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Lembrança de Solferino

O Globo, Economia Verde, p. 26
Autor: VIEIRA, Agostinho
31 de Jul de 2014

Lembrança de Solferino

Agostinho Vieira
oglobo.globo.com/blogs/economiaverde

A história começou na Itália, em meados do século XIX, numa batalha que deixou cinco mil mortos e mais de 40 mil feridos. Foi ali que o comerciante e diplomata suíço Henry Dunant teve a inusitada ideia de reunir um grupo de voluntários para ajudar as vítimas de ambos os lados do conflito. Nascia assim a Cruz Vermelha Internacional, que ao longo de 150 anos recebeu três vezes o Nobel da Paz.
A mesma Cruz Vermelha que, na sua versão tupiniquim, ganhou destaque na semana passada pelo desvio de R$ 25 milhões. Dinheiro que deveria ter sido usado para ajudar vítimas da fome na Somália, da tsunami no Japão e das chuvas e desabamentos na Região Serrana do Rio. Parte dos recursos foi parar na conta de uma ONG administrada pela família de um vice-presidente da entidade.
Escândalos envolvendo ONGs não são novos. Na verdade, infelizmente, eles são tão velhos e recorrentes que se alguém disser que trabalha numa ONG, o interlocutor é capaz de desconfiar. Esta semana, outra denúncia, desta vez envolvendo a ONG Casa Espírita Tesloo e o ex-secretário da prefeitura do Rio e deputado federal Rodrigo Bethlem (PMDB-RJ), falava em contas na Suíça e contratos sem licitação da ordem de R$ 40 milhões ao longo de um ano.
De acordo com a pesquisa Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil (Fasfi), organizada pelo IBGE e pelo Ipea, existem quase 300 mil organizações da sociedade civil no país. Elas representam pouco mais de 5% das 5,6 milhões de entidades públicas e privadas, lucrativas ou não, com registro no IBGE. E empregam mais de dois milhões de trabalhadores formais.
Obviamente não dá para dizer que são todos bandidos. Claro que não. Muito pelo contrário. Mas no clima de desconfiança em que vivemos hoje, a ideia de que alguém possa receber dinheiro público ou privado apenas com o objetivo meritório de ajudar um terceiro soa quase como utopia. É lamentável, mas é verdade. Dizem que a notícia é a contramão do óbvio. Em tese, o óbvio seria os representantes do terceiro setor, do primeiro setor e do segundo setor cumprirem a lei. Viverem dos seus salários e aplicarem os recursos corretamente. Mas isso nem sempre acontece.
Esta semana, coincidentemente, a presidente Dilma Rousseff deve sancionar o Marco Regulatório das ONGs, que foi aprovado no início do mês na Câmara. O ato traz pelo menos duas boas notícias. A primeira é o projeto em si. As regras abrangem os três níveis da administração pública e garantem maior lisura na relação entre os governos e as organizações da sociedade civil. Ele fala em priorizar o controle dos resultados, em gestão de informação e transparência.
No início de cada ano, o poder público terá que divulgar os valores aprovados no orçamento para as parcerias com as ONGs. Passa a ser obrigatório, por exemplo, o "chamamento público" para a seleção das organizações. E este deverá ser claro, objetivo e simplificado. Talvez até padronizado. Os contratados precisam ter pelo menos três anos de existência, experiência prévia e capacidade técnica e operacional.
Além disso, entidades lideradas por políticos e seus parentes não podem celebrar contratos com os governos.
Nada mal, desde que seja cumprido. Mas a segunda boa notícia, que merece ser comemorada, é a forma como se chegou a essa lei. O projeto original é de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), vice na chapa do presidenciável Aécio Neves. O relator foi o senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que estará no palanque do candidato Eduardo Campos. Já o processo de discussão contou com o apoio de deputados e senadores do PT e da base aliada da presidente e candidata Dilma Rousseff.
Um bom exemplo de que é possível fazer política com "P" maiúsculo. Um sinal de vida inteligente fora das truculentas campanhas eleitorais e da luta insana pelo poder. Quando voltou da Itália, em 1862, Henry Dunant escreveu o livro "Lembrança de Solferino".
Onde conta os horrores que viu e as experiências de salvamento que viveu. A edição em português não é muito fácil de encontrar, mas as versões em inglês e francês estão disponíveis nas melhores lojas. Vale a leitura. Vale também a lembrança de que essa batalha que estamos vivenciando hoje na vida pública nacional pode não levar a lugar algum. Serão todos derrotados. Precisamos de mais gente que se preocupe com as vítimas do conflito.

O Globo, 31/07/2014, Economia Verde, p. 26

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