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Censurável reação do Brasil

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: PIOVESAN, Flávia
19 de Mai de 2011

Censurável reação do Brasil

Flávia Piovesan

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou ao Estado brasileiro a adoção de medidas urgentes para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, recomendando a imediata suspensão do processo de licenciamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, até que fossem observadas condições mínimas, como a realização de consulta prévia, livre e informada com as comunidades afetadas. Determinou, ainda, fosse assegurado o amplo acesso ao estudo de impacto socioambiental do projeto, bem como fossem adotadas medidas para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas. No local há 30 terras indígenas com 24 povos e línguas diferentes, que poderão sofrer graves riscos socioambientais - especialmente as comunidades tradicionais da bacia do Xingu, que pode vir a ficar praticamente sem água com o desvio do rio.

O Estado brasileiro qualificou a decisão da Comissão Interamericana como "precipitada e injustificável". Em 30 de abril, matéria publicada no jornal "Folha de S.Paulo" ressalta que, em ato de retaliação ao sistema interamericano, entre outras medidas, a presidente Dilma teria retirado, em caráter irrevogável, a candidatura do ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Vanucchi à Comissão Interamericana. ("Dilma retalia OEA por Belo Monte e suspende recursos", "Folha de S.Paulo").

A reação do Estado brasileiro assume acentuada gravidade por converter a discordância e a insatisfação com a medida tomada pela Comissão da OEA em inaceitável ataque ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Este sistema salvou e continua salvando muitas vidas, oferecendo uma extraordinária contribuição para a promoção dos direitos humanos, do estado de direito e da democracia em nossa região. Permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas; e agora demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o necessário combate às violações de direitos e proteção aos grupos mais vulneráveis.

Em 24 de março, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, ao votar a favor da designação de um relator especial para investigar denúncias de violações de direitos humanos no Irã (rompendo com uma política internacional de oito anos marcada pela reiterada abstenção), o Brasil sinalizou a sensíveis transformações na política externa brasileira - celebradas pela cúpula da ONU e por ONGs. A embaixadora do Brasil junto à ONU esclareceu: "O voto não é contra o Irã, mas a favor do sistema de direitos humanos da ONU", acrescentando que o Brasil encorajará a "aplicação dos mesmos padrões a outros possíveis casos de não cooperação com o sistema de direitos humanos da ONU". A presidente Dilma tem enfatizado o tema dos direitos humanos como foco da política externa brasileira, "a ser promovido e defendido em todas as instâncias internacionais sem concessões, sem discriminações e sem seletividade".

A preocupante resposta brasileira no caso Belo Monte constitui um retrocesso, culminando em agressiva afronta à tão aclamada cooperação com os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Viola tanto as regras do jogo internacional - aceitas pelo Brasil no exercício pleno de sua soberania - como o dever constitucional de conferir prevalência aos direitos humanos nas relações internacionais (princípio fundamental consagrado no artigo 4, II da Constituição Federal). O desrespeito aos parâmetros internacionais e constitucionais resulta na ameaça à vida e à integridade de comunidades vulneráveis.

A censurável reação do Brasil mostra-se também incompatível com sua crescente responsabilidade internacional, na qualidade de ator global empenhado no aperfeiçoamento do multilateralismo e na democratização das instâncias decisórias internacionais.

É emergencial resgatar a coerência, a consistência e a integridade da política externa brasileira em matéria de direitos humanos, em defesa das vítimas de graves violações, reconhecendo a importância da cooperação com o sistema interamericano, endossando a credibilidade das organizações internacionais e fortalecendo o multilateralismo para a afirmação do estado de direito internacional.

Flávia Piovesan é professora da PUC-SP

O Globo, 19/05/2011, Opinião, p. 7

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