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"Direito não se negocia, se aplica"

Valor Econômico - https://valor.globo.com/
Autor: Daniela Chiaretti e Fernando Taquari
17 de Fev de 2020

Há um ano Joênia Batista de Carvalho, advogada, 45 anos, formada pela Universidade Federal de Roraima e com mestrado na Universidade do Arizona, ocupa o gabinete 231, no anexo IV da Câmara dos Deputados. O espaço é concorrido - em 2019, a deputada do Rede Sustentabilidade recebeu mais de 100 pedidos de entrevista, da BBC a uma TV chinesa. O número 231 foi escolhido a dedo pela parlamentar conhecida por Joênia Wapichana, a única deputada indígena: trata-se do artigo da Constituição que reconhece a organização social, os costumes, as línguas, crenças, tradições e o direito à terra dos índios.

Nos últimos dias, sua agenda ficou mais concorrida depois da assinatura do projeto de lei 191/2020 pelo presidente Jair Bolsonaro. O projeto propõe a abertura de terras indígenas à mineração e exploração de petróleo e gás. "Infelizmente, a Constituição de 88 não é cumprida, não é conhecida e tem sido desrespeitada", diz Joênia, que em 2019 recebeu o prêmio de Direitos Humanos da ONU, o mesmo concedido a Martin Luther King e Nelson Mandela.

Em bom português, Joênia diz que "garimpo é ilegal", e "regularizar a ilegalidade não é solução constitucional". Refuta a informação de que os índios estejam divididos quanto ao PL 191/2020. Sustenta que esse discurso surge dos que têm interesse na exploração mineral em terras indígenas. A advogada afirma que o arrendamento dessas terras, iniciativa que ruralistas perseguem há anos e é outro foco de pressão, "é ilegal e inconstitucional."

Em sua estreia no parlamento, Joênia, foi autora ou co-autora de 14 projetos, decretos e propostas de emenda constitucional. Ela identificou olhares de estranheza ao circular pelos corredores do Congresso com colares de sementes ou brincos de penas usados pelos wapichana e outros povos indígenas. Ela qualifica a miopia de quem reage negativamente ao ver índios usando celulares ou relógios. "Um problema colonial", diz, de quem vê o índio como "um ser a ser domesticado, inferior, sem lei ou religião". E emenda: "O fato de eu ser cidadã brasileira, conhecer a situação política do país e saber dos meus direitos tampouco tira minha identidade indígena".

Joênia diz que a interlocução com a bancada ruralista é a de "falar quando tem que falar". "Se vierem com argumentos, eu tenho os meus, eles, os deles. O meu posicionamento é que direito não se negocia, se aplica."

Os índios querem respeito e a garantia de seus direitos, observa a deputada. É o caso da polêmica em torno do linhão que deve trazer energia de Tucuruí e interligar Roraima ao sistema elétrico nacional A obra foi bloqueada, segundo ela, não por culpa dos waimiri-atroari. Ela qualifica de "desrespeitosa" a decisão de se nomear um missionário evangélico para chefiar o órgão de proteção aos índios isolados na Funai. "O Estado brasileiro é laico, sem sobreposição de uma religião pela outra. Os indígenas isolados vivem no período em que vivem, sem vontade de contatar."

Sobre as falas depreciativas de Bolsonaro ao se referir aos índios, acredita tratar-se de um "ódio interno" e "um certo sonho de colonizador". "O presidente não respeita ninguém. Não respeita a Constituição, imagine um senhor de 89 anos", diz Joênia, referindo-se ao fato de Bolsonaro ter afirmado, em discurso na ONU, que o cacique Raoni não é uma liderança.
O fato de ser uma cidadã brasileira e saber os meus direitos não tira minha identidade indígena"

O líder caiapó é referência pela sua trajetória de defensor dos direitos indígenas, assinala a deputada. Os índios, explica, aprendem cedo a respeitar os mais velhos. Foram eles que aconselharam as gerações mais novas a estudar para conhecer os argumentos dos não-índios e a defender seus povos. Foi então que a luta indígena se tornou técnica. "Se antes lutávamos com flecha, hoje é por meio da caneta e do acesso aos livros". A seguir, os principais trechos da entrevista da deputada ao Valor.

Valor: O que a motivou a entrar na política?

Joênia Wapichana: Foi a decisão de uma coletividade. Fui apontada em uma assembleia indígena em Roraima. A estratégia era nos garantir representatividade em um espaço tão significante para o Brasil em termos de tomada de decisão.

Valor: Por que escolheu o Rede?

Joênia: Avaliamos, com outras lideranças, vários partidos em busca daquele que mais se aproximasse da defesa dos direitos dos povos indígenas. Encontrei no Rede definições de princípios que se aproximam da causa, como a questão da demarcação das terras, sustentabilidade, discussão de energias alternativas, respeito aos direitos humanos e defesa da democracia. É um partido sem casos de corrupção e sem ligação à velha política.

Valor: Como foi o primeiro ano de mandato?

Joênia: Foi um ano de desafios. O mandato me impulsionou a reagir. Através dele aprendi e estabeleci relações com outros parlamentares que podem ajudar nas causas indígenas. Queria que este mandato fosse de opinião, proposição e manifesto.

Valor: Qual foi a maior vitória?

Joênia: Ajudar a derrubar a proposta do Bolsonaro de colocar a Funai nas mãos dos ruralistas. Asseguramos que a Funai continuasse no Ministério da Justiça, com o dever institucional de demarcar as terras. É algo com muito significado para nós, indígenas.

Valor: Já se passaram mais de 30 anos desde a promulgação da Constituição. O texto ainda atende às demandas dos índios?

Joênia: A Constituição não é cumprida, conhecida e respeitada. Seus efeitos têm sido postergados, como quando determinou que a demarcação das terras indígenas fosse concluída cinco anos após sua promulgação. Estamos em débito com os povos indígenas, uma dívida histórica para sanar todo o processo de colonização e racismo. Infelizmente, a Constituição também nos fragiliza ao deixar brechas para o que vemos hoje, como a tentativa de regularizar a mineração. Os indígenas hoje têm conhecimento de seus direitos e falam que a Constituição é o básico do básico em relação às garantias.

Valor: Os índios estão divididos em relação à exploração econômica de suas terras?

Joênia: Essa divisão não vem dos indígenas, mas dos que detêm interesses na exploração dos recursos naturais. Isso reduz os indígenas a objetos de exploração em suas terras, como se não houvesse alternativa para exercerem a cidadania, o direito à educação, saúde, economia e a desenvolver seus projetos produtivos. Quem criou essa divisão foi quem tenta emplacar esse tipo de pensamento. A maioria dos índios defende a coletividade e o bem comum e tem outra visão, que é possível conciliar desenvolvimento sem destruir a Amazônia, provocar impacto aos povos indígenas ou violar direitos.

Valor: O que pensa sobre o arrendamento de áreas indígenas para o agronegócio?

Joênia: Arrendamento é inconstitucional. A Constituição já respondeu a essa questão quando diz que terra indígena é um bem inalienável e indisponível, justamente para que não se ceda a pressões que tentam dividir os indígenas.
Se antes lutávamos com flecha, agora é com a caneta, com o acesso a livros. Nossa luta hoje é de forma técnica"

Valor: O projeto de mineração permite plantio de soja transgênica em terras indígenas. O governo sempre cita o caso dos índios pareci, no Mato Grosso, como exemplo.

Joênia: Cada povo tem uma história diferente. Os pareci têm a sua. O que importa dizer é que os povos indígenas têm uma relação com a terra de proteção e uso coletivo. A Constituição protege esse direito. Historicamente fazemos plantação orgânica. Outras interferências, que cresceram ao longo do tempo, foram externas. Os pareci vinham denunciando essa prática. Como não houve uma política eficiente que protegesse suas terras de invasões e do avanço do agronegócio, da soja transgênica e dos agrotóxicos, eles não viram outra alternativa a não ser ceder a essa pressão. Isso fica de alerta.

Valor: Como assim?

Joênia: Se não tivermos políticas públicas eficientes para conter invasões, o assédio aos povos indígenas e essa pressão sobre os recursos naturais, isso resultará em impacto futuramente.

Valor: O que a senhora diz do discurso de que comunidades indígenas representam empecilho ao desenvolvimento econômico?

Joênia: É possível conciliar desenvolvimento sustentável e respeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Basta ter vontade política para termos projetos eficientes e inclusivos. O planejamento não deve ver os índios como empecilho, mas como solução de muitas questões. Os indígenas têm mostrado o uso sustentável das terras há milhares de anos. O que falta é o respeito a essas diferenças culturais. Com sua biodiversidade e riqueza, a Amazônia poderia ser valorizada com parcerias e os nossos conhecimentos.

Valor: Essa parceria não parece factível no momento.

Joênia: Sim, o que vemos é o contrário. Uma preocupação com o avanço da mineração, do arrendamento, das hidrelétricas, da abertura de ferrovias e que não considera os povos indígenas como detentores de conhecimento e tampouco parceiros. Isso gera conflitos fundiários e de direitos.

Valor: Há risco de o governo recorrer à política do fato consumado para legalizar o garimpo em terras indígenas?

Joênia: Se dependesse do presidente, ele já teria feito. Vamos lutar para que não chegue a esse extremo. Regularizar a ilegalidade não é uma solução constitucional e representa um verdadeiro retrocesso dos direitos humanos, indígenas e ambientais. É um risco que o Brasil, como Estado democrático de direito, não deixará chegar a esse ponto. Tem que combater a ilegalidade. Garimpo é ilegal. Não há base constitucional para essa regulamentação. O que a Constituição assegura é a regularização da mineração. São coisas diferentes.

Valor: Por que muitos reagem negativamente quando veem índios com celular e relógio de pulso? O índio deixa de ser índio?

Joênia: Fomos historicamente pensados como escravos. Um ser inferior, sem lei ou religião. Os povos indígenas resistiram, sobreviveram e hoje têm outra realidade. Nos apropriamos da língua portuguesa para poder conhecer nossos direitos. O fato de ser uma cidadã brasileira, conhecer a situação política do país e saber dos meus direitos tampouco tira minha identidade indígena.

Valor: O presidente declarou que "o índio está evoluindo e cada vez mais é um ser humano igual a nós".

Joênia: O que ele tem é um ódio interno, certos sonhos de colonizador, de querer fazer com que as terras indígenas sejam degradadas e que haja a extinção dos povos. É isso que entendo cada vez que ele abre a boca para falar dos índios. Nenhum outro presidente ou chefe de um país costuma falar esse tipo de coisa. É o mínimo de respeito que ele deveria ter conosco, reconhecer nossos direitos presentes na Constituição. Acredito que muitas pessoas, vendo esse comportamento do presidente, se acham no direito de repetir e encorajar essa prática.

Valor: Muitos indígenas estão se formando em universidades. Que carreiras eles buscam mais?

Joênia: Quando me formei, já tinha 20 advogados indígenas. Avançou-se muito nas políticas públicas e nas cotas. Muitos são professores, há quem estude antropologia, comunicação social, medicina. Só no meu Estado há dois ou três médicos indígenas. As lideranças mais velhas falaram que tínhamos que preparar os jovens para assumir e lutar de forma técnica. Se antes lutávamos com flecha, hoje é por meio da caneta, do acesso aos livros e do poder da argumentação em cima do que os brancos aprovaram. Mas há situações diferentes.

Valor: Quais?

Joênia: De indígenas isolados e sem contato, ou os que querem aprender para poder se defender, como os ianomâmi. O pessoal quer aprender português, mas não quer esquecer a língua materna. Tudo tem que ser de acordo com a organização social da comunidade, jamais impor valores e desrespeitar a cultura indígena.

Valor: O que acha da decisão do Ministério da Justiça de nomear um pastor evangélico para a coordenação de índios isolados da Funai?

Joênia: Foi uma decisão desrespeitosa com uma política específica e diferenciada. Isso nos traz preocupação. O Estado brasileiro é laico, sem qualquer sobreposição de religião. Os indígenas isolados vivem no período em que vivem, sem vontade de contatar. O que temos que fazer é proteger e ter a melhor política para que não sofram o que já passamos.

Valor: Como tem sido a interlocução com o governo Bolsonaro?

Joênia: Quando preciso conversar eu marco audiências, mas não tem muito de eles me chamarem, não. De vez em quando, tem uma conversa em audiência na Câmara, eu de um lado questionando por alguma violação dos direitos, e o outro lado respondendo. Estou aberta ao diálogo. Já estive com alguns ministros. Em dezembro, por exemplo, estive com o ministro [Sergio] Moro falando sobre as invasões de terras e as providências que a Polícia Federal adota ou não.

Valor: Roraima tem muitos povos indígenas e um histórico de conflito com os brancos. A construção de um diálogo está no horizonte?

Joênia: A história do conflito foi mais do branco contra o índio. Os índios perderam muito. Roraima foi o último Estado a ser colonizado e os povos indígenas foram resistentes. Temos ali uma situação única no Brasil: 46,7% das terras indígenas de Roraima pertencem oficialmente aos povos indígenas. Ainda falta demarcar cinco terras. Tem Raposa Serra do Sol, que se tornou um caso emblemático. Temos o povo ianomâmi, que está sofrendo com a invasão de mais de 20 mil garimpeiros. Temos mais de 10 grupos isolados, uma situação complicada em áreas de fronteira. Tivemos bastante visibilidade por causa desses conflitos. Agora há uma realidade que tem que ser incluída no planejamento de governo. Não dá para planejar colocando, por exemplo, 60% para o agronegócio porque se sabe que 46,7% de Roraima é terra indígena.

Valor: Isso é possível?

Joênia: Sim. Os indígenas possuem diversas práticas produtivas que poderiam ser levadas em conta. Tem que se ver os povos indígenas com outro olhar. Um olhar de investimento e não de empecilho.

Valor: Roraima é o único Estado do Brasil sem interligação ao sistema elétrico. Há uma questão que se arrasta, do linhão sobre território waimiri-atroari. É possível resolver isso no curto prazo?

Joênia: Os waimiri-atroari, em nenhum momento, disseram que são contra. Essa demora toda não foi culpa dos indígenas, mas do governo que não soube respeitar direitos. Os índios falaram: queremos um processo legal, que respeite nossos direitos de ter uma consulta livre, prévia e informada. E um processo que respeite todos os procedimentos, que informe o que vai acontecer. Porque uma coisa é passar uma linha de transmissão de internet, fibra ótica, onde se cava 1,5 metro no chão e passa o fio. Outra é colocar torres ao longo de 120 quilômetros.

Valor: Os índios, então, não são o obstáculo?

Joênia: Tem que haver relatório e estudo de impacto ambiental condizente. Vai se passar no meio de comunidades indígenas que quase foram massacradas na época em que abriram a BR 174 [rodovia que liga Boa Vista a Manaus]. Há ali um histórico de conflito que não foram os povos indígenas que iniciaram. Foi a prática, em nome do desenvolvimento que não entende que existem comunidades indígenas que merecem ser ouvidas, consultadas e informadas. Se tiverem que ser indenizados, que indenizem. Se tiver que haver medidas de mitigação, mitiguem. O processo tem que estar correto. Mas não foi assim, e aí começou essa chuva de ações judiciais movida pelo Ministério Público. A culpa não é dos índios, mas de quem não respeita direitos indígenas.

Valor: Como tem sido a interlocução com a bancada ruralista?

Joênia: A gente fala quando tem que falar. Em audiência. Se vierem com argumentos, eu tenho os meus, eles, os deles. O meu posicionamento é que direito não se negocia, se aplica.

Valor: O cacique Raoni foi criticado por Jair Bolsonaro na ONU, em setembro. O que pensa disso?

Joênia: O presidente não respeita ninguém. Não respeita a Constituição, imagine um senhor de 89 anos. Eu aprendi cedo que os mais velhos merecem respeito. O cacique Raoni é considerado o "vovô" indígena, o que para nós é muito forte. "Vovô" é o que lutou na Constituição, que foi para Brasília e para fora das terras falar da nossa realidade. A trajetória dele foi a de um verdadeiro defensor dos direitos dos povos indígenas. O cacique Raoni é uma liderança respeitada e conhecida. Quando ele foi para fora do país tornou a causa indígena um caso emblemático.

Valor: Há uma escalada na morte de índios na defesa das terras?

Joênia: Este mandato de Bolsonaro é marcado pelo retrocesso, aumento da violência, falta de respeito. Há vários casos de violência e mortes. Agora em janeiro foi lá na Terra Araribóia, nos guajajara. Mas há casos em Roraima, no Amazonas, no Sul, em São Paulo. Aumentou muito a violência contra os povos indígenas. Acredito que muitos destes casos são fruto da impunidade. O governo, que é responsável por demarcar as terras indígenas, não está demarcando, pelo contrário, paralisou todos os processos. Nenhum caso denunciado foi punido. Lideranças indígenas estão ameaçadas e algumas, criminalizadas. Estamos vendo perseguições a lideranças e uma inversão a quem realmente tem direito. É grave, é preocupante e, acima de tudo, é injusto.

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