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Limites à demarcação de terras indígenas

Gazeta Mercantil (São Paulo - SP)
14 de Ago de 2001

O Decreto no 22/91, editado pelo ex-Presidente Fernando Collor, a pretexto de 'regulamentar' o procedimento jurídico-administrativo de demarcação de terras indígenas, foi talvez um dos instrumentos jurídicos mais autoritários de que se tem notícia, expedido na vigência do regime de franquias democráticas consagradas pela Constituição de 1988. Referido Decreto concebeu um sistema unilateral para identificação e demarcação de terras indígenas, sem permitir aos seus proprietários, possuidores ou detentores originários, o exercício do direito de defesa e o do contraditório, assegurados como garantias pétreas pelo Texto Magno, no inciso LV de seu artigo 5o.Na prática, pelo cogitado estatuto regulamentar erigiu-se a Funai em verdadeiro tribunal de exceção, o que também é vedado pela Constituição vigente (artigo 5o, XXXVII). Ora, é indiscutível que no sistema normativo Pátrio, o fundamento de validade das leis infraconstitucionais (complementares e ordinárias) está diretamente vinculado à Constituição da qual derivam. De seu turno, segundo o mesmo sistema, as normas regulamentares - caso do citado Decreto 22/91 - hão de haurir sua validade nas normas infraconstitucionais (complementares e ordinárias) e, portanto, derivam indiretamente da Constituição.Sem entrar no mérito de eventual discussão sobre o inegável atropelamento do processo legislativo pelo ex-Presidente, ao editar o Decreto no 22/91 que, embora autônomo, tinha natureza 'legislativa' - vez que concebido sem prévia edição de Lei pelo Congresso Nacional regulamentando o artigo 231 da Carta de 1988 (Título VIII - Da Oredem Social -; Capítulo VIII - Dos Índios) - , não era de nenhuma dificuldade a aferição da inconstitucionalidade do texto emanado da chefia do Executivo Federal.Nesse sentido, por provocação da empresa paulista Sattin S/A - atingida em um de seus imóveis rurais pelo famigerado Decreto no 22/91 - , por iniciativa do então Ministro de Estado da Justiça - hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal e Presidente do TSE - Nelson Jobim - , o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, houve por bem editar o Decreto no 1775, de 08 de janeiro de 1996, de certa forma restabelecendo a juridicidade e a constitucionalidade aos procedimentos de demarcação de terras havidas como de ocupação tradicional indígena, visto que passou a assegurar aos proprietários, detentores ou possuidores das áreas rurais visadas, ainda na fase pré-judicial, o direito de ampla defesa e o exercício do contraditório - tais como assegurados pela Constituição (artigo 5o, LV).Ainda que louváveis e extremamente éticos os propósitos do Ministro Nelson Jobim e do Presidente Fernando Henrique, no sentido de reconhecer a imprestabilidade jurídico-constitucional do Decreto no 22/91 e, por via de conseqüência, substituí-lo por instrumento normativo mais compatível com os princípios e normas do Estatuto Constitucional de 1988 (Decreto no 1775/96), em termos efetivos não se pode, em nenhuma hipótese, serem desconsiderados os efeitos da substituição normativa destacada. Sem prejuízo da análise detida de cada caso concreto, em tese é forçoso concluir que todas as identificações e demarcações de terras supostamente de tradicional ocupação indígena efetivadas no lapso de tempo compreendido entre a expedição do Decreto no 22/91 e do Decreto no 1775, de 08/01/1996 - por ausência das garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório (artigo 5o, LV, da Constituição Federal) - são irremediavelmente nulas, considerando que o Decreto corretor (1775/96), como todo e qualquer ato normativo não retroagiu, para sanar vícios pretéritos, por impedimento também de foro Constitucional (artigo 5o, XXXVI: 'a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada').Daí porque os respectivos procedimentos administrativos (das identificações e das respectivas demarcações) podem ser revistos à luz da Constituição e do Decreto no 1775/96, quer pelo próprio Poder Executivo, quer pelo Poder Judiciário (artigo 5o, XXXV: 'a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito').De outra parte, não se pode olvidar a equivocada interpretação que certos setores da antropologia e da sociologia têm dado ao artigo 231 da Constituição Federal que, de forma quase que programática, reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com a ressalva de que compete à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.É propedêutico que, na interpretação de normas jurídicas - inclusive as constitucionais - não se pode dar efeito retroativo à qualquer proteção possessória nova - no caso em favor dos índios - , pois se assim não fosse, na prática, isso implicaria, sem limite de tempo, devolver todo território nacional aos silvícolas que são, sem dúvida, a continuação da história das tribos que aqui viviam quando os Portugueses descobriram o Brasil.A propósito do assunto, não se pode admitir, em hipótese alguma, a retroação dos direitos de posse dos índios - outorgados pela Constituição de 1988 - ao Alvará Régio de 08 de maio de 1758, só porque dentro do espírito da Bula Papal de 20 de dezembro de 1741 (Papa Benedito XIV), se reconhecia que das terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios primários e naturais senhores dela. Duas são as razões para a rejeição da retroação da posse indígena, tal como aventada: a) primeiro, porque com a proclamação da independência do Brasil, as leis Portuguesas deixaram de ter vigência e eficácia face à Constituição Brasileira de 1824; b) segundo, porque o Governo Imperial, ao editar a Lei no 601, de 18 de setembro de 1850 (artigo 5o), garantiu a legitimação das 'posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se achassem cultivadas, ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o represente'.Na verdade, só a partir da Constituição de 1934 é que se cogitou de ressalvar as terras habitadas por índios. De certa forma, este seria um dos marcos que poderia ser tomado em consideração para a discussão sobre a validade ou a invalidade de títulos de propriedade que tenham por objeto terras que, agora, o artigo 231 da Constituição Federal apregoa ser de ocupação permanente indígena, para fim de demarcação. Entretanto, a melhor conclusão para este aspecto é que: a) o artigo 231 da Constituição Federal não pode retroagir para ferir o ato jurídico perfeito e o direito adquirido; b) em tese, somente a partir da promulgação da Constituição de 1934 é que se teria um referencial para o questionamento da validade de títulos de propriedade expedidos pelo Estado - e não ratificados; c) inquestionavelmente, o § 1o do artigo 231 da Constituição Federal: 'são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições', revogou todos os requisitos exigidos pelas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967, sobre o que seriam 'terras tradicionais indígenas'.Para todos os fins de direito, este é o núcleo, o mérito e os limites constitucionais a serem observados para a efetivação de toda e qualquer demarcação de terras para fim de uso permanentemente indígena.Agregue-se ainda que, à luz da vigente Constituição Federal, se o título de domínio das terras visadas para identificação foi expedido pelo Estado (Governo), processualmente haverá uma inversão do ônus da prova, competindo à parte que alega ser a terra de ocupação tradicional indígena (p.e. Funai) provar o fato de modo convincente, ao ensejo da identificação preliminar da área. Por derradeiro, anote-se que, no regime jurídico-Constitucional prevalente, se o título de propriedade da área demarcanda decorrer de aquisição de particulares, ao adquirente cabe demonstrar que, quando do negócio aquisitório não haviam tipificados sobre a área quaisquer dos requisitos que caracterizavam a terra como de ocupação tradicional indígena, destacando-se que é a efetiva habitação dos silvícolas sobre o imóvel rústico, o indicador de maior relevância para essa constatação. (Gazeta Mercantil/Página 2) (José Goulart Quirino, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC/SP; membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário - IBDT/USP/SP; membro do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP. E-mail: lexconms@terra.com.br)

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