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Índios suspeitam das intenções de FHC

CB, p. 22
05 de Fev de 1995

Índios suspeitam das intenções de FHC

José Rezende Jr e Teresa Mello

"O governo Fernando Henrique Cardoso começou mal a Década do índio". A opinião é do líder indígena Marcos Terena. que no ano passado participou, a convite da ONU, das discussões para elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Índio.
A Década do Índio, decretada peca ONU, começou em dezembro do ano passado e termina no último dia de 2004. Os índios desconfiam que não vai terminar bem.
A reforçar essa suspeita está a posição do Ministério Pa Justiça, favorável a uma mudança `radical na demarcarão de áreas indígenas.
O governo quer que os brancos que exerçam atividade legal em áreas indígenas tenham o direito de continuar lá dentro, numa convivência negociada e pacífica com os índios.
Tendência - As lideranças do governo no Congresso vão trabalhar nesse sentido. O Ministério da Justiça acha que os conflitos serão reduzidos. Terena afirma que a tendência é piorar.
Polêmicas à parte, uma coisa é acerta: não falta conflito. Cerca de 85 % das áreas indígenas têm hoje algum tipo de invasão branca. São fazendeiros, posseiros, garimpeiros e madeireiras.
Pior: a Fundação Nacional do Índio (Furai) já descobriu que até o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) invade terra indígena.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e o Instituto Socioambiental, aliás, identificam a conivência de órgãos públicos em alguns conflitos.
De acordo com as estatísticas do Cimi, apenas entre 1991 e 1993 nada menos que 93 índios foram assassinados. Doenças como malária, tuberculose, sarampo e cólera mataram 495. Outros 84 índios optaram pelo suicídio.
Solução - A próxima vítima pode ser o cacique Mariano Cricati. Marcado para morrer, ele esteve em Brasília nesta semana em busca de uma solução. Até lá, os cricati estão ilhados na aldeia e evitam entrar na cidade.
Enquanto isso, o presidente da Funai, Dinarte Madeiro, comemora a decisão do governo Fernando Henrique de formular a política indigenista ouvindo todos os órgãos e ministérios envolvidos na questão.
O mesmo Madeiro, no entanto, lamenta os cortes drásticos no orçamento da Funai para este ano, principalmente no que diz respeito às demarcações.
"Os cortes não foram apenas no orçamento da Funai. Todos precisamos compreender a situação do País", afirma Madeiro.
Mesmo que os 187 povos indígenas compreendessem, o fato é que a Década do Índio começou mal. Pelo menos para os índios brasileiros.

Invasor volta após retirada
O principal empecilho para a solução dos conflitos indígenas é onde colocar os invasores, sejam eles posseiros ou garimpeiros. "Para isso, só a reforma agrária", identifica Márcio Santilli, secretário-executivo do Instituto Socioambiental
A entidade é uma organização não-governamental (ONG) que lida com a questão há 15 anos por intermédio do Programa Povos Indígenas do Brasil.
O caso de Roraima é exemplar. "O governo já promoveu umas cinco retiradas de garimpeiros e eles sempre voltam para lá", conta Santilli, que atribui à impunidade uma parcela de culpa.
O povo crenac, em Minas Gerais, e o pancararu, em Pernambuco, também sofrem com as invasões. Já com a área demarcada e homologada, os crenacs ainda não conseguiram a desocupação dos posseiros.
A mesma coisa se repete com os pancararus. "São quatro mil posseiros e uns cinco mil índios na região", diz ele. ` `A Funai tem de tomar as providências junto aos governos dos estados".
Madeireiras - Os conflitos causados pelas madeireiras também pedem ação do governo. O Ibama não fiscaliza os planos de retirada de mogno, na maioria fictícios, garante.
Santilli conta que essa situação é antiga. No governo Figueiredo, a Caixa Econômica Federal organizou o Projeto Cumaru, para oficializar a exploração de mogno e ouro dentro da terra caiapó, no sul do Pará.
"Os índios foram obrigados a aceitar a invasão, em troca da demarcação da área", diz ele. "Foi tudo armado pelo SNI".

Demarcação pode ser alterada
O governo quer mudar as regras do jogo da demarcação. A idéia é ampliar os direitos dos brancos que ocupam área indígena - desde que exercendo atividades legais -, permitindo que eles permaneçam após a demarcação.
Pela lei atual, a área indígena demarcada tem que ser desocupada. Pelo menos teoricamente.
Os brancos não recebem nenhuma indenização pela terra, mas apenas pelas benfeitorias "de boa fé". Sem direito a recorrer.
O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Milton Seligman, lembra que a Constituição garante a todos os cidadãos o direito ao contraditório (a possibilidade de defesa, no caso de uma acusação), mas que isso não acontece durante as demarcações.
"Gente que ocupa a área há 70 anos é obrigada a sair, sem direito a recurso. Isso não pode acontecer, nem mesmo em nome de um direito de 500 anos dos índios", afirma.
Violência - O resultado, para o Ministério da Justiça, é a violência.
"Revoltados, esses brancos acabam se armando. E está formado o conflito, que não é bom para ninguém. Nem para os índios", justifica o secretário-executivo.
O governo quer que ao invés de "condenados" a deixar a terra, os brancos passem a ter direito a continuar ocupando parte da área.
O poder público seria o mediador dessa negociação, que visaria uma forma de convivência pacífica entre brancos e índios.
Não cabe ao poder público decidir qual das duas partes tem mais legitimidade, mas sim ajudar a buscar formas de convivência harmoniosa. Ou será que para mantermos a paz temos que chamar o Exército e declarar guerra? , argumenta Seligman.
Estatuto - Ele afirma que o governo não vai tomar nenhuma iniciativa para mudar a legislação, mas admite que as lideranças governistas no Congresso já estão trabalhando para aprovar o novo Estatuto do índio.
"Hoje, 89% do território de Roraima é área indígena. Ninguém pode ter a ilusão de que isso tudo será demarcado algum dia. Ou o índio negocia uma forma de convivência pacífica ou vai perder sempre", justifica.
A Funai discorda do número (os índios ocupariam apenas 44,14 % e não 89 % da superfície de Roraima). Marcos Terena discorda da tese.
Mão-de-obra - "Essa convivência jamais seria pacífica. Mesmo porque por trás de posseiro que ocupam áreas indígenas estão, na verdade, grandes fazendeiros.
Assim, os índios seriam, no máximo, mão-de-obra barata dentro de sua própria terra", prevê Terena.
O líder indígena lembra que no ano passado, na condição de relator da revisão constitucional, o hoje ministro da Justiça, Nelson Jobim invocou o princípio jurídico do contraditório para pedir a revisão de todas as demarcações.
"O que o governo FHC precisa é assegurar as terras aos índios e fazer reforma agrária nos grandes latifúndios, para assentar os sem-terra", afirma.

Verba da Funai é ínfima
Que os povos indígenas não tenham muitas esperanças. Do orçamento necessário para este ano (R$ 373 milhões), a Fanai, encarregada de cuidar de 308 mil índios, só vai receber 15,8%.
Para a demarcação, a situação é mais grave. Mantendo a tradição dos antecessores Collor e Itamar, o governo Fernando Henrique reservou muito menos (apenas 8,5%) do que o necessário para cumprir a programação deste ano.
Ou seja, a programação não será cumprida, como mo de praxe. Isso acontece desde que a Constituição de 1988 determinou que todos as terras indígenas brasileiras deveriam estar demarcadas até 1993. O prazo terminou há dois anos, e ainda falta fazer metade do serviço.
Cortes - O planejamento da Funai para 1995 previa demarcação de 71 áreas indígenas e regularização de 112, pagando indenizações.
Com os cortes orçamentários, menos de 20 áreas serão demarcadas. E praticamente nenhum invasor receberá indenização.
Detalhe: os invasores, desde que tenham invadido ''de boa-fé'' e estejam exercendo atividade legal - como a agropecuária. por exemplo - só saem depois de indenizados.
"Se você demora a demarcar, a terra acaba invadida por fazendeiros, posseiros, garimpeiros ou madeireiros. E quando finalmente vai fazer a demarcação, tem muita gente lá dentro para ser indenizada ou tirada à força. E isso custa dinheiro", lamenta o presidente da Funai, Dinarte Madeiro.
Dinheiro que a Funai não tem. Este ano, ela precisava de R$ 182,4 milhões para indenizações. Vai receber 5% disso.
Processos - A verdade é que não se pode culpar só a falta de dinheiro. Afinal, 18 processos encaminhados pela Funai ao Ministério da Justiça, alguns desde 1992, ainda esperam a declaração de ocupação.
Outras cinco áreas estão, desde o início do ano passado, à espera da homologação da Presidência da República, último estágio para que sejam finalmente demarcadas.
O processo referente à área Raposa Serra do Sol, dos índios macuxis, por exemplo, foi enviado ao Ministério Justiça há dois anos e está parado na Advocacia-Geral da União.
Os macuxis enfrentam a resistência selvagem do governo de Roraima, que pretende construir uma hidrelétrica na área.
"Toda demarcação é complicada, porque sempre contraria algum interesse econômico. Mas se além das pressões você ainda tem que lutar contra a falta de dinheiro, fica muito mais difícil'', explica o presidente da Funai.

"Toda demarcação é complicada, porque sempre contraria algum interesse econômico. Mas se além das pressões você ainda tem que lutar contra a falta de dinheiro, fica muito mais difícil " Dinarte Madeiro presidente da Funai

Pistoleiros caçam cacique
Ele é um índio marcado para morrer. Na última quinta-feira, o cacique Mariano Cricati voltou para o Maranhão, com ajuda da Funai.
Ele foi informado que pistoleiros estavam de tocaia na rodoviária, aguardando a chegada dos índios.
Por isso, a Funai embarcou o pessoal num carro comum, sem logotipo, para não chamar a atenção. A cautela não é à toa.
Depois do assassinato de Manuel Guajajara, dia 17 de janeiro, ninguém da aldeia São José pisa mais na cidade de Montes Altos.
Tudo porque a portaria que determina a demarcação das terras cricatis, assinada em 1992, até hoje não conseguiu ser cumprida.
As tentativas são abortadas de forma violenta: seqüestro, tiros, barreiras, ameaças.
Políticos - Segundo o cacique, quem está por trás de tudo são cus políticos locais, liderados pela prefeita Mirilandes Jales e pelo chefe de gabinete, coronel Sílvio Júnior. "Eles é que mandam", afirma Mariano.
Acossados, os 520 cricatis estão confinados na aldeia. a 18 quilômetros da cidade. Nem lá têm sossego: a área está invadida por 662 posseiros.
Eleito cacique em junho passado, Mariano já esteve em Brasília três vezes, tentando unia solução. Só conseguiu promessas. Agora, enfrenta a morte como um guerreiro.
Em vez de Tupã. mira-se na Inconfidência Mineira. "Não tenho medo de morrer", diz ele. "Tiradentes também se entregou á luta por gosto".
Espírito - Apelar para Deus é impossível. Apesar do nome católico da aldeia, os cricatis veneram o Sol.
E se o cacique for morto? "- Não importa. Meu espírito vai continuar na terra", alegra-se.
Aos 41 anos e com "um monte de filhos'', - só com a última mulher são cinco -, Mariano aproveitou a última tarde em Brasília para relaxar. Queria levar uma lembrancinha para a família e não teve dúvidas: foi para a Feira do Paraguai.
Comprou calça, camisa, boneca, carro de corpo de bombeiro e outro de Fórmula-1. "Não comprei patins porque não deu", diz ele. "Se eu pudesse. levava a feira do Paraguai toda".

Incra promove assentamentos
No início deste mês, a empresa contratada pela Funai começou a demarcar a área indígena Baú, dos ítidios caiapós, no Pará, quando o trabalho foi interrompido por posseiros armados.
Seria uma escaramuça de rotina, não fosse um pequeno detalhe: os posseiros alegaram que estão lá legalmente. Eles teriam sido assentados, em plena área identificada como indígena, por nada menos que o Incra.
Consultado pela Funai, o Incra ainda não respondeu se realmente assentou os posseiros. Se confirmada, a história não chega a ser novidade.
No final do ano passado, a Funai descobriu, durante a demarcação da área indígena Apteréua, dos índios paracanãs, no Pará, que o Incra tinha chegado primeiro.
Assentamento - Em 1993, quando a área já estava oficialmente identificada como indígena, o Incra assentou 216 famílias de trabalhadores sem-terra. A demarcação teve que ser suspensa.
Com Incra ou sem Incra, não é tarefa fácil demarcar área indígena no Brasil. Na área cricati, no Maranhão, uma equipe do Exército, encarregada da demarcação teve que bater em retirada, sem concluir os trabalhos de demarcação.
Estímulo - "Grande parte das invasões é estimulada pelos prefeitos, para tumultuar o processo de demarcação", afirma a diretora de Assuntos Fundiários da Funai, a antropóloga Iza Pacheco. Ela já sentiu na própria pele a dificuldade de demarcar uma área.
No ano passado, pistoleiros de uma grande fazenda, fortemente armados, simplesmente impediram a entrada da diretora na área Arara do Rio Branco, no Mato Grosso.
Resultado: a demarcação continua. Mas muito, muito distante dos fazendeiros e seus pistoleiros.

Estatísticas
557 é o total de áreas indígenas (11 % do território nacional)
271 terras estão demarcadas
187 povos
308 mil índios
93 índios assassinados entre 1991 e 93

CB, 05/02/1995, p. 22

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