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Projeto de Lei Geral do Licenciamento libera asfalto em rodovia no coração da Amazônia

OESP, Metrópole, p. A17
12 de Mai de 2021

Projeto de Lei Geral do Licenciamento libera asfalto em rodovia no coração da Amazônia
As mudanças na legislação permitiriam o "autolicenciamento" expresso da BR-319, estrada que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM)

André Borges, O Estado de S.Paulo
11 de maio de 2021
Atualizado 11 de maio de 2021 | 18h27

BRASÍLIA - O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, previsto para ser votado nesta quarta-feira, 11, pelo plenário da Câmara, contém regras que, se entrarem em vigor, permitirão o asfaltamento de uma rodovia no coração da floresta amazônica, em uma das áreas mais cobiçadas por madeireiros e invasores de terras.

As mudanças na legislação permitiriam o "autolicenciamento" expresso da BR-319, estrada de 870 quilômetros que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM). O traçado, que hoje não possui licença prévia que comprove a viabilidade ambiental do empreendimento, tem boa parte do seu trajeto central em leito natural.

Ambientalistas afirmam que, caso as obras da BR-319 sejam retomadas sem considerar a complexidade ambiental da região, podem resultar em experiências catastróficas, como o que ocorreu ao longo de toda a BR-163, a rodovia Cuiabá (MT) - Santarém (PA). Por falta de fiscalização e controle, o entorno da BR-163 é tomado por terras em situação irregular, áreas desmatadas irregularmente e focos de incêndio.

O novo substitutivo do Projeto de Lei 3.729/2004, que flexibiliza o licenciamento ambiental no País, passa a enquadrar as obras no traçado como "melhoria" e, por estar na área de domínio da estrada, poderia ser liberada automaticamente.

A região central da BR-319 é umas áreas mais sensíveis da biodiversidade amazônica. Desde 2009, o Ibama aguarda complementos de um Estudo de Impacto Ambiental (Eia-Rima) para autorizar que essa parte central da BR-319, um trecho de 400 km de extensão que está em situação quase intrafegável, seja pavimentada.

Há dez anos, o órgão submeteu seus estudos ambientais ao Ibama. A qualidade do material entregue, no entanto, considerada ruim, levou a autarquia a declarar, naquele ano, que o estudo "não reúne as mínimas condições e informações que permitam avaliar a viabilidade ambiental do empreendimento".

O pavimento da rodovia, que foi construída e pavimentada entre 1968 e 1976, acabou abandonado após o fim dos recursos do governo militar. Nos anos seguintes, foi rapidamente dissolvido pelas chuvas, pelas altas temperaturas e pela drenagem do solo. Chegou a ter tráfego em alta velocidade, com linhas de ônibus que faziam de Manaus a Porto Velho em 12 horas. Menos de uma década depois, a estrada já não permitia aceleração acima de 40 km/h, por causa do estado deplorável do asfalto.

Em 1988, a rodovia era "intrafegável", conforme registros históricos do Ministério dos Transportes. Hoje, o projeto está no topo das prioridades do Ministério da Infraestrutura e é cobrado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Para Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, o texto do PL do Licenciamento relatado pelo deputado Neri Gueller (PP-MT), o asfaltamento do trecho do meio da BR-319, pelo procedimento sumário do autolicenciamento, é inconstitucional.

"A proposta faz referência expressa à aplicação da Licença por Adesão e Compromisso, a LAC, para pavimentação em instalações preexistentes. O problema é que transformaram a LAC em um autolicenciamento sem nenhum critério ambiental", comenta a especialista.

Nem mesmo está garantida a conferência do relatório de caracterização do empreendimento, o único documento requerido, alerta Araújo. "O texto fala em amostragem para essa finalidade. Garantia de vistoria em todos os casos de LAC, nem pensar. É o liberou geral, estão matando o licenciamento ambiental. Se duvidar, vão alegar 'melhoramento da infraestrutura em instalações pré-existentes' e isentar de licença de vez", diz.

Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), afirmou que "a proposta é altamente nociva para a gestão ambiental brasileira" e prejudicará ainda mais a imagem ambiental do Brasil no exterior caso seja aprovada. "Além de minar os caminhos da sustentabilidade, cria um verdadeiro atoleiro para a segurança jurídica do licenciamento ambiental", disse.

Após a publicação desta reportagem, o Ministério da Infraestrutura (Minfra) declarou que a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) não será usada em projetos de alto impacto, como a BR-319, e que, se o texto atual do projeto de lei dá esse entendimento, será alterado para deixar claro esse impedimento.

Segundo o Minfra, o licenciamento audeclatarório está voltado a obras simples de rodovias que já existem, como passagens e intervenções de ampliação de capacidade, ou seja, em casos sem "significativo impacto". Empreendimentos como a BR-319 terão, obrigatoriamente, que incluir a contratação e aprovação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

De acordo com o Minfra, este item deverá ser retrabalhado no texto final do PL, para evitar outras interpretações. O alvo da LAC, segundo a pasta, são projetos como a construção do acostamento da BR-158, entre o Mato Grosso e o Pará, que tiveram que passar por licenciamento.

Hoje, a BR-319 sequer teve a licença prévia ambiental aprovada para o seu trecho central, ou seja, sequer há autorização que ateste a viabilidade da obra. Somente após a licença prévia emitida pelo Ibama é que será buscada a licença de instalação, que permite o início da construção, para depois requerer a licença de operação, que autoriza seu uso efetivo.

Manifestações
Dezenas de instituições se manifestam nesta terça-feira, 11, na tentativa de convencer o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) a retirar o projeto de pauta. Neri Gueller afirma que se trata de um PL já discutido e revisitado há 17 anos e que o texto final não contém "ideologia". Os ambientais, porém, alertam que a versão final foi feita a portas fechadas, sem espaço para debates e questionamentos, tampouco para busca de consensos.

A Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional pediu a retirada de pauta do projeto, sob o argumento de que "é extremamente necessário levá-lo para discussões mais aprofundadas antes de uma apreciação em plenário" - inicialmente a votação estava marcada para esta terça-feira, 11, mas foi adiada para quarta-feira, 12.

"O referido projeto não apresenta qualquer avanço nas pautas de enfrentamento da emergência climática e está completamente desconectado dos biomas e da gestão integrada. Se aprovado, o País perderá a oportunidade de inovar por meio da avaliação ambiental estratégica, do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e da análise integrada. Além disso, poderá enfraquecer a segurança jurídica e a judicialização desse importante instrumento ambiental", declarou, por meio de nota.

Os protestos contrários à aprovação do projeto reuniram ainda manifestações de organização como a Associação Nacional dos Servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ascema Nacional), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e movimentos do campo, como Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

As manifestações também vieram de organizações ligadas à proteção de comunidades indígenas e ribeirinhas, como Instituto Socioambiental (ISA), Indigenistas Associados (INA) e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Do lado dos ruralistas, o PL conta com campanha favorável pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e o Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico.

No Congresso, a percepção geral é de que, apesar da pressão, parlamentares da bancada ruralistas querem impor sua maioria e, com apoio de Arthur Lira, levar a votação para o plenário, independentemente das críticas.

OESP, 12/05/2021, Metrópole, p. A17.

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