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Civilização do Xingu tinha estradas e pontes

Folha de São Paulo, Ciência, p. A14
Autor: CÁSSIO LEITE VIEIRA
19 de Set de 2003

Resumo: Uma pesquisa realizada pela Universidade da Flórida, o Instituto Max Planck (Alemanha), o Museu Nacional (RJ), o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Associação Indígena Kuikuiro do Alto Xingu defende a idéia de que no final do século 15 a região do Alto Xingu sofreu uma pronfunda transformação por mãos humanas. De acordo com o estudo, nesta época surgiram aldeias gigantescas, densamente habitadas e interligadas por estradas, o que contradiz a hipótese de que a Amazônia era intocada e habitada por povos indígenas pequenos, isolados, e móveis quando os europeus chegaram.

Civilização do Xingu tinha estradas e pontes
Estudo diz que índios amazônicos construíram grandes aldeias antes de 1500 e ataca mito da floresta intocada

Um artigo publicado hoje na revista americana "Science" (www.sciencemag.org) deve ajudar a abalar mais um pouco a idéia de uma Amazônia intocada e habitada por tribos pequenas, isoladas, igualitárias e móveis na época do Descobrimento.
Na realidade, uma extensa intervenção humana no ambiente e construções monumentais refletem melhor o que acontecia na região amazônica por volta de 1500. Além das evidências que apresenta para defender essa nova visão da "pré-história" nacional, o trabalho traz ainda uma peculiaridade extra em sua lista de autores: os nomes índios Afukaká Kuikuro e Urissapá Tabata Kuikuro, algo inédito em pesquisas brasileiras.
O cenário esboçado pelos autores é o seguinte: no final do século 15, o Alto Xingu -uma língua de floresta amazônica que penetra pelo norte de Mato Grosso e onde estão os formadores do rio Xingu- sofreu uma profunda transformação por mãos humanas.
Surgiram aldeias gigantescas (algumas com área de até 500 mil metros quadrados), densamente habitadas (até 5.000 pessoas), interligadas por estradas que chegavam a 5 quilômetros de extensão e 50 metros de largura.
Esses complexos regionais incluíam ainda represas, pontes, aterros e fossas, entre outras estruturas artificiais. Era o ápice de um processo que tivera sua origem cerca de cinco séculos antes.

Aldeias fortificadas
Algumas aldeias eram fortificadas, com paliçadas e valas semicirculares de até 5 metros de profundidade e 2,5 quilômetros de extensão. Acredita-se que a função dessas construções fosse a defesa. A distância média entre as aldeias (5 km) e a presença de estradas de ligação entre elas reforçam a idéia de que a ameaça vinha de fora. A suspeita recai sobre tentativas de invasão por povos de língua jê, tupi-guarani ou caraíba.
Em todas as aldeias havia uma área central (praça) para a qual convergiam caminhos. Isso dava ao conjunto uma estrutura radial que pode ser vista até em imagens de satélite e fotos aéreas utilizadas pelos autores.
Para provar que a maioria desses conglomerados de aldeias já estava na região entre os anos 1250 e 1400, os autores apresentam uma lista de peças arqueológicas datadas pelo método do carbono-14, que fornece a idade das amostras com base na quantidade de uma forma radioativa do elemento químico carbono.
A força do artigo reside principalmente em seu perfil multidisciplinar. O trabalho uniu especialistas em antropologia, linguística e arqueologia ao conhecimento nativo e à alta tecnologia.
O mapeamento da extensão das aldeias e estradas só foi possível com o uso de GPS (Sistema de Posicionamento Global), um equipamento que dá as coordenadas e a altitude de qualquer ponto sobre a superfície terrestre. Esse GPS de alta precisão só foi liberado para uso civil em 2000 por militares norte-americanos.
"Com ele, fiz em dias o que antes levava meses", diz o antropólogo Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida (EUA) e autor principal do artigo.

Monumentalismo
Mas por que tamanha ostentação nas construções? Heckenberger defende que a resposta seja o que ele denomina "estética do monumentalismo", uma cultura estabelecida ainda pelos povos colonizadores do Alto Xingu e que se fortaleceu no final do século 15, com as aldeias fortificadas. Essa tradição cultural teria permanecido como um tipo de roteiro que permeia até hoje a história xinguana, mesmo que o cenário e os atores tenham mudado ao longo dos séculos.
É possível que, ao longo dos séculos, a praça central tenha sido o local onde se amalgamou a cultura xinguana. É nesse espaço que, ainda hoje, ocorrem os rituais intertribais, como o quarup, uma homenagem ao mortos.
A monumentalidade das aldeias e estradas vai contra a hipótese de que, em geral, as sociedades amazônicas eram, na época do descobrimento, pequenas, dispersas, isoladas, móveis e igualitárias. Esse é um resumo das idéias de Betty Meggers - um dos nomes mais influentes da antropologia nos Estados Unidos- no livro "Amazônia - A Ilusão de um Paraíso" (Itatiaia/Edusp, 1987).
As evidências que foram apresentadas no artigo da "Science" pintam um quadro com outros elementos: sedentarismo (grandes aldeias), integração regional (estradas), acomodação interétnica (multietnia) e ideologia hierárquica (distinção entre linhagens de chefes e não-chefes).
"O estudo dos rituais intertribais reforça a idéia de uma sociedade híbrida e hierarquizada ao longo do processo de formação da cultura xinguana", diz outro autor, o antropólogo Carlos Fausto, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional (RJ).
Para Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo do Museu Nacional, o artigo apresenta pesquisas que confirmam, de modo eloquente, hipóteses que vários especialistas vêm formulando já há algum tempo sobre a ecologia histórica e a fisionomia sociopolítica da Amazônia pré-colombiana.
"Os elementos substantivos do artigo estão entre os mais bem caracterizados pela pesquisa arqueológica recente na Amazônia, tornando algo desnecessária, em minha opinião, a adjetivação um tantinho carregada ["dramática", "aguda", "paisagem amplamente transformada pela presença humana'] que os envolve", diz.

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