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Na Bolívia, índios contra índios

O Globo, Opinião, p. 6
Autor: MESA, Carlos
28 de Set de 2011

Na Bolívia, índios contra índios

Carlos Mesa

Mais de 1.500 indígenas marcham há vários dias buscando as alturas. Reuniram-se decididos a defender o território ancestral que habitam, que ademais é um parque nacional dentro do gigantesco território amazônico sul-americano.
Por que marcham? A razão é simples: o governo decidiu construir uma rodovia que partirá em dois o parque nacional e a terra indígena.
Parece ser mais uma das inumeráveis tensões que se vivem no mundo entre as prioridades desenvolvimentistas de alguns Estados e o direito dos povos indígenas sobre suas terras. Mas este episódio tem características particulares.
A amarga ironia para os que marcham, que reuniram quase 30 representantes das nações e povos indígenas da Bolívia, é que seu presidente se chama Evo Morales Ayma, indígena aymara.
Morales, graças à nova Constituição aprovada em sua gestão, mudou o nome do país de República da Bolívia para Estado Plurinacional da Bolívia, formado por 36 nações e povos indígenas. Isto implica o reconhecimento de 36 idiomas, além do castelhano.
Na última Cúpula de Cancún sobre mudanças climáticas de 2010, a Bolívia foi o único país do mundo que se opôs ao documento final, argumentando que era fraco demais e não demonstrava uma verdadeira decisão de defender a mãe terra (pachamama, em aymara). Nesse contexto, o governo boliviano tornou questão de fé a difusão do "viver bem" (suma k'amaña) que, segundo destaca, se baseia na relação harmônica entre o ser humano e a natureza.
É bom recordar que o governo de Morales, apesar de ter sofrido este ano uma pronunciada queda de popularidade, tem pela frente uma fraca oposição política, depois de ter dobrado as poderosas elites econômicas lideradas por empresários agroindustriais de Santa Cruz (2008). Mas certamente nunca esteve na equação do presidente a abertura de um flanco opositor em seu quintal político. Na condição de sindicalista, ele conduziu marchas a La Paz em defesa da coca, é hoje interpelado pelos povos indígenas da planície, que exigem o cumprimento da Constituição e que respeite a obrigação de consultar os afetados pelo projeto da rodovia.
Os ambientalistas, por sua vez, criticama decisão arbitrária e desafiadora do governo, que insiste que a rodovia se fará "sim ou sim", contradizendo a essência de seu discurso indigenista e radical em defesa do meio ambiente. Para alguns economistas, o projeto revela um desenvolvimentista anacrônico.
O Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure (nomes dos rios que o delimitam), conhecido como Tipnis, tem quase 1,1 milhão de hectares e é parte de um território no qual, ao pé da grande cordilheira andina, nasce a Amazônia boliviana. Está situado quase no centro do país, nos departamentos de Cochabamba e Beni. Nele vivem os povos Yuracaré, Chimán e Mojeño, comunidades que somam em torno de 90 mil pessoas. Morales quer construir ali uma rodovia de 306 quilômetros a um custo de US$ 415 milhões, cujo objetivo é, dividindo em duas partes o parque e o território indígena, unir as populações de Villa Tunari, em Cochabamba, e San Ignacio de Mojos, em Beni.
A Constituição boliviana é muito clara numa situação como essa. O artigo 2 outorga às nações e povos indígenas o direito à autonomia, ao autogoverno e à consolidação de suas entidades territoriais. O artigo 30 especifica seu direito a serem consultados de maneira obrigatória quando o Estado toma decisões que afetam seus territórios. O artigo 347 reza: "O Estado e a sociedade promoverão a mitigação dos efeitos nocivos ao meio ambiente e dos passivos ambientais. Declara-se a responsabilidade por danos ambientais históricos e a imprescritibilidade dos delitos ambientais."
Por que incongruências tão gigantescas diante dessas regras? A explicação é menos difícil do que parece. Um dos eixos da produção de coca na Bolívia está na região de Chapare adjacente ao Tipnis, que começou a ser invadido há alguns anos por cultivos da folha ainda em pequena escala e que, com a nova estrada, poderão se expandir. Morales forjou ali sua liderança política como secretário executivo - cargo que ainda ocupa - das federações dos produtores de coca. É sua base social e política mais dura. Por outro lado, a pressão na zona por parte de migrantes indígenas andinos aymaras e quéchuas é incessante. O projeto indígena do governo se apoia na força dos originários andinos (91% do total de indígenas da Bolívia) que controlam segmentos do governo.
O raciocínio desses colonizadores do século XXI é muito simples: "Queremos a estrada para habilitar a outorga de terras agrícolas em nosso favor. Por que - indagam os andinos - alguns poucos milhares de irmãos da planície têm terras comunitárias de centenas de milhares de hectares, e a nós negam uns poucos hectares (de propriedade individual) em espaço tão grande?"
Especialistas não só afirmam que a rodovia provocará danos irreversíveis a um dos parques mais emblemáticos, como sabem que se estabeleceria um precedente que pode ser terrível para o futuro dos parques da Bolívia.
Por trás deste incrível cenário de enfrentamento de indígenas contra indígenas no primeiro Estado Plurinacional da América está um jogador poderoso - o Brasil. Seu banco estatal de desenvolvimento (BNDES) e a construtora OAS têm a chave e o cadeado do projeto. Oitenta por cento do financiamento da rodovia vêm do Brasil. Tal é a importância do tema que o ex-presidente Lula esteve em Santa Cruz nos dias que o conflito começou e, em Brasília, já soaram os alarmes. O tema, que adquiriu repercussão internacional, desafia a presidente Dilma Rousseff em duas dimensões. A cada vez mais complexa relação bilateral pela incidência da droga originária da Bolívia com destino ao Brasil e a vocação ambientalista de um governo que sabe muito bem de conflitos dessa natureza em seu próprio território, e que tem ademais a intenção de construir três grandes represas hidrelétricas no Rio Madeira (uma delas em território boliviano). Neste rio desemboca toda a grande bacia amazônica da Bolívia.
Os indígenas que marcham em defesa do Tipnis e exigem que a nova rodovia, em vez de cortar o parque, o contorne, questionam a retórica do governo Morales e o desafiam a responder sobre sua verdadeira concepção de desenvolvimento e a demonstrar se governa defendendo e promovendo os direitos de todos ou é, ao contrário, o líder excludente dos indígenas dos territórios altos que o entronizaram, em 2006, em uma impactante cerimônia em Tiwanaku, símbolo do poder de um império pré-inca que não conhecia a existência do gigantesco Amazonas.
Morales pode derrotar os indígenas e fazer a rodovia onde quer, ou ceder e construí-la sem afetar o Tipnis. Mas a ferida já está aberta e é profunda.

Carlos Mesa foi presidente da Bolívia (2003-2005) e é colunista do "El País" (Espanha).

O Globo, 28/09/2011, Opinião, p. 6

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