o dispositivo é inconstitucional, uma vez que a Carta Magna atualmente não reconhece atos para ocupação, domínio e posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.

O texto também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas.

Nesse caso, o relator cita um julgamento de 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que entre uma das 19 regras proibiu a ampliação das demarcações já feitas.

Quatro anos depois, porém, a própria Corte confirmou que o entendimento não tem efeito vinculante e não vale para todos os casos.

Ainda segundo a proposta, caso haja alteração nos traços culturais da comunidade, as áreas indígenas reservadas podem ser retomadas pela União para o "interesse público ou social" ou ainda destinar ao Programa Nacional de Reforma Agrária, com lotes "preferencialmente" a indígenas.

A Constituição diz que compete à União a atividade de demarcar terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, porém afirma que elas são de sua "posse permanente". Além disso, determina o uso "exclusivo" dos indígenas das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Segundo o parecer, o usufruto dos índios não abrange, por exemplo, o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, a garimpagem, a lavra de riquezas minerais e "áreas cuja ocupação atenda a relevante interesse público da União".

Outra flexibilidade do uso das terras exclusivamente pelos indígenas é um dispositivo que admite a cooperação e contratação de terceiros (não indígenas) para a realização de atividades econômicas. O texto coloca algumas travas que devem ser cumpridas, por exemplo:

a atividade deve gerar benefícios para a comunidade;
a posse dos indígenas deve ser mantida sobre a terra;
a comunidade precisa aprovar o contrato;
os contratos devem ser registrados pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Assessoria Jurídica do Cimi também questionou a alteração.

"Como poderia haver cooperação se as áreas indígenas são de usufruto exclusivo? Daí que essa passagem é de plano inconstitucional, pois afronta diretamente o texto da Carta de 1988, já que essa cooperação entre índio e não índios foi repudiada pelo constituinte", diz a nota.

Ainda segundo a avaliação da associação, a aprovação do projeto implicaria em "retrocessos inimagináveis" para os povos indígenas. "O direito indígena é cláusula pétrea e não se submete a reformas legislativas", diz a nota.

Em outro trecho, o relatório prevê ainda o contato em caso de indígenas isolados "para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública".

Segundo nota técnica do Instituto Socioambiental, também divulgada nesta semana, o dispositivo "converte a política de não-contato a uma política de 'contato evitado'".

"O Estado brasileiro, desde a redemocratização, estabeleceu destacada política de não contato com povos indígenas que vivem em isolamento voluntário", diz a nota.

"[A mudança no relatório é] hipótese inédita e demasiadamente ampla, que pode gerar ameaças aos povos indígenas em isolamento."

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/05/29/reabilitado-projeto-qu…

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