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Carta cidadã é realidade distante para minorias

O Globo, País, p. 3
30 de Set de 2013

Carta cidadã é realidade distante para minorias
Apesar dos avanços garantidos pelos direitos individuais, Constituição ainda não é aplicada de forma igualitária para todos os brasileiros

Carolina Benevides e Karine Rodrigues

A afirmação da dignidade humana como valor constitucional, por meio da garantia de uma série de direitos individuais, é unanimidade na análise sobre os avanços surgidos com a Constituição de 1988. Após duas décadas de ditadura, a conotação humanista e democrática da chamada Carta Cidadã é destacada. Passados 25 anos, o seu legado é comemorado, mas, segundo especialistas, os direitos ainda precisam ser garantidos a todos. Para eles, alguns grupos, como presidiários, moradores de favelas e índios, aguardam para ter suas prerrogativas reconhecidas, embora a Constituição diga que ninguém será submetido a tratamento desumano e degradante. Porém, os presídios estão superlotados: há 548 mil presos para 310 mil vagas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
- A partir da Constituição de 1988, não é só o governo que importa. Homens e mulheres foram igualados, as ideologias passaram a ser respeitadas, a união estável entre homem e mulher foi reconhecida - observa o professor de Direito da PUC-SP Gilberto Haddad Jabur.
- Ainda hoje é como se o direito não valesse para todos. A desigualdade persiste, ainda que a Constituição se preocupe muito com a igualdade - diz Daniel Sarmento, procurador da República e professor da Uerj. - Nos presídios, dignidade é história da carocinha. E o direito da minoria não pode depender da maioria. Se a sociedade acha que os presos não têm direitos, o Judiciário tem que agir.
Para o constitucionalista Ragner Vianna, a Carta foi uma "conquista histórica" em relação à igualdade:
- A Constituição só se preocupava com o poder do Estado em relação ao particular. Em 88, passa a se preocupar com os direitos particulares. Antes, o mais forte tinha chance de explorar o mais fraco. Agora, as relações se tornaram mais equilibradas. No entanto, sabemos que ainda há privilégios. Todos devem ser tratados de forma igual pela lei. Mas, por exemplo, não é a lei que vai garantir salários iguais para homens e mulheres. A imposição legal não vai resolver a questão.
O jurista Dalmo Dallari diz que a Carta afirmou os direitos humanos em dupla perspectiva: além das garantias individuais, foram incluídos os direitos sociais, econômicos e culturais. Destaca ainda as formas de participação franqueadas à população: além das emendas populares submetidas à Constituinte, a Carta permite projetos de lei por iniciativa popular.
- Hoje, temos dois exemplos muito expressivos da importância dessa inovação: um deles foi a Lei Maria da Penha e o outro, a Lei da Ficha Limpa - afirma Dallari, citando como pontos relevantes a criação da Defensoria Pública e do Ministério Público.

"Falta muito para atingir o ideal"

Foi também a Constituição de 1988 que transformou o racismo em crime inafiançável:
- A lei veio para botar freio. Se formos medi-la pela sanção, podemos deturpar a realidade achando que muitas pessoas não são presas. Mas será que o racismo continua sendo praticado do mesmo jeito que era antes da Constituição? Estamos longe do ideal, mas houve avanço.
Universitária, Abigail Ekanola, de 19 anos, nasceu quando o racismo já era considerado crime inafiançável, mas conta ter crescido sendo chamada de "macaca" e "cabelo duro". Única negra de sua turma de Direito, lembra que uma professora criticou as cotas raciais na sala de aula, pois permitiriam que "estudantes sem capacidade entrem na universidade e se tornem péssimos profissionais":
- A Constituição é linda, mas falta muita coisa para atingir o ideal. Acho que ficaram mais quietos por causa da lei, mas creio que diminuiria muito o racismo se as pessoas passassem a nos enxergar como capazes.
Mudanças aconteceram também dentro de casa. Desde 1988, casais heterossexuais podem assinar contrato de união estável. Foi o que fizeram o arquiteto Odilon Terzella e a empresária Sandra Vergara, juntos há mais de 25 anos.
- A burocracia para casar nos desanimava. Começamos a pensar que união estável era mais prático e queríamos uma prova de que construímos uma vida juntos - conta Sandra.
O STF reconheceu o mesmo direito aos homossexuais, mas sem haver emenda constitucional. Ainda que a lei esteja na Constituição, isso não garante que a conduta será respeitada e a norma, aplicada. Um exemplo é o levantamento do CNJ sobre superlotação e insalubridade nos presídios. Mensalmente, o setor de fiscalização do sistema carcerário e de execução de medidas socioeducativas do CNJ recebe, em média, 245 reclamações e denúncias, até de tortura.
- Ainda há claro descumprimento de direitos dos presos. Prevalece uma mentalidade associada ao olho por olho, dente por dente. A gente precisa avançar; diante de condições desumanas em que essas pessoas vivem, elas saem das prisões pior do que entram e voltam a cometer crimes - avalia o conselheiro do CNJ Guilherme Calmon.

O Globo, 30/09/2013, País, p. 3

http://oglobo.globo.com/infograficos/constituicao-25-anos/?indice_aba=4…

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