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Congresso do Peru revoga leis sobre selva

FSP, Mundo, p. A14
19 de Jun de 2009

Congresso do Peru revoga leis sobre selva
Decretos que regulamentavam exploração da Amazônia levaram a conflito com indígenas, que pediam para ser consultados
Depois de adotar retórica dura em que acusou índios de "selvagens", presidente Alan García recua e afirma que "quem ganha é o Peru"

Flávia Marreiro
Enviada especial a Bágua Grande (Peru)

O Congresso unicameral do Peru aprovou ontem a revogação de dois decretos do presidente Alan García sobre a exploração da Amazônia. A anulação era uma exigência do movimento indígena da selva peruana, que só foi aceita por Lima depois de mais de dois meses de protestos e um confronto violento que deixou ao menos 34 mortos no norte do país no último dia 5.
A cidade de Bágua Grande, na Amazônia peruana, um dos palcos do conflito do começo do mês, ainda não voltou à normalidade. Com a região ainda sob toque de recolher, comércios e casas do município acompanharam pela TV o debate no Parlamento que determinou o placar de 72 a 12 a favor da revogação. Lamentavam que a decisão só fosse tomada 13 dias depois do confronto.
O governo aceitara revogar os decretos 1.090, ou Lei Florestal e da Fauna Silvestre, e o 1.064, que cria novo regime jurídico para atividades agrícolas, na segunda-feira, após reunião com indígenas na selva central. Anteontem à noite, o presidente conservador Alan García , em pronunciamento em cadeia de rádio e TV, admitiu que os decretos foram feitos sem ouvir as comunidades amazônicas e pregou a reconciliação do país. Desgastado pela maior crise de seu governo, arrematou: "Não há derrotados nem vencedores. Ganha o Peru".
A ausência de consulta para decretos sobre a Amazônia era a principal reclamação do movimento indígena amazônico há um ano e tomou forma de protestos nacionais desde abril. Eles apontavam descumprimento da convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), adotada pelo Peru, que prevê a consulta em caso de leis que afetem as populações originárias.
O pacote de dez decretos sobre a Amazônia está entre mais de cem baixados por García em maio de 2008, quando foi autorizado pelo Congresso a legislar por decreto para adaptar leis do país ao Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EUA.
Desde então, o presidente e ministros vinham repetindo que a nova legislação amazônica era essencial para o TLC, embora críticos do governo apontassem que o pacote legal ia muito além do exigido por Washington.
Após o conflito violento no norte, seguido da dura e criticada retórica de García, que repetia que os "selvagens" indígenas queriam impedir o desenvolvimento do Peru, as declarações foram suavizadas, e o Ministério do Comercio Exterior divulgou que "os EUA apoiavam uma solução de diálogo" para o conflito.
"O único que se falava era que havia preocupação com madeireiras ilegais e com trabalho forçado. Nunca se explicou bem nos decretos quais eram as exigências [dos EUA] e que partes eram interesse próprio do governo", disse ao jornal "El Comércio" Alfredo Ferrero, que era Ministro de Comércio e Turismo do governo Alejandro Toledo (2001-2006), quando foi assinado o acordo.
Segundo indígenas, ativistas e a oposição, os decretos anulados ameaçavam os recursos naturais e as terras indígenas. Um dos pontos mais criticados era o trecho que permitia ao governo mudar o zoneamento amazônico, de área de preservação para de uso agrícola, argumentando "interesse nacional".
Agora, o governo tem pela frente delicada agenda com o movimento indígena amazônico após uma coordenação nacional inédita em anos recentes. Além dos decretos, as lideranças rejeitam as concessões a petroleiras e mineradoras.
A mobilização também despertou demandas dos indígenas da cordilheira dos Andes.

Número de índios mortos segue obscuro

Da enviada a Bágua Grande

Ontem pela manhã, Dina Castillo Padilla, 24, fazia parte do grupo ansioso que esperava a chegada do relator da ONU para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya, ao centro paroquial de Bágua Grande.
Até o começo da semana, o centro da Igreja Católica ainda abrigava parte dos 800 indígenas que fugiram para lá após o sangrento confronto entre policiais e manifestantes durante ação de desbloqueio de uma das principais estradas da região.
Oficialmente, o saldo total de mortos na região foi de ao menos 34, 24 policiais e dez civis. Treze dias depois, a contabilidade das vítimas segue contestada.
O irmão de Dina não estava entre os refugiados no centro paroquial. Ela disse que contaria ao relator da ONU que seu irmão de 16 anos estava preso, acusado de portar arma no conflito.
Dina veio de Lima, onde trabalhava como empregada doméstica. "Pedir desculpas depois de tudo que passou? Agora eu já perdi meu emprego, não sei se vou continuar a estudar?", reclama ela, ao comentar o recuo do presidente Alan García.
Outros parentes de indígenas presos formavam o maior bloco do grupo de 20 pessoas que esperava Anaya. Apesar de dirigentes indígenas falarem de 500 desaparecidos, não havia parentes deles ontem no centro paroquial Bágua Grande, a principal cidade na região, que abriga dezenas de comunidades aguajuna e wampi.
"Não foram só dez mortos civis, seis indígenas, como o governo diz. Eles nunca nos deixaram entrar ao local do confronto. Só dois dias depois", disse Sugkip Yagkikat, 37, da etnia guarajuna.
Yagkikat estava na curva do Diabo, ponto na estrada bloqueado pelos manifestantes até 5 de junho, a 17 km de Bágua Grande. Foi nesse dia que a policia resolveu desalojar os indígenas. Houve confronto, ao menos 155 feridos, e a noticia se espalhou.
A cerca de 60 km dali, manifestantes ocupavam estação da PetroPeru, e, ouvindo as noticias do confronto, mataram nove policiais em vingança. A violência se espalhou pelo centro de Bágua Grande e pela cidade de Bágua, a outros 60 km dali, que tiveram seis mortos cada.
Varias pessoas na cidade mostram-se confusas e assustadas com os rumores de centenas de mortos de indígenas. A Defensoria do Povo,a ouvidoria nacional peruana, não achou nenhum corpo, mas só foi autorizada a vistoriar os locais dos crimes dois dias depois.
"Foi um trauma. Ver as pessoas feridas, buscar carros para socorrê-las. Até o nome das cidades eles confundem. Lima não conhece a Amazônia. Vamos ter uma voz única agora", diz Fortunato Muñoz, da Câmara de Comercio de Bágua.

FSP, 19/06/2009, Mundo, p. A14

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