VOLTAR

O pequeno, o simples, o silêncio, a liberdade

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
13 de Out de 2006

O pequeno, o simples, o silêncio, a liberdade

Washington Novaes

Duas notícias do mesmo dia e que, em princípio, não têm relação uma com a outra conduzem o raciocínio numa mesma direção. A primeira é a da aprovação da lei contra a poluição visual na cidade de São Paulo (Estado, 26/9). A segunda é a da concessão de uma liminar pela Justiça Federal que suspende o embargo às obras de construção da pequena central hidrelétrica Paranatinga II, no Rio Kuluene (o principal formador do Rio Xingu), que estavam suspensas por sentença de primeira instância (Instituto Socioambiental, 26/9).

Não há como negar que a poluição visual é um dos principais fatores de stress nos aglomerados urbanos. Neles é impossível abrir os olhos no espaço público ou nas janelas sem ter a visão atraída por uma presença sem limites de apelos publicitários e pichações, que poluem o espaço urbano, cansam a vista, afligem a emoção - ao lado da contribuição dada pela telha de amianto, pelos vitraux e pelo tijolo aparente para enfear a antes despojada arquitetura popular. Não há repouso para o olhar, espaço para a beleza e para o convívio com a natureza - também bloqueada ao olhar e à sensibilidade pelas construções onipresentes.

Talvez não haja espaço melhor para sentir quanto nos distanciamos do convívio com o espaço, a simplicidade, a beleza, a liberdade do que uma estada em aldeia indígena que ainda não tenha sido muito modificada pela presença dos produtos da tecnologia branca. E o autor destas linhas acaba de retornar de uma viagem a reservas indígenas do Alto Xingu, norte de Mato Grosso e sudoeste do Pará, documentadas para uma série de programas para televisão.

Nesses lugares, praticamente desaparece o convívio com o 'grande', que é presença quase única na comunicação nacional. Existe televisão em casas de todas as aldeias. Mas o noticiário é pouco visto, porque está muito afastado do interesse dali e porque para vê-lo é preciso ter combustível que alimente o gerador de energia (e isso custa dinheiro, escasso nesses lugares). Como também quase não há notícia da vida fora de casa - que no espaço urbano toma quase todo o tempo disponível -, retorna-se, então, ao 'pequeno', ao cotidiano da aldeia, às relações pessoais, aos fatos aparentemente sem importância do dia-a-dia, mas cheios de significados e emoções. Retorna-se ao silêncio. À relação forte com a natureza, no banho de rio ou lagoa, no contato com o solo (anda-se muito a pé), na visão da imensa abóbada celeste, noite e dia. À visão do que podem ser a liberdade e a alegria das crianças. À cor, à dança, à tradição. À consciência de que não são indispensáveis gigantescas construções para tudo. Como ensina o índio Ailton Krenak, 'vocês, brancos, sempre querem fazer coisas enormes, definitivas, eternas; na nossa cultura, tudo é transitório, como a vida; até a casa, que de tempos em tempos é refeita'.

A relação com a outra notícia está em que os índios do Parque Indígena do Xingu e de reservas mais ao norte, como os metuktires (antigamente chamados de txukarramães) e os panarás (antes chamados de kren-akarores, ou 'índios gigantes'), temem muito as conseqüências, em seu modo de viver, da implantação da hidrelétrica agora liberada e de outras previstas para rios formadores do Xingu (estão planejadas mais cinco). Embora a decisão da Justiça não seja definitiva, até que se chegue a uma sentença final podem transcorrer cerca de dois anos - e até lá as obras poderão ser completadas, o que provavelmente as tornará definitivas.

Os grupos indígenas têm vários argumentos. O primeiro é de que a hidrelétrica do Kuluene afetará a reprodução dos peixes - e eles são básicos para a sua subsistência. O segundo é de que reservatórios de hidrelétricas podem afetar o fluxo de rios, na fase de enchimento e em épocas de estiagem, quando acumulam água, prejudicando quem esteja a jusante. Terceiro, que o reservatório ocupa área considerada sagrada, onde surgiu o cerimonial do Kuarup. Quarto, que outro laudo, ainda não divulgado pela Funai, mostraria que parte da área também é território tradicional xavante. Quinto, que essa ocupação intensificará o processo de desmatamento do entorno do parque pela agropecuária - o que já vem tendo conseqüências sérias, com a poluição por agrotóxicos e perda de matas ciliares afetando os fluxos hidrológicos. O Parque Indígena do Xingu, na expressão forte de Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio, está recebendo 'o abraço da morte'.

Todos os grupos mencionados não se conformam com a implantação das hidrelétricas. E aos seus argumentos se acrescenta o do Ministério Público Federal segundo o qual o licenciamento de Paranatinga II pelo governo de Mato Grosso contraria a legislação, pois seria necessário licenciamento pelo Ibama, dadas as características do rio. E a previsão de várias hidrelétricas exigiria o licenciamento conjunto, para toda a bacia, não apenas para o espaço dessa obra.

A empresa construtora argumenta que comprou em leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) o direito de implantar essa usina, já licenciada. Mostra que fará um canal ao lado da barragem para permitir o fluxo de peixes. E apresenta laudo de cientistas segundo os quais o reservatório não comprometeria a área sagrada para os índios.

Todos os argumentos poderão tornar-se secundários, pois quando vierem a ser apreciados para o julgamento final a barragem poderá ser irreversível. Mas qualquer que seja a visão que se tenha, não haverá como escapar - estão em jogo o grande e o pequeno, o simples e o complexo, o transitório e o 'definitivo', modos de viver muito diferentes.
Washington Novaes é jornalista

OESP, 13/10/2006, Espaço Aberto, p. A2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.