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A ilusão da ideologia indigenista custa caro

OESP, Internacional, p. A18
Autor: AGUINIS, Marcos
19 de Jun de 2005

A ilusão da ideologia indigenista custa caro
Líderes indígenas pregam nivelamento por baixo e confundem justiça com miséria
Marcos Aguinis

SANTIAGO - Acaba de ser inaugurada a nova estrada entre o aeroporto e Santiago, e percorro como uma flecha os espetaculares oito quilômetros que correm sob o Rio Mapocho. É um túnel que serpenteia por todo o centro, descongestiona o trânsito e revela que o Chile - graças ao sólido Estado de Direito garantido por sucessivos governos - estimula investimentos multimilionários que aceleram o crescimento do país com botas de sete léguas.
O encontro internacional ao qual me dirigia fora organizado pela Fundação Liberdade e Desenvolvimento em comemoração a seus fecundos 15 anos de existência. Fui encarregado da dissecação de um tema perturbador de nosso continente: o indigenismo. Especialistas do Canadá, Espanha, EUA, China, Peru, Venezuela e Bolívia tratariam deste e de outros assuntos emblemáticos de nosso tempo.

Minhas primeiras palavras recordaram que os indígenas são considerados com justiça os primeiros donos desta terra, e suas culturas e sua posição de protagonistas foram reprimidas sem misericórdia. Com diferenças de um país para outro, em muitos eles ainda são comunidades importantes e, em outros, alcançaram uma miscigenação intensa. O problema atual é ajudá-los a encontrar um caminho de verdadeira reparação e ascensão, ou então permitir que sejam desviados para a armadilha de abismos retrógrados e totalitários, como ocorre agora na Bolívia. É muito fácil confundir. E neste ponto concentro minha advertência.

De fato, sua reivindicação já é importante. Não só ocorre uma revisão da história, como há projetos que incluem utopia e epopéia. Os indígenas se transformam nas grandes vítimas do continente, o que não está longe da verdade. Mas a ênfase distorce, simplifica e idealiza seu passado. Ainda mais grave: pretende transformar o passado em modelo. Isto é reacionário e letal. Como exemplo, bastaria refletirmos sobre a exigência feita pelo Sendero Luminoso aos camponeses peruanos a fim de "libertá-los" da opressão européia: cultivar só produtos anteriores à Descoberta, como batata e milho.

Por outro lado, descartar as venenosas importações de trigo, cevada, centeio, aveia, arroz e cana-de-açúcar; não criar animais malditos, como a vaca, a ovelha, o porco, a cabra, o coelho e as aves de criação. Para manter a coerência, acrescento que seria preciso abandonar a roda, o cavalo, o boi, o ferro, o vidro e o arado. Grande futuro, não?

O líder indigenista Felipe Quispe disse que, se uma parte da sociedade usa sandálias indígenas e outra, sapatos, que todos usem sandálias. Ou seja, nivelar por baixo, porque se confunde justiça com miséria.

Na mitificação de numerosos historiadores chegou-se a considerar levantes indígenas como instrumentos da emancipação. Mas o que eles queriam não era a independência nem a semelhança com as repúblicas modernas, e sim o retorno ao tempo incaico ou pré-incaico, que não foi um paraíso, e sim um eterno campo de batalha, com massacres, guerras de domínio e incontáveis sacrifícios humanos. A rebelião aimará de Túpac Katari, em 1782, por exemplo, agrediu não só os europeus, mas também os mestiços e os quíchuas.

Esses levantes, ainda que heróicos, significaram um projeto não de superação, e sim de regressão. E tiveram o mesmo fim de todos os movimentos retrógrados, como o dos escravos na Antiguidade ou o dos camponeses na Idade Média. Podemos nos comover com seu heroísmo, mas não considerá-los um paradigma. Os indígenas estavam aterrorizados diante da nova ordem, que, entre outras coisas, tendia a deixar para trás a etapa primitiva do coletivismo.

Os atuais bolivarianos deveriam lembrar que Simón Bolívar assinou, em 1824, um decreto que estabelecia a propriedade privada da terra. Acertou ao considerar a propriedade comunal um resíduo arcaico, um modo de produção ineficiente.

Isto foi tragicamente comprovado pela ditadura esquerdista do general Velasco Alvarado, que tentou ressuscitá-la na década de 70: produziu fome e empobrecimento acelerado. Agora, tenta-se comprovar aquilo mais uma vez.

A idealização contaminou inclusive marxistas como Carlos Astrada, que não sentiu náuseas ao usar conceitos anticientíficos nazistas sobre o vínculo dos povos com a terra e o sangue. Nesta linha, movimentos posteriores populistas e terceiro-mundistas usaram os indígenas para construir suas artificiais teorias sobre identidade nacional oposta ao centralismo europeu e ao Ocidente (este último, odiado pelos reacionários com patente de progressistas que rejeitam as aberturas da modernidade, da democracia genuína, dos direitos individuais e de outras abjeções).

A revolução bolchevique, incapaz de construir um socialismo próspero e democrático, havia imposto concepções de Estado que permitiam o controle das massas e sua descarada manipulação "em nome" do proletariado. Daí seus seguidores e simpatizantes terem celebrado a civilização incaica como um antecedente do socialismo moderno (!). Não lhes importava a maciça estratificação de classes nem a opressão sofrida pelos que estavam abaixo. Tampouco os direitos humanos, pois para esses fascistas de esquerda o Estado merece tudo e cada homem não é mais que uma molécula anônima. Embora houvesse maravilhas nas civilizações pré-colombianas, elas estavam 4 mil anos atrasadas em relação à Europa do Renascimento. Isto não justifica, claro, a tábua rasa que se fez de suas riquezas e tradições.

É curioso que o indigenismo retrógrado tenha começado a ser incentivado por brancos descendentes de europeus, sem perceber que adotavam o caminho racista que pretendiam combater.

Nos anos 70, o boliviano Fausto Reinaga, inspirado no black power, preconizou a "revolução indígena" e as lutas entre brancos e índios; o indigenismo devia servir para a tomada do poder e a limpeza do continente das etnias invasoras (na Argentina não sobraria quase ninguém). O peruano Guillermo Carnero Hoke afirmou: "Nossa razão de ser, desde as profundezas dos séculos, é a razão coletivista... O pensamento de nossos avós do Tawantisuyo era justo, moral, científico e cósmico, ou seja, insuperável." (!)

Expressões como essas pareciam minoritárias. Mas o 1.o Congresso dos Movimentos Indígenas, celebrado no Peru em 1980, proclamou que os indígenas eram a única alternativa redentora, não só deles mesmos, mas da humanidade. Eles passavam a ocupar o trono que o marxismo atribuíra ao proletariado, com um condimento horrível: supor, como os nazistas, que raças puras são melhores.

O problema indígena não é de raça nem de cultura: é social. Os indígenas não têm de voltar a um passado inviável nem limitar-se à economia de subsistência. Podem e devem cultivar suas tradições, seu acervo lingüístico e suas lendas, é claro, mas sem isolar-se nem repudiar os benefícios da modernidade. Se resistem à modernidade, condenam-se a permanecer como um setor inferior, isolado, débil e carente de verdadeiro papel. Do contrário, têm direito a deixar de ser as comunidades que causam lástima, ressentidas e marginais. Têm direito a freqüentar boas escolas e universidades, participar dos partidos políticos e associações profissionais. O indígena Benito Juárez, que chegou à presidência do México, não se deixou intimidar por quem o considerava um traidor.

Para obter perspectiva, deveriam ser discutidas as experiências da comunidade negra nos EUA, por exemplo. Ela se livrou da escravidão legal, mas continuou submetida a uma severa discriminação. Surgiram reações como o black power e manifestações racistas invertidas, entre as quais ganharam renome as do notável Malcolm X. Ao mesmo tempo, houve tentativas de vencer os preconceitos por meio do intercâmbio de estudantes provenientes de bairros brancos e bairros negros, o que não deu frutos. Logo avançou a proposta fraternal de Martin Luther King, que acabou conquistando a maioria da nação. Não foi suficiente, no entanto, e sancionou-se a "discriminação positiva", ou ação afirmativa, por meio da qual se impôs o ingresso de negros nos centros de estudo e seu melhor posicionamento no trabalho.

Agora já existe uma ampla classe média negra com uma infinidade de profissionais, juízes, diplomatas, acadêmicos e empresários. Dois sucessivos secretários de Estado foram negros e a atual, além disso, é mulher. A ação afirmativa tem sido imitada em muitos países para aumentar a presença feminina na política, por exemplo. Mas acredito que este recurso só deve ser usado para mudar a tendência, não para durar eternamente. Do contrário, corromperia a igualdade de direitos que deve prevalecer numa verdadeira democracia.

Em resumo, impulsionar o indigenismo em direção ao passado é uma armadilha que só beneficia demagogos, ignorantes e populistas. Leva a conflitos, derramamento de sangue e aumento da pobreza. É preciso refletir, em vez disso, sobre medidas racionais, como a ação afirmativa, para que todos os indígenas da América Latina, sem perder suas raízes, tenham finalmente acesso cômodo ao progresso cultural, econômico e social.

*Marcos Aguinis, escritor argentino, escreveu este artigo para o jornal 'La Nación'

OESP, 19/06/2005, Internacional, p. A18

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