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Habeas-corpus para Paulinho Paiakan é novamente negado

ISA
Autor: Valéria Macedo
06 de Set de 2000

Condenado por estupro, índio Kaiapó está sendo privado de direitos indígenas.

Junho de 1992: o Brasil estava repleto de políticos e ambientalistas do mundo todo reunidos para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO 92, sediada no Rio de Janeiro.

Na mesma data, Paulinho Paiakan, um Kaiapó que vinha tendo sua imagem veiculada na mídia internacional como ícone indígena do ecologismo, acaba servindo de mote para outra espécie de campanha, que visava questionar movimentos ambientalistas e de defesa dos direitos indígenas em evidência na Eco 92. Sob o título de O Selvagem”, uma matéria na revista Veja relata que Paiakan teria estuprado uma jovem "branca", de 18 anos, na cidade de Redenção (PA). Posteriormente, grande parte das cenas de violência descritas na reportagem foram desmentidas por laudos periciais. Na ocasião, ambientalistas e antropólogos presentes na Eco 92 saíram em defesa de Paiakan.

Pouco antes, a imagem do índio esteve estampada na capa de outra revista e por razões bem diversas: Paiakan foi apontado como The man who would save the world” (o homem que poderia salvar o mundo”) no encarte dominical do jornal norte-americano The Washington Post, por sua atuação em busca de um modelo ecologicamente equilibrado na exploração dos recursos florestais da Amazônia.

A partir de então, uma intrincada rede de versões, controvérsias e troca de advogados marcaram o processo que culminou na condenação de Benkaroty Kaiapó, ou Paulinho Paiakan, em dezembro de 1998, a seis anos de prisão em regime integralmente fechado. Os advogados Luís Francisco de Carvalho Filho e Maurício de Carvalho Araújo foram então convidados a entrar no caso e detectaram uma série de nulidades que, em seu parecer, invalidariam o julgamento.

No último dia 22 de agosto, os advogados tiveram seu terceiro pedido de habeas-corpus negado. Carvalho Filho acredita que essas derrotas devem-se ao preconceito que existe contra a figura de Paiakan e, de maneira mais ampla, contra índios que enfrentam situações de conflito em seus estados. Nesses tribunais, Paiakan é considerado branco”, já que fala português, dirige automóvel e é eleitor. Mas esses fatores não apagam sua herança cultural. Ele está sendo tratado como se fosse um tataraneto de um índio que mora em São Paulo e é banqueiro”, afirma.

Nos pedidos de habeas-corpus, eles não entram no mérito da culpabilidade de Paiakan, mas das nulidades que caracterizaram seu julgamento. O objetivo é anular o processo para que ele seja julgado com um mínimo de civilidade jurídica”, diz Carvalho Filho.

Nulidades do processo

Entre os aspectos que deveriam ocasionar a anulação do julgamento, os advogados destacam a negação de um laudo antropológico para verificar o grau de "aculturação” de Paulinho Paiakan, como é necessário em qualquer processo que envolva um índio. Segundo Carvalho Filho, esses pedidos sempre foram negados sob alegação de que ele é perfeitamente integrado. Eles acham que o índio tem que ficar dentro de uma redoma sob pena de não ser mais considerado índio. O que me parece absurdo é negar essa possibilidade de verificação”.

Outro tópico importante é que Paiakan foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Pará e, por ser indígena, ele deveria ter sido julgado pela Justiça Federal. Segundo os advogados, o destino de Paiakan está estreitamente vinculado aos conflitos que enfrenta com outros atores na região de A´Ukre. Essa Terra Indígena representa uma fronteira para a entrada de madeireiras e o desmatamento para a constituição de fazendas. Desse modo, o julgamento estaria sujeito a injunções regionais e a Constituição determina que, nesses casos, a competência seja da Justiça Federal.

Também é ponto de controvérsia o fato de não ter sido permitido a Paiakan escolher um advogado da Funai para defendê-lo. O juiz afastou a Funai do processo e, paradoxalmente, manteve Paiakan preso preventivamente sob a custódia do órgão indigenista, em regime de prisão domiciliar. Daí decorre outra nulidade: a Funai não apresentou Paiakan numa audiência no dia 26 de maio de 1993 e o juiz decretou sua revelia, determinando que o processo seguisse e ouvindo testemunhas sem a sua presença. De acordo com Carvalho Filho, contudo, a prisão é incompatível com a revelia, já que aquele que está preso não tem a opção de se ausentar.

Por fim, o acórdão que o condenou é nulo porque não aplicou o artigo do Estatuto do Índio (Lei 6.001/73), o qual determina que o indígena punido criminalmente deva cumprir pena em regime de semiliberdade. Isso não quer dizer que Paikan seja inimputável. Mas, para ser julgado, é preciso verificar seu grau de aculturação”, o que lhe foi negado.

Em resposta a essa alegação, o ministro José Arnaldo, relator do processo, afirmou ao Jornal do Commercio (RJ, 24/08/00) que, de acordo com o Superior Tribunal de Justiça (súmula 231), "a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir a pena abaixo do mínimo legal" e, no caso, a pena mínima para crime de estupro é de seis anos. Outro ponto levantado pelo relator é que o dispositivo do Estatuto que poderia atenuar a pena do réu "se destina ao silvícola em fase de aculturação. Não se destina, pois, ao índio já integrado", como é o caso de Paiakan, "demonstrando perfeito entendimento dos fatos, não necessitando sequer tutela da Funai".

Em novembro de 94, Paiakan e Irekran tinham sido absolvidos da acusação de estupro e atentado violento ao pudor, pela ausência de provas materiais. Ficou provado que Irekran agrediu a jovem, mas, por ser indígena, ela foi considerada inimputável. Porém, o Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça do Pará condenou Paiakan a seis anos de prisão em regime integralmente fechado, por ser "aculturado".

Até agora, o mandato de prisão não foi cumprido. Atualmente, Paiakan está em A´Ukre e recusa-se a sair da Terra Indígena, onde já cumpriu dois anos e meio da pena de seis anos. Seus advogados pretendem entrar com um novo, e último, pedido de habeas-corpus perante o Supremo Tribunal Federal. A nossa idéia é, quando esgotarem-se todos os recursos, irmos aos organismos internacionais mostrar como e porque foram negadas a Paiakan garantias fundamentais de qualquer pessoa acusada criminalmente”, prometem.

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