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'Índios querem mostrar que sabem dos seus direitos', diz líder da aldeia Kalipety

O Globo https://oglobo.globo.com
Autor: Tiago dos Santos, em depoimento a Bruno Rosa
05 de Mai de 2019

Meu nome é Tiago dos Santos. Tenho 26 anos, dois filhos e sou professor indígena. Eu sou o líder da aldeia Kalipety, que fica a 50 quilômetros do centro da capital de São Paulo, na região de Palheiros. A aldeia faz parte da terra indígena Tenondé Porã, que tem 16 mil hectares e cerca de 5 mil índios. Somos guarani mbya. Apesar de estamos em uma área perto das cidades, mantemos nossa língua e tradição, como o cultivo. A gente planta bastante. Temos variedade de milho, batata, mandioca e pupunha. Plantamos para o consumo próprio e fornecemos alimentos para as escolas indígenas. Nós trabalhamos dentro da comunidade. Temos empregos, como professores nas escolas e agentes de saúde nos postos de saúde dentro da comunidade. Somos atendidos por nós mesmos.

O impacto com a ferrovia Itirapina-Cubatão da Rumo Logística já vem há mais de 90 anos. A ferrovia foi construída na década de 1930. A constituição de 1988 garante os direitos originários dos indígenas. Por lei, eles têm que fazer todo o licenciamento ambiental junto com o componente indígena. É onde estamos tentando garantir os nossos direitos. Antes da duplicação, a gente já sofria muito, pois essa ferrovia foi feita em cima das nossas trilhas tradicionais entre o trajeto que fazemos da capital para o litoral e do litoral para a capital. A gente transita nessas áreas. Por isso, a gente é obrigada a caminhar na ferrovia.

Com a duplicação da ferrovia, não vamos mais poder usar nossas estradas tradicionais. Temos uma preocupação ambiental porque não sabemos o que é levado dentro dessas cargas. Sabemos que tem soja, açúcar, cereais e sal. E muitas cargas viram e contaminam o solo e a água. E temos muita preocupação com as questões dos transgênicos, por exemplo. A gente faz plantio orgânico. E sabemos que pelo ar pode haver contaminação.

"Como um índio se tornou acionista? Esse ato é inédito no Brasil"

TIAGO DOS SANTOS
Líder da aldeia Kalipety
Temos preocupação muito forte com a fauna porque o que passou para um lado não passa mais para o outro por causa dos trens. A gente não vê mais os animais porque eles estão se afastando cada vez mais dessas áreas. As passagens subterrâneas que deveriam ter sido feitas para os animais não foram feitas, assim como as passarelas para as comunidades indígenas atravessarem e chegarem a outras aldeias. Hoje,sofremos muito com o barulho. Eu moro a 2,5 quilômetros da ferrovia e às vezes os trens ficam apitando a noite inteira. Parece que passa na sua porta porque o barulho é muito forte. Aqui não tem prédio nem cidade. Isso tudo esta anexado no Plano Básico Ambiental.

Comitê Interaldeias
Dentro desse processo, criamos uma organização das comunidades afetadas, que se chama Comitê Interaldeias. É uma associação que tem o objetivo de conversar com a empresa para ver as melhores formas de execução das atividades. Cada comunidade tem seus representantes. A gente já tinha aprovado o Plano Básico Ambiental em 2016, mas não houve avanços. E, em junho de 2018,a gente fez uma proposta. O objetivo é que a empresa negociasse as ações diretamente com a nossa associação, sem ter intermediadores nesse processo. Fizemos essa proposta para a Rumo em uma reunião em que estavam presentes o Ministério Público Federal e a Funai. Primeiro, a Rumo aceitou, mas depois de três meses ela veio com um papo de que eles não iriam aceitar. Eles falaram que não iam mais pisar nas comunidades indígenas. A gente é tratado com muito preconceito ainda.

Nesse período, o Ministério Público Federal tentou fazer uma mediação com eles. Foram chamadas quatro reuniões e não teve nenhum resultado. A Rumo mandou seus advogados e eles falavam que iam fazer. Eles pediram bastante papel. E corremos atrás desses papeis para fazer esse acordo. Então, a gente marcava uma reunião depois de um mês. E eles pediam outras coisas. E aí corríamos atrás. Na terceira reunião, não tinha mais como dialogar com pessoas que estavam com má-fé nas conversas.

Na nossa avaliação, esses diretores não repassavam para sua diretoria superior ou presidente. Eles seguravam ao máximo para não deixar avançar. E pensamos no que a gente podia fazer para essa situação subir de nível. Essa era a nossa intenção. E apareceu a questão das ações. A gente também tem nossos assessores jurídicos. E pesquisamos isso a fundo para ver se era viável. E começamos a correr para comprar essas ações para ter acesso à Assembleia anual da Rumo.

"A nossa intenção é apenas criar acesso a essa Assembleia para levar a voz das comunidades afetadas pela ferrovia"

TIAGO DOS SANTOS
Líder da aldeia Kalipety
É muito complicado comprar. Para ter acesso, tem que tirar um comprovante de que você é acionista. A dificuldade é ter isso no papel. Você manda o comprovante de residência para o banco on-line e eles ficam analisando durante uma semana. Se tiver alguma coisa errada, tem que mandar outro documento. A gente conseguiu muito em cima da hora. Foi um dia antes que a gente conseguiu todas as papeladas para ter acesso à Assembleia.

Mas deu tudo certo. O objetivo dos acionistas é investir na empresa para ter o retorno. Mas nossa intenção não é isso. A nossa intenção é apenas criar acesso a essa Assembleia para levar a voz das comunidades afetadas pela ferrovia. Conseguimos entrar porque estamos no direito legal do acionista. Conseguimos ler uma carta das comunidades e ter uma conversa com o representante do comitê de auditoria.

Éramos cinco pessoas guarani na Assembleia, sendo uma mulher grávida. Quando a gente entrou, eles ficaram surpresos porque a primeira coisa a gente é índio. O olhar é muito preconceituoso porque quando fala que é índio vem um monte de coisa. Índio é burro. Índio é bêbado. Índio é vagabundo. São as frases que a gente mais escuta. E eu acho que não foi diferente também. Talvez eles tiveram essa impressão: "Como assim os índios chegaram aqui?".

A nossa reivindicação maior é que a Rumo faça um contrato conosco. A duplicação, a agente não consegue barrar porque são os interesses econômicos. Não temos o poder de barrar essa duplicação que já começou. Temos sete programas com várias atividades. Temos temas que a gente trabalha. Um deles é a educação. Dentro dela, há seminários com as comunidades afetadas pela ferrovia. A empresa tem que custear esses encontros com os mais velhos e com os professores da aldeia. Discutir, por exemplo, o projeto político pedagógico das escolas, que trabalha a questão das matérias e do currículo diferenciado. É oferecer para as comunidades afetadas a possibilidade de ter esse contato entre as aldeias.

Fortalecimento cultural
Outra coisa é o fortalecimento cultural. Uma das coisas que estávamos trabalhando era o intercâmbio cultural das comunidades mais afastadas das cidades. Há cerimônias religiosas que temos ainda bastante. Somos um povo bem religioso com crença própria. Temos momentos sagrados. Tem a cerimônia da erva-mate, a cerimônia do milho. E a gente faz essas festas religiosas todo ano. Quando é feito isso, vamos na procura dos líderes espirituais também para fortalecer. Outra coisa é a saúde. É onde a gente trabalha com as ervas medicinais para saber para que servem e para guardar o que temos dessa mata. A ideia é fazer uma cartilha desses remédios para ver o que existe e o que não existe para recuperá-las. Essas são três exemplos de atividades práticas, que é de cotidiano nosso. O que estamos falando para a Rumo é que essas atividades têm que ser respeitadas. A gente sabe como isso tem que ser feito.

"O olhar é muito preconceituoso porque quando fala que é índio vem um monte de coisa. Índio é burro. Índio é bêbado. Índio é vagabundo"

TIAGO DOS SANTOS
Líder da aldeia Kalipety
Só vamos saber se a participação na Assembleia deu certo com o tempo. O que estamos buscando aqui é um diálogo sincero da nossa parte, dos guarani. E que a Rumo possa falar também. Não é só a gente que está falando. O Ministério Público e a Funai também estão falando. Isso tem que ser avaliado. Toda essa iniciativa pode estimular outros grupos indígenas. É uma experiência nova. Como um índio se tornou acionista? Esse ato é inédito no Brasil. Isso é interessante porque você pode alcançar o nível superior da empresa que você deveria alcançar.

Com essa nossa atitude, a gente alcançou as pessoas mais altas e que podem dar um apoio maior. É uma experiência nova na questão de luta com os empreendimentos aqui no Brasil. Vai se tornar um exemplo bem interessante. Acredito que a partir desse momento, não de imediato a gente vai conseguir, mas há uma esperança de a Rumo tomar um pouco de cuidado, de achar que a gente é burro e não sabe do nosso direito.

O que diz a Rumo
Em resposta, a Rumo disse que "vinha executando normalmente os projetos decorrentes do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental. Em julho do ano passado, porém, a Companhia foi informada, de maneira unilateral, de que o Comitê Interaldeias pretendia receber as verbas destinadas às ações e assumir a execução delas. Não se tratava de uma reunião deliberativa, e nenhum acordo foi firmado na ocasião.

Em nota, a compannia acrescenta que seus representantes foram impedidos de entrar no território e dar continuidade às obrigações previstas no CI-PBA.

"A Rumo não possui garantias de que o Comitê Interaldeias realizará tais obrigações com a qualidade exigida e, portanto, espera que a Funai e o Ibama auxiliem no desenrolar da questão, no sentido de garantir que as obras possam ser devidamente executadas. A Rumo esclarece ainda que já foi concluída grande parte da obra de duplicação nos 215 quilômetros de via, incluindo os 55 quilômetros em área de interferência em terras indígenas, com os devidos licenciamentos para sua realização", conclui o comunicado.

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