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Para que servem os números da Amazônia, afinal?

Agência Estado (São Paulo-SP)
Autor: JOHN, Liana
27 de Jun de 2003

Há 15 anos o INPE faz o levantamento da área desmatada na Amazônia e o Governo Federal não sabe bem o que fazer com os dados, concentrando-se na busca de vilões ao invés de trabalhar com as conexões econômicas

Campinas - A sensação é a de ganhar uma batata quente: difícil de segurar, com risco de se queimar e uma imensa vontade de se livrar do incômodo. Assim costumam reagir as autoridades do Governo Federal sempre que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) está para anunciar os índices de desmatamento na Amazônia. Se a tendência é de aumento do desmatamento, então, a coisa piora muito: os números viram segredo de Estado, há uma corrida em busca de sugestões de medidas emergenciais de fiscalização, proliferam acaloradas discussões sobre culpados e culpáveis e quando, enfim, os índices são despejados na mídia, chovem críticas sobre o leite derramado.

Há 15 anos o INPE faz o levantamento do desmatamento da Amazônia com base em imagens de satélite e, apesar das várias mudanças de governo, há 15 anos é assim. No início, quando a metodologia era nova e a contabilização dos desmatamentos era manual, houve polêmica quanto à veracidade do retrato da devastação na Amazônia e a credibilidade do INPE chegou a ser colocada em cheque. Depois, a metodologia se provou realista, a contabilização foi digitalizada, reduzindo as margens de erro e o Brasil aprendeu a conviver com esta imagem desagradável, de país campeão em destruição da última grande floresta tropical do planeta. A polêmica, então, se transferiu para as causas dos desmatamentos.

Nos primeiros anos, os vilões eram os incentivos fiscais, os grandes fazendeiros, a agropecuária de grande escala, que, aliás, nunca deixou de avançar. Depois, naquele pico de 29 mil km2 de 1995, foi a vez da pequena agricultura e dos assentamentos. Agora é a nova onda de monocultura de soja, de um lado, e a associação de assentados e/ou sem terras invasores com madeireiros. Enfim, mudam os atores principais, mas o pano de fundo continua sempre o mesmo, sempre esmaecido pelo alarde em torno dos números.

É verdade que algumas das medidas emergenciais eventualmente funcionam. Só que a maioria dos avanços positivos é temporária, persistindo enquanto dura o interesse direto (ou a gestão) de um ministro do Meio Ambiente ou a preocupação com a imagem externa do país, no Itamaraty. Ou enquanto se mantém a atenção da mídia, digo, da opinião pública.

Em outras palavras, a questão central é constantemente esquecida. E ela está lá, naquele pano de fundo esmaecido: é a realidade econômica da Amazônia, ou, melhor dizendo, a autonomia com que as forças econômicas atuam em uma região imensa do Brasil, à revelia dos planos de ação, das intervenções pontuais e, sobretudo, da vontade política do Governo Federal. As forças econômicas na Amazônia tem uma lógica própria, que não é afetada por leis e decisões federais.

Por melhores que sejam os sistemas de controle dos planos de manejo em áreas de extração madeireira autorizada - e o Sisprof, hoje utilizado pelo Ibama, é excelente, avançadíssimo - seu efeito sobre a devastação da Amazônia é mínimo. Porque o grosso da exploração madeireira no país é ilegal; é madeira roubada de unidades de conservação; é madeira negociada irregularmente com índios; é madeira requentada de apreensões relaxadas por juízes locais; é madeira retirada de lotes de assentamento, dispensada de licenciamento ambiental ou da elaboração de planos de manejo. Ou seja: como controlar a exploração madeireira na Amazônia, se ela tem uma lógica própria, uma dinâmica econômica própria e ignora solenemente as regras federais ?

E na agropecuária é assim também. Como controlar um desmatamento para abertura de um novo cultivo de soja quando a terra é grilada, o verdadeiro dono não aparece nas escrituras (e às vezes nem aparece na fazenda) e o símbolo das autoridades locais são os três macaquinhos (não vejo, não ouço, não falo)? Ou, na outra ponta, como controlar um desmatamento numa pequena propriedade, no extremo de um ramal secundário de uma estrada perdida, quando chegar até lá leva mais de uma semana e os responsáveis pelas roças sequer participam do mercado de consumo local? Que efeito podem ter medidas legais sobre quem vive na ilegalidade ou em tal isolamento?

O exemplo mais contundente dessa autonomia amazônica, desse motor de avanço sobre a floresta, que funciona sozinho, são as estradas. Enquanto o Governo Federal discute a abertura de uma nova estrada - como foi o caminho para o Pacífico, através do Acre - ou a pavimentação de uma rodovia importante - como a BR-163, conhecida como Cuiabá-Santarém - as forças econômicas locais criam e transferem cidades inteiras, adiantando a construção e preparo das estradas por conta própria, quilômetro a quilômetro. E quando o Governo Federal acorda e supera a fase de reuniões (se supera), a estrada já está lá, as serrarias já foram transferidas, a frente de desmatamento já se mudou e o remédio é correr atrás do prejuízo. Via de regra, com a infeliz constatação de que o prejuízo ambiental nem sempre pode ser recuperado.

Em resumo, falta ao Governo Federal perder o medo de pegar esta batata quente - que são os índices de desmatamento da Amazônia - esfriar, avaliar, detalhar e colocar sobre o pano de fundo, fazendo as conexões com a economia amazônica. Falta olhar os números como um instrumento de trabalho e não como um problema de imagem-que-será-deturpada-pela-mídia. E com este instrumento elaborar uma política para a Amazônia, com medidas de curto, médio e longo prazo.

Diz a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, que é o que se pretende fazer desta vez, com a convocação dos outros ministérios para enfrentar solidariamente o desafio de reverter as taxas de desmatamento.

Esperamos que dê certo. Esperamos que os pilotos da Economia do país descubram que sustentabilidade não é só a palavra da moda, para pendurar ao lado de iniciativas pontuais, em reservas extrativistas. É para usar em todas as propostas de desenvolvimento. E ainda esperamos, que os líderes políticos enxerguem a necessidade de recolocar a Amazônia num novo cenário de legalidade.

É uma tarefa gigantesca. Bem maior do que o buraco deixado pelos 25.500 km2 de matas derrubadas em 2002.

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