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Escravidão sem fim

O Globo, Economia, p. 23
26 de Out de 2011

Escravidão sem fim
OIT diz que Bolsa Família e fiscalização não conseguiram vencer o trabalho degradante

Geralda Doca
geralda@bsb.oglobo.com.br
Brasília

O principal programa de transferência de renda do governo, o Bolsa Família, e a fiscalização não têm sido suficientes para extirpar o trabalho escravo no Brasil. Estudo divulgado ontem pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) traçou, pela primeira vez, o perfil das vítimas do trabalho escravo no país. Elaborado a partir do depoimento de 121 trabalhadores resgatados entre 2006 e 2007, o estudo mostrou a baixa escolaridade dos resgatados e a falta de ações para criar oportunidades nas regiões que mais fornecem este tipo de mão de obra.
Em 67% das famílias de trabalhadores libertados, existiam crianças e adolescentes, sendo que 28% (quase um terço) delas eram beneficiárias do Bolsa Família. O levantamento revelou também que quase 60% dos trabalhadores resgatados no país já foram escravizados antes e que a fiscalização do governo conseguiu libertar apenas 12,6% do universo de trabalhadores nestas condições, de acordo os dados do Ministério do Trabalho.
A pesquisa apontou forte relação entre trabalho escravo e infantil no país: 92,6% do total de entrevistados começaram a trabalhar antes dos 16 anos. Na média, aos 11,4 anos, mas cerca de 40% já trabalhavam antes.
Segundo Luiz Antonio Machado, coordenador do projeto da OIT de combate ao trabalho escravo no Brasil, o Bolsa Família ajuda a reduzir a vulnerabilidade dos trabalhadores porque melhora a alimentação das famílias. Mas, por si só, não evita que os chefes dessas famílias se submetam a condições degradantes de trabalho, com cerceamento de liberdade - o que caracteriza o trabalho escravo.
- O Bolsa Família é insuficiente e a fiscalização não consegue cobrir todo o país ou mesmo os estados com maior concentração (da irregularidade) - afirmou Machado.
Agropecuária concentra trabalho escravo
Machado destacou que o alto índice de recorrência - 59,7% dos resgatados já haviam estado na situação de escravidão anteriormente - deve-se à falta de alternativas, restando aos trabalhadores sem qualificação nas áreas rurais apenas a "empreitada", que exige só força física. Segundo ele, também é preciso investir em campanhas de conscientização frequentes para estimular os próprios trabalhadores a fazerem a denúncia. Na maioria das vezes, eles são liberados no fim da empreitada sem receber pelo serviço.
A renda média declarada desses trabalhadores foi de 1,3 salário mínimo, sendo que 40% informaram ser o único responsável pela renda das famílias que têm, em média, 2,4 filhos.
Ele defende a necessidade de ações complementares para tornar as politicas mais efetivas. Entre elas, estimular a criação de empregos nos locais de residência dos trabalhadores e oferecer cursos de capacitação profissional.
De acordo com a pesquisa, 85% dos trabalhadores entrevistados, além de terem baixíssima escolaridade (analfabetos e com menos de quatro anos de estudo), nunca fizeram curso de qualificação. No entanto, 81,2% declararam que gostariam de fazer algum curso, principalmente os mais jovens (95,2% dos que têm menos de 30 anos). A preferência recai nas áreas de mecânica de automóveis, operação de máquinas, construção civil (pedreiro, encanador, pintor) e computação.
Maranhão, Paraíba e Piauí são os exportadores de mão de obra escrava para outros estados. Eles estão entre as principais origens dos trabalhadores resgatados em Goiás (88%) e no Pará (47%). No Mato Grosso e na Bahia, 95% deles eram da própria região.
Segundo a OIT, a agropecuária continua sendo o setor de maior concentração de trabalho escravo, sobretudo nas fazendas de cana-de-açúcar e produção de álcool, como é o caso do Pará; plantações de arroz (Mato Grosso); culturas de café, algodão e soja (Bahia); e lavoura de tomate e cana (Tocantins e Maranhão).
Segundo a pesquisa, o aliciamento se dá, na maioria dos casos, pela rede de relações pessoais; os "gatos" (aliciadores) e escritórios que funcionam como agências de emprego aparecem em segundo lugar. Em terceiro estão hotéis, pensões e locais públicos, como rodoviárias, estações de trem e ruas das cidades.
O conceito de trabalho escravo apontado pela OIT considera, além das condições precárias (falta de alojamento, água potável e sanitários, por exemplo), cerceamento à liberdade pela presença de homens armados, dificuldades de acesso às fazendas e dívidas contraídas de forma forçada pelos trabalhadores para pagar alimentação e despesas com ferramentas usadas no serviço.
O Ministério do Trabalho informou que a pasta não comentaria a pesquisa porque o responsável pela área de fiscalização estava incomunicável ontem.

Quem escraviza é jovem, bem formado e filiado a partidos

BRASÍLIA. A pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o perfil das vítimas de trabalho escravo definiu também quem são os fazendeiros acusados de explorar esse tipo de mão de obra. Com base na chamada Lista Suja do Ministério do Trabalho e nos depoimentos de 12 dos 66 contactados, que aceitaram participar do estudo, a entidade concluiu que a maioria deles nasceu no Sudeste, tem boa formação (curso superior completo) e é filiada a partidos políticos.
Com idade média de 47,1 anos e cor branca, a maioria nasceu em cidades de Rio, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo e optou por residir próximo às fazendas, nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste.
Formados em Administração de Empresas, Engenharia Agrônoma e Medicina Veterinária, declararam como ocupação serem pecuaristas, fazendeiros, administradores, comerciantes e veterinários. Alguns dos entrevistados informaram ser filiados ao PMDB, ao PSDB e ao PR. A maioria deles disse não acreditar na existência de trabalho escravo no Brasil.
Quem está na Lista Suja do governo fica impedido de tomar crédito em instituições públicas federais - iniciativa destacada no estudo da OIT.
Os aliciadores (gatos) também têm baixa escolaridade como os aliciados e idade média de 45,8 anos. A maior parte nasceu no Nordeste e vive nas regiões Norte e Centro-Oeste.
Além de entrevistas com os envolvidos, a OIT utilizou os dados do Ministério do Trabalho, entre 2002 e 2007, quando foram resgatados 9.762 trabalhadores. (Geralda Doca)

O Globo, 26/10/2011, Economia, p. 23

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