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Mais riscos para o país

Valor - https://valor.globo.com/
29 de Jul de 2021

Mais riscos para o país
Controversos, projetos de lei na Câmara e no Senado buscam regularização fundiária em todo o país, mas podem aumentar a grilagem e o desmatamento

Por Andrea Vialli,
Para o Valor 29/07/2021

Sempre polêmica, a regularização fundiária é tema de dois projetos de lei que hoje tramitam na Câmara e no Senado, ambos com o objetivo de substituir a Medida Provisória 910/19, proposta pelo Executivo para regularizar áreas da União ocupadas em todas as regiões do país, que perdeu a validade em maio de 2020. No Senado, tramita o Projeto de Lei (PL) 510/2021, que está em fase de ajustes no texto final, e na Câmara foi aprovado neste mês requerimento de urgência para a votação do PL 2.633/2020, que também propõe mudar os critérios para a regularização de terras públicas não destinadas (sem função definida). Ambos alteram a Lei 11.952/2009, que trata da regularização fundiária em áreas da União localizadas na Amazônia Legal, para que as regras passem a valer para todo o Brasil.
O governo federal e a bancada ruralista no Congresso têm pressa em aprovar a matéria, que representa uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de entregar 600 mil títulos de terras até 2022. Os projetos de lei suavizam pontos críticos da MP 910/2019, que havia ampliado o prazo de ocupação das terras (de 2011 para 2018) e o tamanho das propriedades (de quatro para 15 módulos fiscais), e trazem como principais mudanças a possibilidade de regularizar entre 55 milhões e 65 milhões de hectares de posses em terras públicas em todos os biomas, incluindo áreas de forte expansão da fronteira agrícola no Cerrado, como a região do Matopiba, que inclui os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Críticos às propostas, no entanto, afirmam que novas mudanças na lei podem incentivar a grilagem de terras públicas e o desmatamento por ampliar o tamanho dos imóveis aptos para regularização, além de simplificar os procedimentos de vistoria, o que beneficiaria grandes proprietários de terras, em detrimento de pequenos agricultores e assentamentos.
"Na essência, os dois PLs flexibilizam demasiadamente o processo de regularização fundiária sem atender a outros objetivos importantes para o país. Também abrem uma porteira se trouxerem o marco temporal de ocupação dessas terras para um período mais recente", diz Antonio Oviedo, PhD em políticas públicas e gestão ambiental pela Universidade Nacional de Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA). Só na Amazônia, são 40 milhões de hectares sem destinação, que poderiam servir a objetivos de conservação ambiental e demarcação de terras indígenas, como também à adequação de obras de infraestrutura, proteção de fronteiras, entre outros.
Outra preocupação é com o aumento do desmatamento, porque a indústria da grilagem de terras envolve o desmatamento, queima e transformação em pastagem da terra pública não destinada, uma forma de legitimar a ocupação como terra produtiva. Segundo nota técnica do ISA assinada por Oviedo e pelos pesquisadores Cicero Augusto, engenheiro cartógrafo pela Unesp, e William Augusto Lima, geógrafo pela USP, somente de 2008 a 2014 foram detectados 127,4 mil hectares de desmatamento no interior de florestas públicas não destinadas, segundo o sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Relator do PL 510/2021, o senador Carlos Fávaro (PSD-MT) reconhece os pontos controversos e afirma que o novo texto que está em preparação irá absorver as demandas da sociedade - segundo ele, o projeto tem sido debatido com a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, secretarias de Meio Ambiente dos Estados, Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), além de organizações ligadas ao agronegócio, tendo recebido mais de cem emendas. Um dos pontos mais sensíveis é o referente ao marco temporal. O texto original, de autoria do senador Irajá Silvestre Filho (PSD-TO), estipulou a comprovação da ocupação da terra de 2008 para 25 de maio de 2012, quando foi editado o Código Florestal, mas a mensagem não foi bem recebida pelo mercado, então o texto final, ainda em construção, deverá ser modificado nesse item. "O que eu já tenho como posição formada para o relatório é que vamos manter o marco temporal em 2008. Não haverá flexibilização." Outra novidade trazida pelo PL 510/2021 é a ampliação da área passível de regularização para até 2,5 mil hectares e a dispensa da vistoria prévia da área a ser regularizada, podendo ser adotado o procedimento simplificado com base na análise de documentos, em declaração do próprio ocupante e da verificação das informações por sensoriamento remoto. Desde 2009, a legislação permite que o uso de sensoriamento remoto para apoiar e agilizar a checagem de informações apresentadas pelo requerente ocorra na regularização fundiária de pequenos produtores (parcelas de até quatro módulos fiscais).
O relator refuta as críticas de que essa mudança tende a beneficiar grandes propriedades - o texto final do relator deverá incluir a especificação de pequenas e médias propriedades contida na Lei 8.629/1993, que classifica imóveis rurais, para que esses proprietários recebam benefícios para a regularização, como a dispensa de taxas cartoriais e emolumentos. "Se a Lei 11.952/2009 fosse eficiente, não teríamos 300 mil famílias no Brasil aguardando título de propriedade. Passados 12 anos, as ferramentas tecnológicas mudaram e isso precisa ser incorporado." A expectativa é que o PL 510/2021 seja colocado para votação em agosto, após o recesso parlamentar. Para a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, movimento que reúne 300 representantes do agronegócio, sociedade civil, setor financeiro e academia, o Brasil precisa avançar na regularização fundiária, mas os dois projetos de lei que tramitam sobre o tema acentuam desigualdades no campo, podem abrir caminho para a grilagem de terras públicas e trazer prejuízos à imagem do Brasil no exterior. Segundo Cristina Leme, membro da força-tarefa regularização fundiária da Coalizão e analista da Climate Policy Initiative (CPI), ambos os textos derivam da MP 910/2019, que já gerou muitas controvérsias na sua edição. "A Coalizão se posiciona a favor de regularização fundiária, mas entendemos que as propostas para alterar a legislação atual não são necessárias. A cada mudança na lei, ocorre um incentivo à ocupação de terras públicas e a própria MP 910/2019 propunha alterações que não traziam benefícios aos pequenos produtores."
Segundo ela, as atuais propostas de mudança na lei não trazem alterações significativas para a regularização de imóveis rurais de até quatro módulos fiscais e não beneficiam grupos que precisam da titulação de terras, como comunidades agroextrativistas, terras indígenas, assentamentos da reforma agrária e quilombolas. Desde a vigência da lei atual, o governo federal emitiu quase 32 mil títulos de terra entre 2009 e 2018, mas os números vêm caindo a partir de 2019: nos últimos dois anos, foram apenas 554 títulos, segundo o Incra. Os prejuízos que recorrentes mudanças nas regras sobre regularização fundiária podem trazer para a reputação do agronegócio brasileiro no exterior também preocupam a Coalizão, que tem, entre seus membros, grandes empresas exportadoras. Com a ascensão do movimento ESG (critérios sociais, ambientais e de governança), empresas brasileiras estão sendo pressionadas por grandes fundos de investimentos e redes de supermercados europeias em relação ao desmatamento nas cadeias produtivas de commodities. "Tradicionalmente na Amazônia, as áreas griladas e ocupadas se tornam terras para agricultura e pecuária. Se o país aprova políticas que incentivam a grilagem e o desmatamento, fica muito difícil ter compliance ambiental e isso contamina a imagem do agronegócio." O movimento ESG tem levado empresas de diferentes setores a buscar o serviço de checagem da regularização das terras que pretendem investir e tem beneficiado startups que oferecem o serviço. É o caso da Busca Terra, startup fundada em 2019 em Campinas (SP), que oferece informações sobre imóveis rurais a partir de dados públicos das bases do Incra, Serviço Florestal, Receita Federal e Cadastro Ambiental Rural (CAR), entre outras, e imagens de satélites em alta resolução.
A plataforma desenvolvida pela startup tem acesso a 6,5 milhões de imóveis rurais, avaliados a partir de 200 variáveis diferentes, o que permite a avaliação da situação fundiária e ambiental das propriedades. A tecnologia vem sendo buscada por empresas em fase de aquisição de terras de diferentes segmentos, como do setor de energia renovável, agronegócio e instituições financeiras. Também abriu uma frente para dar consultoria a pequenos e médios proprietários em processos de regularização fundiária.

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