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Belo Monte foi tratada na marginalidade

O Globo, Razão Social, p. 4-5
Autor: VILLAS-BÔAS, André
04 de Mai de 2010

Belo Monte foi tratada na marginalidade
Indigenista que participa das discussões diz que a sustentabilidade do projeto não foi considerada

Entrevista / André Villas-Bôas, coordenador do ISA

À frente de um programa do Instituto Socio Ambiental (ISA) que desenvolve inúmeros projetos no Rio Xingu desde 1995, o indigenista André Villas-Bôas acompanha, do lado dos índios, a usina de Belo Monte desde que ela se chamava Kararaô. Há mais de vinte anos, quando o então governo Sarney anunciou que pretendia aproveitar as águas do Xingu para gerar energia, os índios, donos de metade daquele território, protestaram porque não tinham sido ouvidos. O governo recuou. Hoje, novamente, os índios estão se sentindo menosprezados e voltam a tentar embargar a obra. Mas Villas-Bôas não está otimista. Segundo ele, fazer ou não a obra se tornou uma questão partidária, com implicações que pouco têm a ver com o estrago social e ambiental que a hidrelétrica vai causar. Nesta entrevista, o indigenista denuncia, sobretudo, a insustentabilidade da obra: "A questão da sustentabilidade é centralizada, não é mais transversal".

Amelia Gonzalez
amelia@oglobo.com.br

O Globo: O ISA fez um vídeo (está no site da ONG) que mostra como os índios se mobilizaram em 89 para embargar a obra, que naquela época se chamaria Usina Kararaô. Você acredita que eles terão força para embargar Belo Monte agora?

André Villas-Bôas: Eles estão tentando, ficaram muito abalados com o leilão (do dia 20 de abril). Cada um está interpretando de um jeito, tentando se articular, achar uma linha comum. Tem muito assédio, muita desilusão, desinformação. Se vão conseguir fazer algo, o tempo dirá. O processo ainda está no começo, vai demorar ainda uns três, quatro meses.

O Globo: A história de Belo Monte é antiga...

Villas-Bôas: Sim, a briga é antiga, remonta a 1989, quando o governo Sarney anunciou o aproveitamento hidrelétrico do Xingu com várias barragens. Não houve consulta aos índios, eles fizeram solicitação de informação, na sequência articularam um grande encontro em Altamira, que aconteceu dois meses após a morte de Chico Mendes. Naquele momento, Sarney dependia de recursos externos para fazer a obra, a manifestação teve repercussão e o governo recuou. Em 2008, o presidente Lula pôs novamente Belo Monte em pauta, fruto de uma revisão que ocorreu nos outros governos, e ela aparece como uma obra de engenharia perfeita, retomando a questão do aproveitamento hidrelétrico do Xingu.

O Globo: O que há de novo no atual projeto?

André Villas-Bôas: A questão da construção de um canal desviando o curso do rio, diminuindo o tamanho da represa, incluindo a vazão do curso dágua, não só a enchente. Ou seja: haverá o ressecamento do rio, num pedaço de quase 130 quilômetros.

O Globo: É o espaço chamado de Volta Grande do Xingu não?

André Villas-Bôas: Sim, a obra vai mexer com tudo: rio acima está colocada a questão da enchente, afetando Altamira, causando desalojamentos nos bairros periféricos. Os moradores vão perder as praias, que é uma referência no modo de vida da cidade no verão.
Do outro lado, a questão é mais contundente, mas está sendo minimizada: a vazão do rio. Ela é central para a sustentabilidade do projeto, seja no sentido ambiental, seja no sentido econômico. Ao se tomar a decisão de que não se iria definir o hidrograma (estudo que relaciona a vazão no tempo) previamente, o fato já estava consumado.

O Globo: E por que está questão não foi tão divulgada??

André Villas-Bôas: Remonta a um cacoete que eu acho dramático em relação a obras desse porte: o estudo de impacto foi feito por uma empresa que pertencia às empresas construtoras. Portanto, a sociedade brasileira não tem informações de instituições isentas que possam colocar qual é a situação socioambiental daquela região. Se esta conta for colocada dentro do projeto da Usina, talvez se chegue à conclusão de que o empreendimento é inviável.

O Globo: No vídeo do ISA, os índios dizem que não foram ouvidos, mas o presidente da Funai esteve presente nas audiências. O que houve?

André Villas-Bôas: A Funai conhecia o hidrograma e aceitou este estudo com este nível de indefinição. Ela esteve nas áreas, fez uma visitação rápida, com técnicos de Brasília sem tradutores, sem testemunhas. Eu desafio o presidente da Funai, que é um antropólogo, que sabe que o Brasil é signatário da OIT - que nos obriga a fazer uma consulta informada - a me dizer se o que houve lá foi isso. A Funai prevaricou nessa história, pode até ter uma defesa jurídica, mas moralmente não tem defesa.

O Globo: O que acha que pode acontecer?

André Villas-Bôas: A insegurança está instalada, o impacto existe, e o governo fica tentando lidar com o maniqueísmo, dizendo que as ONGs estão manipulando os índios. Ou então, ele ridiculariza a sociedade civil, dizendo que nós não temos um estudo para dar solução energética. Ora, se o governo gastou R$ 300 milhões nesse estudo, como quer que a sociedade, com seus parcos recursos, produza uma solução energética? A situação saiu do bom senso, virou partidária, eleitoral, e entra na irracionalidade do contexto, não se trata mais de discussão técnica. O governo quer viabilizar tudo antes do processo eleitoral, e aí fica difícil o cenário.

O Globo: Você é contra as usinas hidrelétricas?

André Villas-Bôas: Não, mas é importante, numa obra como essa, ter em mente que a questão da sustentabilidade (que envolve o econômico, o social e o ambiental) é uma questão centralizada, não é mais transversal. Belo Monte foi tratada na marginalidade, sem levar em conta as questões socioambientais implicadas. É esse o debate que tem que ser colocado.

O Globo: Por que os índios têm que ser ouvidos?

André Villas-Bôas: Veja bem: a região tem 51 milhões de hectares, 28 milhões são áreas protegidas que incluem unidades de conservação e áreas indígenas. Eles são os donos e têm uma relevância nessa decisão que está sendo minimizada. Tudo bem, a sociedade precisa de energia, mas o governo apostou numa situação que fez chegar a um momento de "ou é Belo Monte ou é a morte, o apagão".

O Globo: Qual seria a solução para que a sociedade não fique sem energia e o meio ambiente não sofra?

André Villas-Bôas: É um conjunto de coisas articuladas, de estratégias que possam fazer com que a gente não precise barrar todos os rios da Amazônia. Tem que avaliar quais são os rios barráveis, não sou contra barrar os rios, mas tem que ter uma ponderação, estudos. Eu quero um governo que avalie as possibilidades hídricas, atômica, eólica, solar, fazendo uma combinação de bom senso, procurando eficiência da transmissão energética. O governo tem obrigação de fazer isso, é uma covardia transferir esse ônus para as organizações civis.

"A situação saiu do bom senso, virou partidária e eleitoral e entra na irracionalidade do contexto, não se trata mais de discussão técnica. O governo quer viabilizar tudo antes do processo eleitoral, e aí fica difícil o cenário"
André Villas-Bôas

O Globo, 04/05/2010, Razão Social, p. 4-5

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