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Marco do Licenciamento que tramita no Senado é a pior proposta em 40 anos, dizem especialistas

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30 de Ago de 2023

Marco do Licenciamento que tramita no Senado é a pior proposta em 40 anos, dizem especialistas
Aprovar texto como está seria voltar no tempo em que crianças nasciam sem cérebro em Cubatão por falta de controle da poluição local. Nota Técnica tenta minimizar danos

Cristiane Prizibisczki · 30 de agosto de 2023

Organizações da sociedade civil lançaram nesta terça-feira (29) uma Nota Técnica com propostas para reverter retrocessos trazidos pelo projeto de lei do Licenciamento que hoje tramita no Congresso. Chamado de PL 2.159/2021, o projeto pode ser votado a qualquer momento nas comissões de Agricultura e Meio Ambiente do Senado.

A ideia de um "Marco do Licenciamento" vem sendo discutida há vários anos no Congresso, mas o texto que saiu da Câmara dos Deputados - a casa iniciadora -, foi duramente criticado por trazer profundas mudanças nos processos hoje utilizados para o licenciamento ambiental no Brasil.

"Esta é, sem dúvida alguma, a pior proposta de licenciamento que já surgiu desde 1988, que foi a primeira. Nunca houve nada tão terrível do ponto de vista da extinção do licenciamento e isso é muito grave porque produz tantos impactos em muitos setores", disse Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), organização que assina a nota com o Observatório do Clima.

"É voltar no tempo em que as crianças nasciam sem cérebro em Cubatão porque a poluição não tinha controle. Foi exatamente o licenciamento que estabeleceu esse tipo de controle. Não dá para retroceder 40 anos na história", complementa.

Aprovado na Câmara em 2021, o PL 2.159/202 é de interesse dos lobbies mais poderosos do Congresso, o ruralista e o da indústria. O relançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), neste mês, aumentou a pressão pela aprovação da lei.

Caso não seja aprimorado pelos senadores, no entanto, o projeto de lei tornará a maioria dos empreendimentos isenta de licença e de estudo de impacto ambiental, avaliam as organizações signatárias da Nota Técnica.
1 - Dispensas de licenciamento

O artigo 8o do PL 2.159 traz uma lista de 13 tipos de empreendimentos que estão isentos de licenciamento ambiental. Entre os empreendimentos "dispensados" do processo estão serviços de "melhoramento" de estruturas já existentes e todos os empreendimentos agrossilvopastoris.

Se aprovado como está, o artigo poderia permitir que barragens fossem aumentadas e que a BR-319, que corta a região mais preservada da Amazônia, fosse asfaltada, obras incluídas nesta categoria de "melhoramento".

"Há uma série de isenções, que na verdade são dispensas de licenciamento. É como se estivesse retirando toda possibilidade de se prevenir impactos sobre a população e sobre o meio ambiente e até mesmo de se avaliar esses impactos. Entre as dispensas, para vocês terem uma ideia, estão todos os empreendimentos agrossilvopastoris, de qualquer tamanho, de qualquer grau de impacto e isso é bastante grave", explica Guetta.
2 - Isenção para obras de "baixo impacto"

Atualmente, a lei diz que o licenciamento ambiental é necessário para empreendimentos com potencial de impacto ambiental, mas o processo é menos rigoroso para obras de baixo impacto.

O artigo 4o do PL atualmente em tramitação transfere para cada "ente federado", ou seja, cada estado ou município, a responsabilidade de definir o que são as obras de baixo impacto.

Segundo a Nota Técnica, estados e municípios estão mais sujeitos e pressão dos interesses locais e, se passar, eles podem decretar que aterros sanitários ou barragens de rejeitos estão incluídos na categoria de "baixo impacto".

"Para evitar a barafunda de normas - e dispensas potencialmente trágicas - é preciso que haja uma lista mínima federal com os empreendimentos que estão sujeitos a licenciamento", dizem as organizações.
3 - Boiadas para a pecuária

Além da dispensa do licenciamento para atividades agrossilvopastoris, o projeto de lei dos Deputados abre a possibilidade para a anistia a grileiros. Isso porque seu artigo 9o dispensa de licenciamento atividades de agricultura e pecuária extensiva em propriedades que tenham apenas o Cadastro Ambiental Rural, mesmo que este esteja "pendente de homologação".

"Como o CAR é autodeclaratório, vale o que o fazendeiro disser que é dele, mesmo que não seja", dizem as organizações.
4 - Renovação autodeclaratória

Os parágrafos 4o e 5o do artigo 7o do PL 2.159 permitem ao empreendedor renovar sua licença vencida sem nenhuma consulta aos órgãos ambientais, apenas preenchendo uma declaração na internet. Assim, se a licença de um empreendimento vence antes de as condicionantes da licença serem cumpridas, o empreendedor não precisa dar satisfação a ninguém.

"Imagine, por exemplo, que a renovação da licença de operação de uma barragem de rejeitos possa ser feita pela internet. Em condições melhores que essa tivemos Brumadinho, uma renovação de licença feita no tapetão e sem acompanhamento adequado. Pense agora no que ocorreria sem acompanhamento nenhum."
5 - Limitação de condicionantes

Fruto claro do lobby da indústria no Congresso, o artigo 13 do PL 2.159 limita as condicionantes do licenciamento, de forma a diminuir os custos do empreendedor.

"Imagine que a implementação de uma obra - digamos, uma grande hidrelétrica de R$ 40 bilhões numa cidade do interior do Pará - cause um grande aumento populacional, levando a pressões sobre serviços públicos como saúde, segurança e saneamento. Imagine que o empreendedor sinta que é injusto que ele seja obrigado, pelas condicionantes do licenciamento, a construir escolas, presídios e rede de esgoto na cidade, mesmo que isso represente uma fração do valor da obra. Todo o ônus ficaria com a sociedade e o bônus com o empresário. É isso que propõe o texto do PL", dizem as organizações.
6 - Licença por Adesão e Compromisso

Um dos pontos mais criticados da proposta de lei é a criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC). O artigo 21 do projeto prevê que alguns empreendimentos possam se "autolicenciar", com o empreendedor preenchendo um formulário na internet, desde que jure ter boa conduta e seja passível de fiscalização.

Pode se enquadrar na LAC qualquer empreendimento que não seja de "alto impacto". Mas daí entra a questão citada acima no item 2: quem define o que é de alto impacto ou não?

"Isso não é licenciamento, é a extinção do licenciamento a partir desse projeto de lei. A LAC será aplicada a todo empreendimento que não seja qualificado como sendo de significativo impacto. Em SP, apenas 1% dos empreendimentos é de significativo impacto ambiental. Além disso, 86% dos empreendimentos minerários e suas barragens de rejeitos em Minas Gerais passariam a ser licenciados via LAC, gerando a ampliação dos riscos da proliferação de novos desastres", explica Maurício Guetta.
7 - Licença Corretiva

Atualmente, as normas que regem o licenciamento no Brasil prevêem um mecanismo chamado de Licença de Operação Corretiva (LOC), que é aplicada quando um empreendimento está operando sem licença ambiental, mas o empreendedor deseja se legalizar.

O artigo 22 do projeto de Lei dos Deputados aumenta os benefícios aos malfeitores: além de anulação da multa - já prevista nas normas hoje vigentes -, ele também anistia crimes ambientais passados e permite fazer a correção por Adesão e Compromisso (LAC), o mecanismo citado acima.

"Dessa forma, compensa para o empreendedor simplesmente ignorar o licenciamento na hora de planejar a obra e entrar nesse grande 'Refis' ambiental depois", dizem as organizações.
8 - Áreas protegidas desprotegidas

Um dos trechos mais graves do PL 2.159, segundo as organizações, são os artigos 39 a 42, que tratam das chamadas "autoridades envolvidas", ou seja, do papel de Funai, Fundação Palmares, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e ICMBio no licenciamento.

O texto afirma que esses órgãos só poderão se manifestar sobre o licenciamento - e mesmo assim sem poder de veto - quando unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas e sítios arqueológicos estiverem ou no canteiro de obras ou na sua zona de influência direta, ou seja, no seu entorno imediato.

O texto também só considera para fins de licenciamento as Terras Indígenas e Quilombolas que já estiverem homologadas e tituladas. Atualmente, 32% das Terras Indígenas e 92% dos territórios quilombolas ainda não estão com seus títulos definitivos.

Para as unidades de conservação, a coisa é ainda pior, além de limitar a análise de impacto ao canteiro de obras, o artigo 58 do PL retira todo o poder do ICMBio e dos órgãos estaduais de barrar as obras.
9 - Prazos inexequíveis

O artigo 43 do PL estipula prazos máximos para o licenciamento. Nos casos de maior complexidade, quando for exigido estudo de impacto ambiental - caso, por exemplo, de grandes hidrelétricas na Amazônia -, a licença prévia terá de ser expedida em dez meses.

"Os prazos curtos tendem a produzir mais tumulto no licenciamento e aumentar as judicializações". diz a Nota Técnica.
10 - Bancos isentos de responsabilidade

Em seu artigo 54, o PL 2.159 introduz um elemento inédito no arcabouço do licenciamento ambiental, que é impedir que os bancos sejam punidos por crimes ambientais cometidos por empreendimentos que eles financiam.

"Isso conflita com a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, de 1981, que prevê a corresponsabilidade das instituições financeiras e é a base, por exemplo, do decreto que proibiu crédito bancário para desmatadores com áreas embargadas na Amazônia".
A quatro paredes

Lula foi eleito com um discurso em prol do meio ambiente e este é um dos temas mais fortes de sua agenda de governo. Suas propostas no recém lançado PAC, no entanto, têm exigido muito jogo de cintura para adequar a necessidade de realização de grandes obras com a política ambiental.

Atualmente, é sabido que o Executivo vem negociando um texto e a ideia é viabilizar a aprovação de uma lei do licenciamento, não exatamente nos moldes que o Congresso propõe.

"Sabemos que estão ocorrendo reuniões internas do Executivo e com os dois relatores [nas Comissões do Senado]. Certamente um texto com o conteúdo complexo da lei geral nunca há consenso. Os dissensos são até esperados, mas a ideia da nota técnica é mostrar: sim, temos caminhos que podem, no mínimo, minorar os problemas da lei [proposta pelos Deputados] e enfrentar os pontos mais polêmicos", explica Suely Araújo, especialista em Políticas Públicas do Observatório do Clima.
Hidrelétrica de Jirau. Foto: PAC

Segundo ela, as próprias emendas apresentadas pelos senadores - cerca de 80 - podem ajudar a melhorar o texto, mesmo porque muitas delas foram apresentadas após um grande esforço de elaboração dos parlamentares, em conjunto com as organizações que assinam a nota técnica.

"O texto da Câmara é tão assustador que foram geradas dezenas e dezenas de emendas. Às vezes reunindo várias emendas num texto e dando soluções técnicas. Se somarmos todas as sugestões da nota, você constrói um substitutivo e parte do Executivo está querendo um substitutivo no lugar de simplesmente aprovar esse retrocesso", explica Suely.
Vetos do Executivo

Segundo Maurício Guetta e Suely Araujo, devido à complexidade da matéria e das negociações políticas, caso passe pelo Senado sem mudanças, os vetos da presidência deverão ser muito pontuais. De acordo com eles, é improvável que o projeto de lei seja vetado na íntegra pelo presidente Lula.

"Por isso a importância de se conseguir mudanças ainda no Congresso", diz Araújo.

Em último caso, o projeto de lei será judicializado, explicam os especialistas, já que vários de seus pontos são inconstitucionais. A estratégia, no entanto, é trabalhar para que não se chegue a este ponto, de forma a evitar dispêndio de tempo e energia.

O que se sabe é que, se as emendas dos senadores forem aprovadas, o projeto volta para a Câmara. Ainda não há data para que o PL 2.159 seja apreciado no plenário do Senado.

Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College - Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow... →

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