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Família da fazenda Yvu, onde morreu um índio Guarani-Kaiowá, diz que "terra é nossa"

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br
Autor: Fabio Pontes
21 de Jul de 2016

Passado um mês do ataque de fazendeiros e homens encapuzados que matou um índio Guarani-Kaiowá e deixou outros seis gravemente feridos em Caarapó, a família que se diz proprietária da fazenda Yvu, onde aconteceu o conflito, quebra o silêncio e fala sobre a iminente ação de reintegração determinada pela Justiça Federal para expulsar os índios da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1, no Mato Grosso do Sul.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu que a área da fazenda Yvu está dentro dos limites da Aldeia Tey Kuê, de ocupação tradicional dos índios Guarani-Kaiowá, e disse que está recorrendo da decisão de reintegração de posse.

À Amazônia Real, o advogado especializado em direito ambiental, José Armando Amado, disse que a fazenda Yvu está em nome da sua irmã, Silvana Raquel Cerqueira Amado Buainain, mulher do fazendeiro Nelson Buainain Filho.

Silvana Amado Buainain é a autora da ação de reintegração de posse determinada pelo juiz Jânio Roberto dos Santos, da 2o Vara Federal de Dourados. Ele deu prazo de 20 dias para que a Funai cumpra a sentença sob pena de multa diária no valor de R$ 50 mil, de R$ 1 mil para o presidente nacional da fundação e de R$ 500 para seu representante em Dourados. O prazo acaba na próxima semana.

O advogado José Armando Amado disse que a decisão do juiz Roberto dos Santos foi um "alento" para a família. "Essa decisão é um reconhecimento da Justiça de que aquela terra é nossa, pertence a nossa família. Se o governo quer aumentar a reserva indígena que adote as medidas cabíveis, que são a desapropriação e a indenização."

Segundo José Armando Amado, a fazenda tem uma área de 482 hectares e foi adquirida pelo seu pai, Sylvio Mendes Amado, em 1961. Na fazenda, conforme o advogado, há criação de gado numa parte e em outra, arrendada, tem cultivo de soja. Ele disse que as 360 cabeças de boi que tinham na propriedade foram retiradas após a ocupação dos índios Guarani-Kaiowá.

Amado contou que, desde que sua família chegou a Caarapó, vinda de Minas Gerais, nunca enfrentou problemas com os índios Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul.

"Até essa invasão [que os Guarani-Kaiowá chamam de retomada] nós nunca tivemos problemas com os índios aqui. Sempre tivemos uma boa conversa com os caciques, meu pai sempre os ajudou. Meu pai sempre dava carona para eles entre a fazenda e Caarapó. Nós não podemos querer corrigir um erro histórico prejudicando só um lado", afirmou José Armando Amado.

Conforme publicado pela Amazônia Real, o fazendeiro Nelson Buainain Filho, marido de Silvana Amado Buainain, foi apontado pelo Ministério Público Federal por arregimentar pessoas para o ataque aos índios Guarani-Kaiowá, no dia 14 de junho.

Em entrevista, o procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida disse que a nota do Sindicato Rural de Caarapó prova que o próprio proprietário Nelson Buainain Filho arregimentou voluntariamente pessoas para se reunir e retirar os índios da fazenda Yvu.

"Na nota, o sindicato aponta o próprio proprietário [Nelson] como a pessoa que arregimentou voluntariamente pessoas para se reunir e retirar os índios, então isso é um ponto. Obviamente que há muitos vídeos que a comunidade [Guarani-Kaiowá] nos passou. Em depoimentos várias pessoas foram identificadas. Entendemos que há vários elementos ali que permitem que avancemos para identificar as pessoas que deliberaram e conduziram com mais relevância essa ação", afirmou o procurador.

O Sindicato Rural de Caarapó diz em nota oficial que Nelson Buainain pediu apoio a alguns produtores do município (distante 286 quilômetros de Campo Grande) para "inibir" a presença dos índios Guarani-Kaiowá na fazenda no dia 14 de junho.

"Ao chegar em Caarapó, Nelson pediu apoio a alguns produtores, no intuito os mobilizarem a ir para sua propriedade - a intenção era inibir a presença dos poucos índios que haviam na fazenda." disse

No ataque dentro da fazenda Yvu morreu, atingido por dois tiros (um no abdômen e outro no peito), o agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, da Secretaria Especial de Saúde Indígena de Dourados. A Polícia Federal abriu inquérito para investigar o ataque aos Guarani-Kaiowá, mas não prendeu ninguém pela morte de Souza. A polícia também apura a denúncia de que os índios torturaram três policiais militares durante o conflito.

Os seis feridos no conflito da fazenda Yvu foram Josiel Benites, 12 anos, com um tiro no estômago, Valdilho Garcia, 26, atingido com um tiro no tórax, Jesus de Souza, 29 anos, baleado na barriga, Libésio Marques, 43 anos, que teve ferimentos leves na cabeça, tórax, ombro e barriga, Norivaldo Mendes, 37 anos, atingido por tiro no peito, e Catalina Rodrigues de Souza, 50 anos, que teve o braço atingido de raspão por um dos tiros.

Perguntado sobre o conflito dentro da fazenda Yvu, o advogado José Armando Amado negou que sua família tenha arregimentado pistoleiros para atacar os indígenas, mas não cita o nome do cunhado Nelson Buainain Filho.

"Quando a minha irmã chegou lá [na fazenda Yvu] havia muita gente por lá. Ela foi na casa dela. Nunca teve tiros, nunca teve arma. O pessoal soltou foguete [fogos de artifício]. Minha irmã não usa arma. Não houve tiros dentro da nossa fazenda, os tiros foram dentro da reserva. Não houve tiro nem sangue na nossa fazenda. Agora, quem fez isso ninguém sabe", disse o advogado.

Amado declarou à reportagem que o procurador da República em Dourados, Marco Antônio Delfino de Almeida, tem que provar que seu cunhado arregimentou pessoas no ataque aos índios.

"O doutor Marco Antônio, antes de se formar em direito e prestar concurso para procurador, ele se formou em antropologia. Ele é antropólogo. Ele já declarou algumas vezes que, antes de ser procurador, ele é antropólogo. Se ele diz que o [Nelson] Buainain [marido de Silvana] arregimentou, ele tem que provar", disse o advogado da fazenda Yvu.

O conflito com os Guarani-Kaiowá em Caarapó explodiu um mês depois que a Funai reconheceu a Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1, com 55.590 hectares, em 12 de maio, dia em que a presidente Dilma Rousseff (PT) foi afastada do cargo para responder ao processo de impeachment que tramita no Senado Federal.

O processo de regularização da terra indígena ainda precisa passar pela demarcação dos limites e a homologação, a cargo da Presidência da República. Mas os índios estão temerosos com uma possível revisão dos atos no governo do presidente interino Michel Temer (PMDB). Os Guarani-Kaiowá retomaram cerca de nove propriedades, entre fazendas e sítios, que estão dentro do território tradicional da Dourados-Amambaipeguá 1.

Ao ser questionado sobre o reconhecimento da TI Dourados-Amambaipeguá 1 como território Guarani-Kaiowá pela Funai, onde está a área da fazenda Yvu, o advogado diz que "há uma tentativa de se corrigir um erro histórico cometendo outro".

"Se o governo entende que a sociedade brasileira tem uma dívida para com os índios, nós não podemos cometer um erro para corrigir um erro histórico. Você não pode tirar a terra do produtor rural comprada legitimamente. Nós não podemos querer corrigir um erro histórico prejudicando só um lado. Se o estado quer corrigir um erro do passado que ele próprio fez, que o faça de forma adequada", defende o advogado José Armando Amado.

A Amazônia Real tentou ouvir o procurador Marco Antônio Delfino de Almeida, mas ele disse que só poderia falar por meio da assessoria de imprensa do MPF em Mato Grosso do Sul. A reportagem tentou sucessivos pedidos de entrevista, mas a assessoria do ministério informou que o procurador está em viagem.

O perfil do procurador publicado na página do MPF não cita sua possível formação em antropologia, mas em uma rede social Delfino de Almeida diz que fez um mestrado em antropologia, entre 2012 e 2014, na Universidade Federal da Grande Dourados (MS).

Natural de Corumbá (MS), Almeida iniciou a carreira como procurador em 2006 em Altamira (PA), atuando em questões de direito ambiental e indígena. A experiência com os índios no Pará levou o procurador a se afeiçoar por este campo de atuação, que é de responsabilidade do Judiciário Federal. Antes do cargo de assumir o cargo de procurador, Almeida foi oficial da Marinha e auditor da Receita Federal.

"A possibilidade de atuar em ampla escala, junto àquelas populações, que padecem de invisibilidade social, é muito recompensador", declarou Marco Antônio em entrevista ao site institucional do MPF.

Depois do ataque na fazenda Yvu, o governo federal enviou homens da Força Nacional de Segurança à região de Caarapó e para o entorno da TI Dourados-Amambaipeguá 1. O procurador Marco Antônio Delfino de Almeida fez um acordo entre os índios Guarani-Kaiowá e os fazendeiros para evitar novos conflitos. No acordo, os índios prometeram que não fariam novas retomadas de fazendas.

Mas os fazendeiros quebraram o acordo. No dia 11 de julho, pistoleiros atacaram o acampamento do Tekoha Guapoy Guassu, que fica em uma área retomada de um sítio, dentro da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1. Segundo a Funai, três indígenas foram feridos. Como no ataque da fazenda Yvu, ninguém foi preso ainda pela Polícia Federal.

A omissão histórica

A decisão da reintegração de posse da fazenda Yvu, proferida pelo juiz Jânio Roberto dos Santos, da 2o Vara Federal de Dourados, diz que ele acatou pedido dos "legítimos proprietários" da área ocupada pelos índios Guarani-Kaiowá.

Enquanto o Estado brasileiro - incluindo o Poder Judiciário - não adota medidas para garantir aos povos indígenas o legitimo direito de posse de suas terras, novos ataques contra os Guarani-Kaiowá continuam a acontecer, como mostrou Amazônia Real na semana passada.

E este próprio estado é responsabilizado e criticado pelo magistrado de Dourados. Roberto dos Santos deu um prazo de 20 dias para que Funai cumpra sua sentença de devolver a fazenda Yvu para Silvana Raquel Cerqueira Amado Buainain.

O juiz Jânio Roberto dos Santos recomenda que a saída se dê de forma pacífica, mas assegura à Funai o direito de fazer o uso da polícia caso seja necessário. A desapropriação de áreas ocupadas por indígenas por meio da força policial já gerou cenas lamentáveis de confrontos em todo o país. Para Roberto dos Santos, toda essa situação em Caarapó poderia ter sido evitada se a Funai, nas palavras do magistrado, tivesse cumprido com seu papel constitucional de proteger e assegurar os direitos dos povos indígenas.

"Se há demora nesse processo [de regularização da terra] é por omissão do poder público federal (Funai e União) [...] Causa espécie, o poder público federal, que sabe existir um procedimento para a demarcação e entrega de terras aos indígenas, não intervir preventivamente para evitar o conflito e morte de pessoas como consequência de uma retomada temerária pelos próprios indígenas, sem aguardar o procedimento previsto em lei. [...] Nesse sentido, a Funai tem o dever/poder de se antecipar aos órgãos de segurança para que a questão indígena não se transforme em mero caso de polícia", escreve o juiz federal em sua sentença de reintegração.

As críticas à omissão do governo na questão dos Guarani-Kaiowá continua: "Deve-se antecipar até mesmo a uma atuação do Poder Judiciário e integrar os indígenas em sua política protetiva sem necessidade de provocação [da Justiça]."

Para embasar sua sentença, o magistrado recorreu ao debate teórico-jurídico de domínio e propriedade para definir quem está com direito neste tipo de litígio. Santos usa artigos da Constituição para ressaltar o direito de propriedade - tanto para índios como não-índios. Nas ciências política e jurídica, o direito de propriedade é apontado como uma das bases essenciais para o bom funcionamento do chamado estado democrático. Para seus críticos, trata-se de uma "concepção burguesa" pensada para assegurar regalias às elites tradicionais, em detrimento das camadas menos favorecidas.

Nesta discussão também surge o conceito de domínio que, para Roberto dos Santos, tem significado diferenciado do primeiro. "Domínio é conceito jurídico diferente de propriedade", afirma. Ele recorre ao livro "Direitos Reais" dos juristas Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosinaldo para conceituar estes dois termos jurídicos diferentes entre si, mas que ao mesmo tempo coexistem. "Um existe em decorrência do outro" afirmam os autores da obra.

"O direito subjetivo de propriedade concerne à relação jurídica complexa que se forma entre aquele que detém a titularidade formal do bem (proprietário) e a coletividade de pessoas. Nos bens imóveis nasce a propriedade através do ato do registro, que a tornará pública e exigível perante a sociedade [...] Assim, o domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade. Ele consiste na titularidade do bem [...] o domínio, como vínculo real entre o titular e a coisa, é absoluto", diz trecho do livro citado na sentença.

Para o juiz federal de Dourados, região de Mato Grosso do Sul conhecida pelos constantes conflitos entre indígenas e fazendeiros, "há equívocos ao confundir domínio com propriedade na questão indígena". Em sua avaliação, a não finalização do processo de demarcação da terra indígena Dourados-Amambaipeguá 1 ainda não assegura aos Guarani-Kaiowá o direito de posse da área onde está a fazenda Yvu, mesmo que ela esteja dentro dos limites do futuro território indígena, que ainda precisa da última fase: a demarcação a ser oficializada pela Presidência da República.

O trâmite mais recente foi a publicação, no "Diário Oficial da União" do dia 13 de maio, do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Dourados-Amambaipeguá 1. Este foi um dos últimos atos da então presidente Dilma Rousseff (PT), antes de ser afastada do cargo pelo Senado, em 12 de maio. "O decreto presidencial [do relatório circunstanciado] não possui natureza constitutiva, e sim declaratória, limitando-se a reconhecer direito preexistente dos índios que ali habitam", escreve o juiz Jânio Roberto dos Santos.

Em sua defesa na ação, a Funai afirmou que "o direito dos indígenas às terras que ocupam tradicionalmente não depende de demarcação". O argumento não convenceu o magistrado, que proferiu: "As terras objeto desse conflito, a fazenda, não estavam habitadas e nem ocupadas pelos indígenas no presente. Estavam ocupadas pelos proprietários com fulcro em direito de propriedade constitucionalmente protegido, como também são protegidas as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas."

O juiz Jânio Roberto dos Santos afirma que a discussão jurídica não é de propriedade, mas, sim, de posse. Por conta disso, conforme a sentença, Silvana Raquel Amado Buainain se constitui, neste momento, como a legítima dona da área, com a apresentação dos documentos que atestam a posse. Mesmo assim, afirma o juiz, isso não legitima o ataque de milícias formadas por fazendeiros da região contra os Guarani-Kaiowá, no último 14 de junho, como tentativa de expulsar os índios.

Ele defende que o ataque seja objeto de um inquérito criminal para se identificar e punir os responsáveis. Há duas semanas, a Justiça Federal em Dourados decretou sigilo nas investigações do atentado contra os Guarani-Kaiowá na fazenda Yvu. O segredo foi determinado como forma de "preservar provas e não prejudicar as investigações," diz o juiz Jânio Roberto dos Santos

A Funai recorre de decisão

A Funai foi notificada sobre a decisão de reintegração no último dia 11. Em resposta à Amazônia Real, a fundação disse que está recorrendo da decisão de reintegração de posse. Disse que a fazenda Yvu está dentro dos limites da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá 1, "já identificada e delimitada como terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas Guarani-Kaiowá, como preconiza a Constituição Federal".

Em nota divulgada em seu site, a Funai afirma que "é direito dos indígenas a posse plena e o usufruto exclusivo de suas terras tradicionais. A Constituição Federal, ao garantir aos indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, veio reconhecer um direito a uma situação preexistente, na tentativa de corrigir uma violência histórica e garantir o direito ao modo de vida diferenciado e à reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações indígenas."

A Funai diz ainda que todos os critérios técnicos e legais foram cumpridos no processo de identificação e delimitação do território dos Guarani-Kaiowá. O "longo processo", como descreve a fundação, foi baseado em estudos etnohistóricos, antropológicos, documentais, cartográficos e ambientais. "Nesse sentido, informa que irá adotar as providências jurídicas e administrativas cabíveis para a garantia dos direitos da comunidade indígena."

Sobre as críticas do juiz Jânio Roberto dos Santos magistrado à iniciativa dos índios de ocupar a fazenda Yvu -chegando a responsabilizar a fundação pela atitude -, a Funai afirma ser o órgão federal de "proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas", não se confundindo essa atribuição com a de tutela.

"Nesse sentido, não cabe à autarquia a responsabilidade sobre as autônomas decisões do povo indígena no que se refere às retomadas de seus territórios de ocupação tradicional", declara.

A nota ainda ressalta o reconhecimento da Funai da luta das populações indígenas de Mato Grosso do Sul por suas terras tradicionais. A Funai voltou a condenar o uso da força e da violência por parte dos fazendeiros para reprimir o movimento indígena no estado, e diz apoiar a polícia e a Justiça na investigação sobre o atentado na fazenda Yvu. Sobre os ataques mais recentes, o órgão declara que pediu às polícias Militar e Federal o reforço na segurança das áreas ocupadas pelos índios para se evitar novas mortes e feridos.

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