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A estrada da discórdia

O Globo, O País, p. 3
18 de Jan de 2009

A estrada da discórdia
Asfaltamento da BR-319, no coração da Amazônia, vira alvo de ataques de ambientalistas e divide ministros do governo Lula

Catarina Alencastro
Brasília

O asfaltamento da BR-319, rodovia que corta a Amazônia ligando Manaus a Porto Velho, virou motivo de polêmica, alvo de ambientalistas e pôs os ministros dos Transportes, Alfredo Nascimento, e do Meio Ambiente, Carlos Minc, em pé de guerra. A obra está prevista no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O orçamento para pavimentar a estrada, construída entre 1972 e 1973 e intransitável desde 1988, é de R$ 697 milhões.
Nascimento, que já foi duas vezes prefeito de Manaus, pressiona para tocar a obra, que impulsionará sua candidatura ao governo do estado em 2010. Minc teme que a rodovia provoque uma nova onda de desmatamento no que chama de coração da Floresta Amazônica. Para não perder a disputa, Minc fixou exigências ambientais. E as ações que terão de ser cumpridas, como condições para a concessão de licenciamento ambiental para o empreendimento, dobram o valor da obra.
Exigências dobram valor da obra
O custo das ações ambientais chega a R$ 653,5 milhões. Dez exigências constam do relatório final de um grupo de trabalho interministerial que, durante 90 dias, levantou ações preventivas para minimizar o impacto ambiental do asfaltamento. A lista é tão grande que fontes do Ministério do Meio Ambiente acreditam que elas podem até minar o projeto.
O documento, ao qual O GLOBO teve acesso, prevê a implementação de 29 unidades de conservação ao longo dos 819 quilômetros da rodovia, a construção de nove postos de fiscalização, além de um escritório do Instituto Chico Mendes, responsável pela gestão das unidades, em Manaus, e da contratação de 533 funcionários.
Elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente, pelo Instituto Chico Mendes e pelo Ibama, o texto foi aprovado pelo grupo de trabalho, do qual participaram os ministérios dos Transportes, Integração Nacional, Desenvolvimento Agrário, Minas e Energia, Incra, além da Universidade Federal do Amazonas, do Serviço Florestal Brasileiro e dos governos de Rondônia e Amazonas. A execução dessas medidas segue um cronograma que vai de janeiro deste ano a junho de 2010.
Para que o Ibama conceda a licença prévia, necessária para o governo lançar o edital de licitação, todas as 29 unidades, que somam 120,5 milhões de hectares, deverão estar funcionando, com sede provisória e pessoal. Segundo o relatório, os funcionários deverão ser contratados por concurso, mas, até lá, poderão ser empregados temporariamente servidores terceirizados e guardas-parque do Corpo de Bombeiros e da Polícia Militar.
Contrário à estrada e defensor de um projeto de ferrovia que não existe, Minc diz que essas exigências são inegociáveis. Ele compara a obra a Angra 3 - que recebeu recentemente licenciamento, segundo Minc, apesar de sua oposição ao projeto:
- Para não ser a estrada da devastação, tem que cumprir isso tudo. Vejo essa estrada como uma Angra 3.
Acho arriscada. Melhor uma ferrovia. Mas, se tudo isso for feito, haverá um dano ambiental reduzido.
Do conjunto de parques, reservas, florestas nacionais, estações ecológicas e reservas de desenvolvimento sustentável previstas, 11 são unidades federais. Quatro não saíram do papel, duas têm só um funcionário e outras duas, somente dois. No total, as unidades federais têm 24 funcionários, 185 a menos que o mínimo necessário, segundo o relatório. Entre as sete unidades esta duais do Amazonas, três foram implementadas, mas contam com duas pessoas. Em Rondônia, a situação é mais precária. Não há um só funcionário nas oito unidades de conservação criadas, no papel, nos anos 90.
Já funcionando, as unidades custarão R$ 200 mil por ano e mais R$ 100 mil anuais para monitoramento. Os custos serão incluídos no PAC.
Desmatamento pode chegar a 38%
Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) acreditam que a estrada gerará pressão migratória para o Oeste do Amazonas, atualmente sem ligação terrestre com o restante do país. Simulação feita pelo instituto indica que, com o asfaltamento da BR-319, o desmatamento no local atingirá até 2050 entre 25% e 38% da floresta, hoje preservada. Atualmente, o Amazonas responde por 4% do desmatamento da região.
Para o Greenpeace, a intenção da obra é eleitoral:
- A estrada não é necessária do ponto de vista econômico. A economia de Manaus, a produção do polo industrial da Zona Franca, já tem escoamento. A estrada só tem um interesse: o do ministro dos Transportes, que quer ser governador do Amazonas e vê na estrada a chance de ter bandeira política para se eleger. Isso se junta ao interesse da ministra Dilma (Casa Civil) de promover o PAC. Se a estrada for pavimentada, não vai haver plástica que dê jeito na região depois - diz Paulo Adário, diretor da Campanha Amazônia do Greenpeace.
A ONG Preserve Amazônia diz que falta estudo comparativo entre alternativas de transporte para ligar Manaus e Porto Velho. A ONG entrou com ação civil pública contra a União, alegando que o asfaltamento da BR-319 descumpre a resolução 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A ONG defende que um projeto ferroviário causaria menos impacto. O trem evitaria, argumentam ambientalistas, as chamadas "espinhas de peixe", estradas vicinais em torno de estradas de grande porte.
- Há um descumprimento da legislação ambiental. Deveria ter sido feita uma comparação entre os danos causados por uma ferrovia e por uma rodovia - reclama Marcos Mariani, presidente da organização.

Dnit: rodovia protegerá área da degradação

O Ministério dos Transportes não quis falar das divergências com a área ambiental do governo. Transferiu a tarefa ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O órgão alegou não estar preocupado com o custo das demandas ambientais para asfaltar a BR-319. Para o Dnit, o problema é o tempo. O atendimento dos pré-requisitos pode atrapalhar o cronograma elaborado para que a estrada esteja funcionando até o fim de 2011.
Segundo o coordenador-geral de Meio Ambiente do Dnit, Jair Sarmento, houve consenso no governo sobre a importância das medidas contra o desmatamento. Para ele, a região estará mais protegida com a estrada do que sem ela.
- As unidades de conservação constituirão um cinturão de proteção da rodovia, para evitar ocupação desordenada.
Haverá estancamento do desmatamento. O risco de a região se degradar sem a estrada é maior. Onde não há a presença do Estado, chegam as frentes pioneiras e vão devastando tudo - diz.
O desafio é atender aos critérios ambientais sem atrasar a obra. Hoje, 30 técnicos do Dnit estão no local levantando informações para o Estudo de Impacto Ambiental e para o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/Rima), exigido pelo Ibama para a concessão de licença prévia. O texto fora entregue ao órgão em novembro do ano passado e considerado incompleto. Até meados de fevereiro, o Dnit espera devolver o EIA/Rima e começar a obra em julho.
- Temos um tempo milimetrado em função da natureza da região. As águas começam a baixar em maio, e só se pode construir de junho até o fim de outubro. No ano que vem, teremos condições de concluir a estrada. A obra vai ser iniciada este ano - afirma Sarmento.
Para o diretor de licenciamento do Ibama, Sebastião Pires, é possível que isso aconteça, desde que toda a documentação seja apresentada e as condições ambientais, cumpridas.
- Depende mais do empreendedor do que da gente - diz.
Como as duas pontas da BR - cerca de 200 quilômetros próximos a Manaus e outros quase 200 quilômetros em Porto Velho - estão com o asfalto preservado, o licenciamento diz respeito aos 400 quilômetros entre essas extremidades.
O Dnit diz que comparou alternativas de transporte para ligar Porto Velho a Manaus e defende que a rodovia é uma vontade da população. Hoje, há duas opções para o escoamento de produção de Manaus para o centro do país e para o cidadão que deseja visitar um parente mais ao sul da região: de barco, viagem que leva de três a quatro dias, ou de avião, que não está ao alcance de todos.

O Globo, 18/01/2009, O País, p. 3

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