VOLTAR

A pressa do atraso

OESP, Vida, p. A12
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
20 de Jan de 2005

A pressa do atraso

Marcos Sá Corrêa

Ela tem cara de que veio para ficar. Assim, vista de longe, parece máquina de lavar roupa, das pequenas, ou aparelho de ar condicionado, dos grandes. Em número de botões, perde para qualquer liquidificador. Só não dá para chamá-la de eletrodoméstico porque, em vez de gastar, ela fabrica sem poluição num canto da casa energia de sobra para manter ligadas três geladeiras ou dezenas de computadores o mês inteiro.
Em outras palavras, é um gerador "prático" a gás natural, o primeiro do mundo que promete trazer para o front na cozinha, sem barulho nem fumaça, a guerra nas estrelas contra o aquecimento global, a emissão de carbono ou o efeito estufa, sem apagar a luz em domicílio. Mais cedo ou mais tarde, o brasileiro provavelmente ouvirá falar dele em anúncios da TV. Mas, por enquanto, basta saber que ele existe para notar que há mais coisas no mundo da crise energética do que discurso do presidente Lula.
Ele voltou a falar outro dia sobre as hidrelétricas que estão emperradas e emperrando o Brasil por falta de licença ambiental. E até seu governo sabe que a história não é bem essa. Na Comissão de Meio Ambiente da Câmara, há um relatório dizendo que elas se baseiam em documentos cortados sob medida para vestir o currículo de fiscais cegos. Levado à Justiça por uma ONG, o caso de Barra Grande, no Rio Pelotas, que é uma dessas emergências hidrelétricas, acabou vazando nos jornais. Ali, ficou claro que houve fraude. Mas está quase pronta. E vai funcionar assim mesmo.
Não se discute a importância de fazer usinas. Mas é estranho que também não se discuta a conveniência de fazê-las legalmente só por que, em meio de mandato, o governo Lula tem pressa. Deu a largada no asfaltamento da BR-163 e na transposição do Rio São Francisco - apelidada de "revitalização", para deixar todo mundo mais tranqüilo - antes de avaliar o custo ambiental das duas empreitadas. Bom exemplo para as empresas que operam na geração de fatos consumados. O relatório sobre o São Francisco é tarefa para 150 técnicos. Eles têm até abril para trabalhar.
No fundo, continuamos enfrentando os grandes problemas nacionais com uma bala só, como dizia o presidente Fernando Collor, o do impeachment. É uma tradição que vem de longe. E até agora ela só nos trouxe até aqui. Em 1855, levamos à Exposição Universal de Paris, como amostra de nosso progresso tecnológico, os produtos de uma agricultura movida a escravo. "O nosso mercado não é mais um pequeno ponto da Europa", escreveu na ocasião o engenheiro Guilherme Capanema. "O mercado agora é todo o mundo civilizado" - onde, por sinal, a escravidão tinha acabado.
Duas décadas depois, quando o esgotamento do solo já dava todos os sinais de que secaria de uma vez por todas as fortunas e os baronatos mentidos pelo café no Vale do Paraíba, o ministro João Luis Cansansão de Sinimbu convocou um Congresso Agrícola, para tratar da crise dos fazendeiros. Conclui-se que tudo não passava de "braços e capitais". Era a pressa a serviço do atraso.
Se tudo correr como prevê o calendário de 2005, Lula tem pela frente uma agenda ambiental de tirar o fôlego. Logo que acabar o carnaval, oficializará a canalização do São Francisco, a pavimentação da Cuiabá-Santarém e a MP dos transgênicos, na mesma hora em que sairá da gaveta o recorde de 30 mil quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia, que bateu no ano passado. É coisa demais para trafegar na contramão do mundo ao mesmo tempo.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 20/01/2005, Vida, p. A12

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.