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Polêmica no Xingu

CB, Brasil, p. 13-14
27 de Ago de 2006

Polêmica no Xingu
Construção da hidrelétrica de Paratininga 2, no Mato Grosso, é alvo de críticas. Usina estaria sendo erguida sobre local sagrado de povos xinguanos, mas estudo indica que o sítio arqueológico fica em outro lugar

Olímpio Cruz Neto
Da Equipe do Correio

Nos próximos meses, órgãos federais decidem o que fazer com uma das construções mais importantes para o desenvolvimento da região Centro-Oeste: a hidrelétrica de Paratininga 2. Situada a 100km do Parque Indígena do Xingu, onde vivem 4,7 mil índios de 14 etnias, a obra vem sendo tocada pela empresa Paranatinga Energia S/A desde 2004. Quando for concluída, deve gerar cerca de 29MW, o que aponta sua modesta capacidade de transformar água em energia elétrica. Mesmo assim, a obra está cercada de polêmica e encontra-se no centro de uma disputa que envolve líderes indígenas, o Ministério Público Federal, o governador Blairo Maggi (PPS-MT), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), além de organizações não-governamentais e ambientalistas e a própria empresa responsável pelo empreendimento.
Tudo porque a pequena usina estaria sendo construída sobre um dos sítios sagrados dos índios xinguanos: o Sagihenhu ou Sagikengu.

A localização exata desse lugar mítico é alvo de controvérsias. Há poucos meses, uma equipe multidisciplinar integrada por 21 antropólogos, arqueólogos e historiadores, entre outros estudiosos, entregou ao Iphan um relatório, encabeçado pela antropóloga Érika Marion Robrahn-Gonzalez, da Universidade de São Paulo (USP).

O documento preparado pela equipe da Documento Antropologia e Arqueologia, contratada pela Paranatinga Energia S/A, ao qual o Correio teve acesso, aponta indícios da localização exata do Sagihenhu, que nada mais é do que a terceira das quatro passagens sagradas da mitologia dos povos xinguanos. Foi nesse lugar que realizou-se, em tempos imemoriais, a primeira festa do Kuarup, e onde nasceu a própria humanidade. Comparativamente, o local sagrado tem a mesma importância para os índios que a cidade de Jerusalém, em Israel, para cristãos, judeus e muçulmanos.

Pelo trabalho dos especialistas, o Sagihenhu fica situado fora do Parque do Xingu em um lugar conhecido como Travessão do Avelino.
Envolvendo a extensão de 1km na calha do Rio Culuene, principal formador do Rio Xingu, com a barreira natural de rochas formando uma queda do leito do rio. Os pesquisadores sugerem e reivindicam do governo federal medidas legais para a preservação do local, incluindo as faixas de 1km de largura ao longo das margens direitas e esquerda do rio, onde foram localizados sítios arqueológicos de antigas aldeias indígenas. Essa área formaria um corredor ecológico que seria anexado à Reserva Ecológica Estadual do Rio Culuene.

Tombamento ainda é incerto

O processo de reconhecimento da área está em tramitação no Iphan. Segundo Rogério Dias, coordenador da Gerência de Patrimônio Arqueológico e Natural do Iphan, não há prazo para que a área seja reconhecida como de ocupação imemorial dos índios xinguanos. Se isso vier a ocorrer, medidas resultariam, possivelmente, na desapropriação de fazendas localizadas nas imediações do Sagihenhu. "Caso venha o reconhecimento da área, e o conseqüente tombamento como patrimônio imaterial dos índios, a preservação deve ser seguida da desapropriação de terras da área", explica.

Alguns líderes indígenas, entretanto, insistem que o lugar sagrado não é o indicado pelo estudo antropológico, também remetido à Funai. Para eles, é sob a hidrelétrica que está sendo construída que está exatamente o sítio sagrado. Eles avaliam que a obra representa uma ameaça à sobrevivência das espécies de peixes, sua principal fonte de alimentação.
Desde julho, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vem pressionando o governo Lula a paralisar as obras. A Igreja Católica deu início, inclusive, a um abaixo-assinado para que a sociedade civil se mobilize e amplie ainda mais essa pressão.

A usina de Paranatinga 2 está sendo erguida no leito do Culuene, entre os municípios de Campinópolis e Paranatinga (MT). O início da obra foi possível graças a um acordo, contestado na Justiça Federal, fechado entre o governador Blairo Maggi, líderes xinguanos e a Paranatinga Energia S/A. Em troca da permissão para a hidrelétrica, as comunidades receberiam R$ 1,3 milhão para projetos de incentivo à piscicultura e um centro de treinamento.

O problema é que, para os procuradores e a Funai, o acordo não tem valor legal. Nenhum dos órgãos foi ouvido e não há chancela federal para o licenciamento ambiental. Orçada em R$ 4,6 milhões, a obra prevê o alagamento de uma área de 1.290 hectares, dos quais 920 hectares são de vegetação nativa. A barragem está levantada a 2km da reserva ecológica. E é só a primeira de outras 11 a serem instaladas na bacia hidrográfica da região.

O procurador da República Mário Lúcio Avelar entrou com ação civil pública, ainda no ano passado, para impedir a continuidade das obras da usina. Uma decisão liminar da Justiça Federal acatou a suspensão dos trabalhos, também em 2005. Mas, desrespeitando a decisão, a empresa manteve o cronograma de obras para a construção da barragem.
Em junho passado, mais de 150 índios, representando as 14 etnias do Xingu, ocuparam pacificamente a obra e impediram sua continuação.

O Ministério Público Federal pediu à Justiça que a Fundação Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso fosse impedida de conduzir o licenciamento ambiental das obras. Para o procurador da República, o licenciamento ambiental deveria ser realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que ainda não se pronunciou sobre o assunto. Enquanto isso, a controvérsia continua.

Resquícios de um sítio sagrado
A partir de depoimentos de líderes dos povos xinguanos e de estudos topográficos, pesquisadores garantem que o Kuarup teria surgido às margens do Rio Culuene. Material está nas mãos do Iphan

O relatório Programa de Patrimônio Cultural, elaborado por uma equipe de 21 especialistas e financiado pela Paranatinga Energia S/A, teve como objetivo inicial identificar o local exato do Sagihenhu, o lugar sagrado que deu origem à festa do Kuarup. O relatório de 457 páginas, ao qual o Correio teve acesso, é parte dos estudos ambientais para a implantação da usina de Paranatinga 2.

As pesquisas foram realizadas durante um ano e concluídas há três meses, quando o documento foi encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que analisa o possível tombamento da área. Os pesquisadores percorreram aproximadamente 300km na calha do Culuene e mais 105km de trilhas perpendiculares do rio. Nesse percurso, foram cadastrados seis travessões - barreiras naturais de rochas formando pequenas quedas de água ao longo do leito do rio - e 10 sítios arqueológicos.

De acordo com os especialistas, o Sagihenhu ficaria mesmo às margens do Rio Culuene e fora das imediações do Parque Indígena do Xingu, embora não exatamente onde está sendo construída a hidrelétrica de Paranatinga. O chamado Travessão do Adelino teria satisfeito os quatro pressupostos para a identificação do sítio sagrado dos índios xinguanos: a presença de uma cachoeira, chamada de "ogo" pelos índios; dos "caldeirões no lajedo" - os "moquéns do sol", onde os peixes eram capturados para a celebração do Kuarup -; de vestígios de atividades humanas; e de um sítio arqueológico nas duas margens do rio, provando a existência de uma aldeia remota no local.

Os antropólogos, arqueólogos e historiadores envolvidos no trabalho organizaram dezenas de reuniões, entrevistas e visitações em 12 aldeias das nove etnias que vivem no Alto Xingu. Caciques, pajés e os antigos sábios das aldeias, escolhidos pelos próprios índios, descreveram o mito do Kuarup. Primeiro, os depoimentos foram colhidos individualmente pelos pesquisadores. Depois, houve uma conferência, ainda no final do ano passado, para colher um relato conjunto. Foi nessa ocasião que formou-se uma comissão de 12 índios - sete contadores do Kuarup, um tradutor e quatro convidados - que visitou os pontos mais prováveis de onde seria o Sagihenhu. Foram eles que reconheceram o Travessão do Adelino como sendo o sítio sagrado.

Durante o reconhecimento do local, os índios uaurás e os cuicuros, que acompanhavam o grupo, não se pronunciaram. Isso porque, de acordo com o consenso dos povos xinguanos, apenas os índios calapalos detêm a autoridade de se pronunciar sobre o mito sagrado do Kuarup.

O cacique Tafukuma Kalapalo, 55 anos, contou que esteve no Travessão do Adelino quando tinha 12 anos de idade, junto com seu pai, também um cacique. Tafukuma indicou os locais de acampamento, de pesca e de coleta de raízes utilizadas para fortalecer os guerreiros que participam do ucauca, a luta cerimonial de encerramento do ritual. Os pesquisadores consideraram determinantes tais depoimentos. Cabe ao Iphan a palavra final sobre a autenticidade desse sítio histórico.

Cerimônia

O Kuarup é considerado uma das mais fantásticas festas dos povos indígenas brasileiros e, provavelmente, uma das mais bem documentadas. O ritual é feito todos os anos pelos grupos que vivem no Parque do Indígena do Xingu. A cerimônia é uma homenagem aos seus mortos. Os troncos feitos da madeira "kuarup" são a representação concreta do espírito dos mortos ilustres.

A festa é pano de fundo do romance Quarup (1967), de Antonio Calado, que gerou o filme homônimo, dirigido por Ruy Guerra, lançado em 1989 e estrelado por Claudia Raia, Taumaturgo Ferreira, Fernanda Torres e Cláudia Ohana. O ritual de homenagem aos mortos dos índios xinguanos corresponderia à cerimônia de finados dos cristãos.

O mito do começo do universo

O relato feito pelos líderes indígenas ao grupo de antropólogos que tentou desvendar o local exato do ritual sagrado do Kuarup é transmitido oralmente por gerações. A lenda conta sobre o nascimento do Sol e da Lua, filhos de uma onça, e da filha de Mayutsinin, chefe de uma das três aldeias que existiriam no universo. O ritual religioso, na versão dos índios, seria uma festa do Sol e da Lua para homenagear a mãe, morta pela avó, uma onça.

Contam os índios que Mayutsinin entregou as filhas, não se sabe exatamente quantas, para a onça em troca da vida. Ele teria invadido a aldeia da onça em busca de embira - o elemento extraído da entrecasca das plantas - para fazer uma flecha.

As filhas resistiram a cumprir a promessa do pai, mas seguiram o destino. No caminho para a casa do futuro "marido", muitas morreram. Sobraram apenas duas, que se tornaram esposas da onça. Uma delas ficou grávida, mas acabou morta pela sogra que ficou irritada por ela ter descumprido uma ordem do marido.

Os filhos - o Sol e a Lua - foram criados pela tia sem saber que a mãe havia sido assassinada pela própria avó. O segredo foi revelado por um bicho. Em represália, eles mataram a avó.
Mas o espírito da mãe dos dois não sobe para o céu. Sol e Lua decidem fazer o enterro da mãe. Preparam uma cerimônia e convidam todos os bichos e os peixes que vêm do Morená, considerado o centro do mundo dos índios, para participar.

No caminho, os peixes enfrentam obstáculos, pedras grandes que impedem a sua passagem, mas conseguem ultrapassar. Durante o percurso, eles encontram Kassi, que estava pescando na beira do rio com arco e flecha. Os peixes pedem para que Kassi desista da caça e os acompanhe para a festa do Kuarup. Kassi era humano e aceita o convite.

A cerimônia envolve a participação de todos, que choram, cantam, tocam os seus instrumentos e dançam. Por fim, eles participam de lutas de competição entre representantes das aldeias. Só os mais fortes entram nesses jogos. Kassi participa ativamente de toda a cerimônia e, na volta, conta tudo para a sua esposa. E é por isso que os índios sabem da história. Pois toda esta cerimônia acontece no lugar conhecido pelos índios como Sagihenhu. (OCN)

Roteiro Mágico
Existem quatro sítios sagrados para os índios do Xingu, que explicam a organização social, mitos e cultura:

Morená
Considerado o centro do universo xinguano, o sítio está inscrito na maioria das narrativas míticas de criação do mundo e da humanidade.
O lugar é ocupado desde os tempos pré-coloniais, quando existiam ali as grandes aldeias fortificadas. Este é o único lugar situado dentro dos limites do Parque do Xingu.

Kamukuaká
Esta caverna tem desenhos xinguanos. É tida como centro ritualístico pelos índios uaurás e bacairis e era utilizada por eles com freqüência até a delimitação do parque. É neste local que teria surgido o ritual de furação de orelha.

Ahasukugu
Um dos locais centrais da narrativa da criação do mundo e do ritual do Kuarup.
Embora sua localização exata seja desconhecida, relatos orais dos índios fazem referências ao alto do Rio Culuene e a uma região entre o rio e o Curisevo.

Sagihenhu
O nome é dado ao local onde o Sol e a Lua realizaram o primeiro Kuarup em homenagem à mãe deles.
Estaria localizado à margem direita do alto do Rio Culuene, no ponto conhecido como "o moquém do Sol", área onde haveria "pedras com depressões", chamadas de "caldeirões", criadas pelo Sol para pegar os peixes que, moqueados, serviriam para alimentar os convidados do primeiro Kuarup.

CB, 27/08/2006, Brasil, p. 13-14

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