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Investigação: notas de Constituinte de 1988 revelam preocupação de parlamentares com direito de indígenas expulsos de suas terras

O Globo -
07 de Jun de 2023

Investigação: notas de Constituinte de 1988 revelam preocupação de parlamentares com direito de indígenas expulsos de suas terras
Emenda do senador Jarbas Passarinho visava a proteger povos originários que hoje estão mobilizados para julgamento do "marco temporal" no STF

Por Paulo Celso Pereira
07/06/2023

Na última quinta-feira, completaram-se 35 anos do dia em que a Assembleia Nacional Constituinte votou o capítulo que definiria os direitos dos indígenas na Carta. A discussão sobre qual interpretação deve ser dada ao trecho que trata da demarcação de suas terras volta à pauta de hoje do Supremo Tribunal Federal. O GLOBO revisitou propostas, emendas e debates travados à época da redação da Constituição de 1988 e descobriu que houve intenção explícita dos parlamentares de preservar os direitos de indígenas expulsos de suas terras. Ou seja, os constituintes, deliberadamente, não estabeleceram um "marco temporal" que os obrigasse a estar nas terras naquele momento para ter direito a elas.

Entenda redação da Constituição de 1988 - Foto: Editoria de Arte

Esse é o cerne do debate que está na mesa do Supremo: se as demarcações devem se limitar aos territórios que eram ocupados por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, ou não. Dois votos já são conhecidos: o relator, ministro Edson Fachin, defendeu que não haja essa limitação, enquanto o ministro Nunes Marques propôs a adoção deste "marco temporal", acolhendo a tese de produtores rurais de que a medida daria mais segurança jurídica para o uso produtivo de alguns territórios que estejam sob disputa.

O papel de Passarinho
As notas dos debates e propostas que antecederam a Constituição mostram que a redação final foi fortemente influenciada por uma emenda do então senador Jarbas Passarinho (PDS-PA). Originalmente, a proposta de texto constitucional garantia o reconhecimento aos indígenas dos direitos sobre "as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados". Por sugestão de Passarinho, a redação do artigo foi alterada para a versão hoje em vigor, e que será analisada pelo STF, para garantir aos povos originários direitos sobre "as terras que tradicionalmente ocupam".

Além disso, o artigo 266 foi subtraído. Ele existia na primeira versão do texto que limitava o direito àqueles indivíduos "que, efetivamente, habitem terras indígenas e não possuam elevado grau de aculturação". Além de instituir um "marco", ainda determinava outra limitação ao criar duas categorias de indígenas: os "índios" e os "índios aculturados", sendo que os últimos não estariam sujeitos aos direitos constitucionais garantidos naquele capítulo.

Na justificativa de sua proposta, Passarinho deixou claro que seu desejo era preservar os direitos de indígenas que tivessem sido expulsos de seus territórios ou migrado deles: "A expressão 'posse imemorial' (...) poderá ensejar a expulsão ou perda do direito à terra pelas comunidades indígenas, inclusive prejudicando irreversivelmente aquelas já vitimadas por processos de transferência forçada", defendeu Passarinho, que morreu em 2016.

- O Jarbas Passarinho tratava as questões com muita clareza e convicção. Então passou com tranquilidade essa posição dele. Me lembro que nem houve debate a respeito de os índios poderem voltar às terras que ocuparam em outros tempos, porque isso era indiscutível. A interpretação que se dava era essa porque a condição que os levou a sair é uma questão acidental - explica o ex-senador José Fogaça (PMDB-RS), sub-relator da Constituinte.

O ambientalista Fábio Feldmann, que foi deputado Constituinte e atuou no capítulo sobre indígenas, lembra que os vínculos históricos de Passarinho com os militares foi determinante para garantir a aprovação das mudanças. Ex-ministro dos governos Costa e Silva, Médici e Figueiredo, Passarinho nasceu no Acre, foi três vezes senador pelo Pará e conhecia bem a questão indígena.

- O grande avalista do acordo em relação aos indígenas foi o Jarbas Passarinho, porque ele vinha do outro lado, era ligado aos militares. Não houve essa discussão de marco temporal que hoje está sendo feita, isso não ocorreu - explica Feldmann.

Ulysses registra momento
No dia 1o de junho de 1988, o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, colocou em votação, em sequência, os dois textos. A redação alterada, com a emenda de Passarinho, e a retirada do artigo 266 foi aprovada por 497 votos favoráveis e cinco contrários. Nas palavras de Ulysses, o texto era "resultante de entendimento geral a propósito dos direitos e prerrogativas concernentes aos índios brasileiros".

Para o jurista Gustavo Binenbojm, doutor em direito público e professor da Uerj, a decisão da Constituinte deve ser levada em conta no julgamento em curso no Supremo.

- Não apenas em relação a este tema, mas em vários outros, o recurso à interpretação histórica é válido. A história revela a intenção por trás dos textos, e, para proteger os povos indígenas, houve uma deliberação intencional através dessa emenda de Jarbas Passarinho de não se estabelecer um marco temporal. Você tem esse sentido finalístico de alcançar a maior proteção possível. É um grande achado - afirma.

Ouvido pelo jornal, o então relator-geral da Constituinte e ex-ministro, Bernardo Cabral explica que o tema teve consenso à época.

- O texto que nós publicamos tradicionalmente resolveria tudo, é a palavra do Constituinte, não é só a minha. É a palavra de todos - diz Cabral.

https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/06/investigacao-notas-de-c…

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