VOLTAR

A lambança da hidrovia

O Estado de S. Paulo-SP
Autor: WASHINGTON NOVAES
26 de Out de 2001

Uma das práticas mais desastrosas na administração pública brasileira tem sido a do faz-de-conta na realização e no exame de estudos de impacto ambiental, para licenciar obras, que tem tido graves conseqüências, com o surgimento posterior de problemas complicados e com aumento de custos. Há, entretanto, um caso, ainda em pleno desenrolar, que passa de qualquer medida. É o do licenciamento da Hidrovia Araguaia-Tocantins, um dos "corredores" previstos no programa Avança Brasil, no qual já têm sido aplicados significativos recursos orçamentários - embora os órgãos ambientais não tenham emitido a indispensável licença e o próprio processo de licenciamento no Ibama esteja paralisado, por decisões judiciais. Apresentado em 1999 pela Administração das Hidrovias do Tocantins e Araguaia (Ahitar), subordinada ao Departamento de Portos e Hidrovias do Ministério dos Transportes, o estudo de impacto ambiental é reincidente em sua incompetência (para ser generoso e dizer o mínimo), pois sua primeira versão já fora rejeitada em 1995 pelo Ibama. Dois documentos comprovam isso à exaustão: a nota informativa 145/2001, emitida pela Diretoria de Licenciamento e Qualidade Ambiental do Ibama, e o relatório parcial de uma equipe da Universidade Federal de Goiás coordenada pelo professor Edgardo Latrubesse, preparado a pedido da Agência Ambiental de Goiás. Ambos são demolidores. A nota do Ibama enumera uma série de deficiências gravíssimas: "Todos os estudos foram desenvolvidos essencialmente através de dados secundários utilizando bibliografia desatualizada"; não foram descritas as características petrográficas e geotécnicas das áreas nas quais se planejam dragagem de sedimentos e derrocamento de rochas; nem sequer foram indicados os pontos a serem dragados/derrocados, plano de fogo para o derrocamento, tipo de draga a ser utilizada, disposição final dos sedimentos dragados e derrocados (milhões de metros cúbicos!); perfis de solo foram "extraídos do projeto Radam, não correspondendo a dados primários de campo"; estudos hidrológicos insuficientes; falta de modelagem do fluxo de águas no canal a ser aberto para navegação e do aporte de sedimentos no canal (indispensáveis para calcular a dragagem futura); dados insuficientes de qualidade das águas. Mais ainda: estudos de flora, fitoplâncton e fauna foram feitos apenas com dados secundários (literatura anterior); nenhum estudo sobre compensação ambiental; supressão de trechos dos relatórios de antropólogos; ocultação de impactos sobre comunidades indígenas e das medidas mitigadoras. Conclui o Ibama que os estudos apresentados pela Ahitar, na área indígena, "não contemplam os ditames legais previstos" e "tampouco consubstanciam integralmente as conclusões dos consultores". Teriam de ser refeitos. O documento coordenado pelo professor Edgardo Latrubesse é ainda mais arrasador. Além de mostrar, como o Ibama, que a maior parte do estudo foi feita com base em dados secundários, afirma sem rebuços, para começar, que "o tema Geologia não aporta nada na discussão de implementação da hidrovia" e está "totalmente desconexo com o objetivo do empreendimento e com os outros temas". Na parte de Geomorfologia, "o conceito de morfoesculturas é inadequado e insuficiente", a escala 1:1.000.000 "resulta inadequada", a descrição das planícies fluviais, "área foco da hidrovia, ocupa cinco linhas do relatório", a descrição dos processos morfogenéticos fluviais "recai em frases ocas, sem substância nem provas", a descrição de trechos do rio baseia-se em "informação superficial e incompleta". Não é só. Não existe "uma análise dinâmica do rio durante um ciclo hidrológico completo, nem valores estimados de deslocamento das margens, mapas comparativos e estimativas da mobilidade do talvegue". Isso num rio que muda seu leito navegável permanentemente, por causa da movimentação de sedimentos. Já o capítulo de recursos hídricos "se caracteriza pela carência de dados, discussão de resultados e conclusões". A tal ponto que "há um encobrimento dos resultados, não se refletindo os picos máximos ou mínimos do regime hidrológico do sistema". Isso fica claro, por exemplo, na afirmação do estudo de impacto de que a menor vazão média mínima mensal no mês de agosto foi de 345 m3 por segundo em certo ponto, "quando vemos que existem valores menores (...) com uma diferença de mais de 100 m3/seg". Diferenças semelhantes foram encontradas em vários outros pontos. Pior que tudo, o volume de sedimentos a serem dragados e os resultantes de derrocamentos apresentam diferença brutal no próprio EIA/Rima. O Rima menciona um total de 1,1 milhão de metros cúbicos a serem dragados e 421 mil a serem derrocados, enquanto o EIA fala em 4,3 milhões na dragagem e 699 mil no derrocamento. Isso, mostra o estudo crítico, afeta "drasticamente os impactos e custos em relação aos valores apresentados no Rima". A conclusão da análise é de que o trabalho apresentado pela Ahitar "oferece à sociedade um resultado enganoso sobre o impacto das obras e o custo das mesmas". Mais ainda: "A aprovação pelas forças públicas do licenciamento para a implementação da hidrovia, tendo como justificação o deficiente EIA/Rima apresentado pela Ahitar, seria um ato de irresponsabilidade cidadã, que poderia custar muito caro para a nação e seus habitantes." Diante disso, também seria uma irresponsabilidade não paralisar imediatamente os gastos públicos com esse projeto e não excluí-lo sem demora do planejamento federal. Ainda mais tratando-se de projeto que nada tem que ver com as vocações naturais da região e abre caminho para uma expansão indesejável da fronteira agropecuária na maior parte da Amazônia.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.