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O negacionismo climático de deputados e senadores gaúchos continua mesmo com a tragédia

Sumaúma - https://sumauma.com/
05 de Jun de 2024

O negacionismo climático de deputados e senadores gaúchos continua mesmo com a tragédia
Parlamentares do Rio Grande do Sul, estado devastado pelas enchentes, defendem o enfraquecimento das leis ambientais e podem agravar a crise do clima

Silvia Lisboa

05/06/2024

Em 8 de maio, enquanto o Rio Grande do Sul já contabilizava 107 mortes pelas enchentes, 425 cidades inundadas e mais de 160 mil pessoas desalojadas (os números cresceriam ainda mais depois), 15 deputados federais gaúchos votavam a favor de afrouxar as regras para criar plantios maciços de Eucalipto e Pinus no país, árvores que podem causar desequilíbrio hídrico no solo. A votação em plenário do PL 1366, que dispensa o licenciamento ambiental da silvicultura, método artificial de reflorestamento que costuma utilizar essas duas espécies, se deu em caráter de urgência. O relator foi o ruralista gaúcho Covatti Filho (PP), natural de Frederico Westphalen, cidade que entrou em calamidade pública pelo que se transformou em um dos maiores eventos climáticos extremos do país.

A pressa em aprovar sem debate a liberação da atividade, lucrativa para o setor moveleiro e de celulose mas que pode ter alto impacto na biodiversidade e na oferta de água, surpreendeu a minoria dos parlamentares gaúchos de esquerda presentes no Congresso. "Projetos como esse estarem na pauta da Câmara dos Deputados são um escárnio com as causas que nos levaram até aqui", indignou-se em plenário Fernanda Melchionna (PSOL), referindo-se às enchentes do Sul. "Não é possível que se siga ignorando que o planeta pede socorro", completou ela. Dados do MapBiomas mostram que o Rio Grande do Sul perdeu 22% da vegetação nativa do Pampa e da Mata Atlântica, os dois biomas que compõem a paisagem do estado, desde 1985. Quase um terço dessa perda se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, onde ocorreram as enchentes - a mudança no uso da terra a deixa menos permeável ao excesso de chuvas, o que facilita as inundações. Somente a área dedicada à silvicultura cresceu 1.399% no período e ocupa hoje 1,2 milhão de hectares.

No dia seguinte, 9 de maio, quando a previsão era de mais chuva para o estado já assolado pelas enchentes, a maioria dos parlamentares gaúchos votou mais uma vez contra o clima, nas duas Casas do Congresso. Dois senadores do Rio Grande do Sul, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) e Ireneu Orth (PP, substituto de Luis Carlos Heinze, do mesmo partido, que se licenciou), e 19 dos 31 deputados federais do estado ajudaram a derrubar oito vetos do presidente Lula ao PL 1459, o chamado "Pacote do Veneno", que tira o poder da Anvisa e do Ibama no controle dos agrotóxicos. Em nota, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida classificou a decisão como um "verdadeiro absurdo". O uso intensivo de agrotóxicos acelera a erosão e compactação do solo, o que favorece inundações quando ocorre aumento dos níveis dos rios. "Os agrotóxicos são parte fundamental de um modelo de agricultura industrial extremamente danoso ao clima. O uso de herbicidas, em especial, deixa o solo exposto, reduzindo a captura de gases de efeito estufa e prejudicando a infiltração de água no solo", detalha Alan Tygel, da Campanha.

O fortalecimento das pautas antiambientais no Congresso representa um novo passo na destruição das proteções, algo que já vinha ganhando corpo nos dias do ex-presidente extremista de direita Jair Bolsonaro. "A 'boiada' do Salles [Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente na gestão de Bolsonaro] não morreu. Ela atravessou a rua, foi pastoreada do Palácio do Planalto para o Congresso", diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC). "É muito mais fácil você mexer no infralegal, como fez o Salles, mas o prejuízo do legal é muito mais duradouro, é muito mais sério." Para o advogado Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental, que integra o Observatório, este é o pior Congresso da história para a agenda ambiental.

O Rio Grande do Sul se tornou o novo epicentro do colapso climático no Brasil, mas a maioria da bancada gaúcha no Congresso vota a favor de propostas que enfraquecem a legislação ambiental. O negacionismo climático dos deputados federais e senadores gaúchos não é novo, mas segue firme na atual legislatura mesmo depois de o estado sofrer três anos de estiagem e um de enchentes catastróficas.

Para o Senado, o estado elegeu em 2022 o ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos), que também comandou o Conselho Nacional da Amazônia Legal durante a gestão Bolsonaro. Sob sua liderança, o desmatamento na maior floresta tropical do mundo, que ajuda a regular o clima do planeta, voltou a crescer significativamente depois de anos em queda. Entre 2019 e 2022, a área derrubada teve um aumento de 150% na comparação com os quatro anos anteriores, segundo o Imazon. Foram derrubados 35,1 mil quilômetros quadrados de mata, área maior que Alagoas e o Distrito Federal juntos. Mourão se juntou a Luis Carlos Heinze (PP), um conhecido negacionista climático bastante atuante na bancada ruralista do Congresso, e ao veterano Paulo Paim (PT), senador desde 2003.

Dos 31 eleitos para a Câmara Federal no pleito de 2022, pelo menos 21 apoiam projetos que fazem parte do chamado "Pacote da Destruição". Apurada pelo Observatório do Clima, a lista traz 25 projetos de lei e três emendas à Constituição (PECs) em tramitação no Congresso que podem agravar a crise climática. O levantamento revela que quatro desses projetos têm como autores ou relatores parlamentares do Rio Grande do Sul - o senador Heinze, os deputados federais Alceu Moreira (MDB) e Lucas Redecker (PSBD) e os ex-parlamentares Jerônimo Goergen (PP) e Mauro Pereira (MDB). As propostas preveem desde tirar recursos do Ibama, o guardião da legislação ambiental, até autorizar a supressão da vegetação nativa dos biomas não florestais, como o Pampa e a Mata Atlântica.

A catástrofe climática no Sul levou a Frente Parlamentar Ambientalista (FPA), liderada pelo deputado federal Nilto Tatto (PT), a pedir que esses projetos sejam arquivados e outros, como a PEC do Clima, colocados em pauta. "A gravidade do quadro exige que o controle técnico-científico das matérias legislativas sobre Clima obedeça a um rito do processo legislativo semelhante ao controle de constitucionalidade [que necessita de um número maior de parlamentares para ser aprovado] ou de obediência às regras orçamentárias, que rejeitam previamente os projetos que as transgridam, independente dos interesses envolvidos ou do mérito propriamente dito", diz a nota técnica.

Mas, até agora, as enchentes só constrangeram o senador petista Paulo Paim, que retirou de pauta o PL 4653, que prorrogava até 2040 a compra de energia termelétrica movida a carvão, uma das fontes de energia mais poluentes. Paim disse ter informado Mourão e Heinze, os outros autores do projeto, sobre a decisão em caráter definitivo. "O momento é de profunda tristeza e reflexão sobre qualquer projeto que trate da questão climática. Temos que entender a gravidade da situação que atinge o mundo, o Brasil e especificamente a tragédia climática no estado do Rio Grande do Sul. A Natureza está nos mostrando o caminho", afirmou a SUMAÚMA.

Um Congresso panfletário

Os quatro projetos cuja autoria ou relatoria são de gaúchos estão entre os mais nocivos, segundo o Observatório do Clima e a Frente Parlamentar Ambientalista. Um deles, o PL 364/2019, gerou uma manifestação de cientistas brasileiros na revista Science, assombrados com a aprovação na Câmara da proposta que deixa toda a vegetação não florestal do Brasil em risco. O Observatório estima que, se o projeto for aprovado, 48 milhões de hectares de campos nativos, um ecossistema de importante biodiversidade, poderão ser convertidos em plantações agrícolas, monoculturas de Eucalipto e Pinus ou mineração. Somente no Pampa, bioma exclusivo do Rio Grande do Sul, a destruição avançaria sobre 6,3 milhões de hectares, uma perda estimada em 32%.

De autoria de Alceu Moreira (MDB), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária durante o governo Bolsonaro, o projeto contou com apoio de outros três gaúchos para avançar na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC): o também ruralista Covatti Filho (PP), o economista Maurício Marcon (Podemos) e o relator Lucas Redecker (PSDB). Em um vídeo durante a votação, reproduzido em seu TIkTok pessoal, Moreira brada contra o absurdo de "plantadores de batata" serem multados por produzir nos campos de altitude da Mata Atlântica, no interior do Rio Grande do Sul, o que seu projeto ajudaria a resolver.

O objetivo do Projeto de Lei de Moreira inicialmente era abrir os campos de altitude da Mata Atlântica para atividades agrícolas. Mas ele sofreu uma mudança na redação, aprovada pelo relator Lucas Redecker, no final de 2022, que o piorou ainda mais. Pela proposta, "campos gerais" (vegetação que ocupa o centro-leste do Paraná e faz parte dos biomas Cerrado e Mata Atlântica) e "campos nativos" (como são chamadas as áreas de pecuária no Pampa em que se coloca o gado para pastar, mas não se retira a vegetação nativa) devem passar a ser tratados da mesma forma: como áreas rurais consolidadas em todo o território nacional.

"Com as mudanças de redação, ele ampliou o escopo para todos os biomas não florestais, como o Pantanal, o Cerrado, a Caatinga e o Pampa e até os campos da Amazônia, todos serão afetados de forma dramática. É o projeto com mais conexão com possível agravamento dos desastres climáticos no Sul", adverte Guetta. Os cientistas que assinam a carta na Science alertam sobre o erro de não se valorizar a biodiversidade dos campos nativos.

A SUMAÚMA, Moreira respondeu que seu projeto "regulamenta a produção rural na região dos campos de altitude [nativos] em áreas que já estão consolidadas há mais de 300 anos", sem citar a mudança na redação. "Se você visitar essas áreas, perceberá que se trata de propriedades com pastagem plantada, cultivada por produtores rurais durante gerações e que hoje estão sujeitos a multas ambientais milionárias porque alguém disse que aquele campo ali é uma floresta", disse, sugerindo que os campos nativos não podem ter a mesma proteção na lei. "O projeto quer corrigir essa injustiça e impedir que um agricultor familiar e de origem simples seja autuado." Segundo Moreira, o "agro brasileiro segue a legislação ambiental mais rigorosa do mundo e tem sido o maior aliado do país na promoção da agenda 'agro ambiental'". Estudos, no entanto, mostram que a atividade é um dos principais motores do desmatamento. Marcio Astrini critica o uso de casos isolados para autorizar o afrouxamento da lei. "Não existe uma relação clara entre esse agricultor que está sofrendo e o projeto. Não fica demonstrado na proposta quem sofreu as multas e os benefícios na produção agrícola e na renda desse produtor", diz.

O relator Lucas Redecker (PSDB) também afirmou manter a mesma posição e repetiu o argumento de Moreira. "O projeto aborda apenas campos antropizados [já transformados pela ação humana] e não afeta qualquer área de mata. O projeto é aplicável somente em campos previamente utilizados para atividades agrossilvipastoris", disse a SUMAÚMA. Redecker é natural de Novo Hamburgo, cidade banhada pelo Rio dos Sinos, que extravasou deixando 6 mil pessoas desalojadas nas enchentes de maio.

A redação da proposta feita pelo parlamentar, porém, deixa margem para que até mesmo áreas que ainda mantêm a vegetação nativa sejam qualificadas como áreas rurais consolidadas, permitindo sua conversão em lavouras e legalizando a destruição já feita nos biomas. Nas mãos de Redecker, foram suprimidas as proteções adicionais à Mata Atlântica que constavam em uma versão anterior. Ele usou também a mesma justificativa da ex-senadora gaúcha Ana Amélia Lemos (antes PP, atual PSD), a primeira a propor o afrouxamento da proteção dos campos da Mata Atlântica. Procurada, ela não respondeu aos questionamentos de SUMAÚMA. Ana Amélia nasceu em Lagoa Vermelha, município no norte gaúcho, também afetado pelas enchentes.

Perguntado sobre se iria rever seu posicionamento de defesa do PL 364 após os efeitos das mudanças climáticas nas enchentes no Sul, Redecker não respondeu diretamente, mas manteve a defesa ao texto. Sobre a crise do clima, disse reconhecer "a sua gravidade e a importância dos tratados internacionais para combatê-la". "É preocupante que alguns países poluidores não cumpram esses tratados. O Brasil tem 80% de sua energia limpa, enquanto grandes países, como Estados Unidos, China e algumas nações da Europa, precisam mudar sua matriz energética para poder ter menor incidência de CO2 [gás carbônico] presente na atmosfera. Ainda assim, é crucial buscar inovações para reduzir o impacto das mudanças climáticas", acrescentou.

O deputado não detalhou quais seriam essas inovações. Questionado, também não se pronunciou sobre o fato de o Brasil não ter cumprido metas internacionais do clima durante o governo Bolsonaro, do qual foi apoiador. As emissões de gases do efeito estufa brasileiras registraram o maior aumento em quase duas décadas em 2021, conforme os dados apurados pelo Observatório do Clima - o número caiu 8% na medição de 2022. O desmatamento na Amazônia, que voltou a subir na gestão anterior, foi o que mais contribuiu para o aumento das emissões. Ainda em 2021, a atividade agropecuária, defendida pelos parlamentares que atacam o clima, respondeu por 74% de toda a poluição climática brasileira. As árvores da maior floresta tropical do mundo têm o importante papel de absorver parte desse gás carbônico, o principal vilão do aquecimento global, e regular as chuvas no país a partir de sua transpiração. Essas massas de vapor d'água, chamadas de rios voadores, vêm para o sul do país trazidas pelos ventos. Uma desregulação nesse sistema causada pelo avanço da destruição do bioma amazônico favorece a ocorrência de eventos extremos, como secas ou enchentes. A umidade vinda da Amazônia contribuiu com as chuvas torrenciais de maio no Sul porque elas ficaram estacionadas na região devido a um bloqueio de ondas de calor sobre a região Sudeste - com a catástrofe climática, as ondas de calor estão cada vez mais intensas.

Moreira, um anti-indigenista ferrenho, e Redecker também são favoráveis ao marco temporal, tese jurídica que afirma que os Indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando até 1988, ano de promulgação da Constituição, e ignora todas as violações de direitos que fizeram com que diversos povos tivessem que deixar suas terras. A tese ameaça as áreas já demarcadas, que, reconhecidamente, são as mais preservadas, e impossibilita o reconhecimento de novas áreas. Os dois parlamentares também defendem a liberação de garimpo e do agronegócio nos Territórios Indígenas. "A maioria das demarcações reivindicadas nunca foi de aspiração Indígena, mas de grupos com interesses financeiros em explorar ilegalmente as matérias-primas locais, lucrando milhões de reais à custa dos índios [o termo é considerado pejorativo pelos Indígenas]", disse Alceu Moreira a SUMAÚMA, reproduzindo uma acusação grave feita pela extrema direita sem apresentar nenhuma prova sobre que grupos seriam esses. No "Pacote da Destruição", há duas propostas de emenda constitucional (PEC) para incluir a tese do marco temporal e delegar ao Congresso a competência para demarcar Terras Indígenas, o que seria desastroso, já que a maior parte dos parlamentares compartilha da mesma visão de Moreira.

O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, acredita que os deputados gaúchos de direita, como a maioria dos parlamentares eleitos, não estão interessados apenas no conteúdo dos Projetos de Lei antiambientais. "Este Congresso usa a agenda ambiental para atacar o Supremo e o governo. Foi assim no marco temporal, que eu chamo de um 'panfleto de lei', e está sendo assim nos agrotóxicos. Eles têm interesse para além do conteúdo dos projetos. Querem usá-los para estressar as relações com os poderes", analisa.

O climatologista Carlos Nobre, uma das maiores autoridades brasileiras em mudanças climáticas, também se preocupa com o populismo do Congresso Nacional. "Eles prometem soluções populistas imediatas e ignoram seus riscos. Têm uma atitude anticiência porque a ciência mostra esses riscos", diz Nobre. "A população brasileira precisa pressionar esses políticos para desistirem de projetos que ampliam o desmatamento na Amazônia e nos demais biomas. Todos eles agravam os eventos extremos. Se conseguirem avançar, será um suicídio climático."

Outro projeto nocivo é o PL 1282/2019, de autoria do senador, agora licenciado, Luis Carlos Heinze, um notório negacionista. Natural de Candelária, município do Vale do Rio Pardo, que submergiu nas enchentes de maio, ele propõe usar as Áreas de Preservação Permanentes para obras de irrigação de lavouras ou barramento de cursos de rio - um projeto semelhante foi sancionado no Rio Grande do Sul antes das enchentes e motivou um pedido de explicações do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin. Para o Observatório do Clima, além de ampliar o desmatamento em áreas que devem ser conservadas, o projeto pode agravar problemas hídricos justamente por autorizar a remoção da vegetação nativa, que ajuda a manter os mananciais, para facilitar a extração de água para as lavouras. Em mais uma dobradinha gaúcha, o PL da irrigação tem como relator outro ruralista, Afonso Hamm (PP). Para o senador, o projeto resolveria o problema da seca no estado, que teria ocasionado, segundo ele, "perdas de mais de 100 bilhões de reais" ao agronegócio gaúcho entre 2020 e 2023. Questionado sobre se reveria sua defesa do projeto após as enchentes, Heinze não respondeu.

Faça enchente ou faça seca

A defesa do agronegócio é a principal justificativa dos parlamentares gaúchos na aprovação de projetos de lei antiambientais. Mas o setor é disparado o que mais sofre com os eventos climáticos extremos. Entre 2020 e 2023, sob efeito de uma super La Niña, intensificada pelo aquecimento global, o Rio Grande do Sul entrou em calamidade pública devido à estiagem que causou perdas bilionárias e levou, em 2022, a uma queda de 5% no Produto Interno Bruto estadual. A partir de junho do ano passado até agora, já sob efeito do El Niño, cuja intensidade também foi amplificada pelo aquecimento global, chuvas torrenciais desabaram sobre o estado. Foram três episódios em menos de um ano. No último, o mais grave, mais de 90% das cidades foram afetadas. Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre, como Canoas, Eldorado do Sul e São Leopoldo, ficaram submersos. Mais da metade dos bairros da capital gaúcha também foram afetados. Foi um dos maiores eventos climáticos extremos ocorridos no país. Até agora, ele já deixou mais de 170 mortos, 44 desaparecidos e mais de meio milhão de pessoas desalojadas.

Até 24 de maio, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) apurou perdas de mais de 2,7 bilhões de reais com as enchentes para o agronegócio. "As Áreas de Preservação Permanentes são fundamentais para a resiliência em caso de enchentes porque evitam o assoreamento de rios. Por que usar justo essas áreas protegidas para aumentar a irrigação?", questiona Astrini, do Observatório do Clima. A retirada das árvores faz com que a terra deslize com facilidade para os rios, o que aumenta a quantidade de sedimentos em seu leito e diminui a área de vazão, onde circula a água. "Você questiona quanto os projetos irão ajudar o agricultor, quanto haverá de incremento na produção, mas eles não sabem responder. Eles querem acabar com as leis, as regulações, que [para eles] 'só servem para atrapalhar'."

Não à toa, um terceiro projeto de autoria gaúcha é o PL 10273/2018, do ex-deputado Jerônimo Goergen (PP), que impõe limitações à cobrança da Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), uma das principais fontes de financiamento do Ibama. A proposta determina que a taxa só seja cobrada para atividades da União licenciadas pelo órgão ambiental, mas a competência da autarquia se estende aos três entes da federação - tanto que quase metade dos recursos obtidos é direcionada aos estados. Goergen não respondeu a SUMAÚMA sobre se enfraquecer o Ibama não contribui com o agravamento dos eventos climáticos extremos, como as enchentes do Sul.

O exemplo mais notório da aversão a regras da bancada gaúcha é a Lei Geral do Licenciamento Ambiental (2159/2021), considerada "a boiada de todas as boiadas". "O PL representa o descontrole ambiental de praticamente todas as atividades potencialmente impactantes ao meio ambiente e às pessoas", diz Maurício Guetta, do Instituto Socioambiental (ISA). Antigo PL 3729/04, a proposta teve como relator mais notório o ex-deputado Mauro Pereira, do MDB do Rio Grande do Sul. Nas suas mãos, o projeto mudou de redação diversas vezes - segundo Guetta, para pior. Em 2018, ano da despedida de Pereira da Câmara Federal, 47 entidades socioambientais, entre elas o ISA e o Ministério Público Federal, se manifestaram contra a lei, que renasceu durante o período Bolsonaro.

Na versão aprovada pela Câmara, a proposta é disseminar no país o licenciamento ambiental autodeclaratório, uma inovação que já vigora no Rio Grande do Sul desde fevereiro de 2022, no primeiro mandato de Eduardo Leite (PSDB). O empresário ou produtor preenche um cadastro na internet, envia documentos, que passam por uma análise, e recebe uma licença ambiental antecipada se estiver com as credenciais em dia. "É um pacote anticlimático completo", resume Guetta. O senador Heinze fez duas emendas à Lei Geral do Licenciamento: a primeira autoriza a retirada de vegetação nativa para projetos de irrigação; e a segunda dispensa a silvicultura de licenciamento. Esta segunda matéria acabou sendo aprovada no PL 1366 em 8 de maio, quando a maior catástrofe ambiental do seu estado estava em curso. O projeto contou com apoio de 15 parlamentares gaúchos, filiados aos partidos Cidadania, PL, PP, PDT, PSDB, MDB, Republicanos, Novo e Podemos.

Se no Congresso o "Pacote da Destruição" continua em tramitação, no Rio Grande do Sul parte dele já vigora. Durante seu primeiro mandato, o tucano Eduardo Leite modificou mais de 400 itens do Código Ambiental gaúcho e aprovou o autolicenciamento para projetos de médio a alto impacto ambiental, incluindo a silvicultura, o que nem Bolsonaro e seus aliados conseguiram no Congresso. A Licença Ambiental por Compromisso (LAC) é alvo de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Ministério Público Federal - até ser apreciada pelo STF, segue válida.

Questionado se foi considerado o impacto climático dessas mudanças na legislação ambiental, o governo estadual disse que "as alterações legais promovidas não enfraqueceram a proteção ambiental ou ampliaram os impactos climáticos, pelo contrário". Por meio de nota enviada pela assessoria, afirmou também ter incluído no código ações de mitigação. A resposta do governo contraria o consenso científico: o projeto do autolicenciamento que tramita no Congresso é considerado o mais nocivo ao clima. O governo, no entanto, segue negando a informação dos especialistas: "Não há relação entre o Licenciamento Ambiental por Compromisso (LAC) com a degradação ambiental ou com os desastres climáticos que estão ocorrendo em escala mundial". A nota afirma ainda que "O Licenciamento Ambiental por Compromisso não é autolicenciamento de nenhuma forma. O órgão ambiental segue emitindo as licenças ambientais e atua na fiscalização posterior à emissão da licença".

No ano passado, já no seu segundo mandato, Eduardo Leite obteve outra vitória ao mudar o zoneamento da silvicultura, que quadruplicou a área no estado onde se pode plantar monoculturas de Pinus e Eucalipto. Para aprová-lo, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (a inclusão do termo "infraestrutura" foi outra mudança feita pelo tucano) colocou em consulta pública um estudo financiado pela multinacional chilena CMPC, um gigante de celulose, atividade que depende, justamente, de Eucaliptos. A iniciativa chocou ambientalistas e motivou uma manifestação do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Em vão. Dominado pela indústria, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou as novas regras.

Sete meses depois, a empresa chilena anunciou investimentos de 24 bilhões de reais no estado, com a construção de uma nova fábrica. Em 29 de abril, Leite comemorou a notícia da nova obra, que pode agravar a crise climática com a substituição dos campos nativos por monoculturas de Eucalipto. No final do dia, chuvas torrenciais começaram a deixar seu rastro de destruição.

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