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Após protesto dos indígenas, Funai exonera coordenador regional do Vale do Javari

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br
Autor: Elaize Farias
25 de Mar de 2016

A Fundação Nacional do Índio (Funai) decidiu atender a principal reivindicação dos indígenas Matís, Marubo, Kanamari, Mayoruna e Kulina, da Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas, e exonerou nesta quinta-feira (24), conforme publicação no Diário Oficial da União, o servidor Bruno da Cunha Araújo Pereira do cargo de Coordenador Regional do Vale do Javari, função que ocupava havia dois anos. Antes, ele foi coordenador regional do Vale do Juruá, em 2011, quando ingressou na Funai.

No dia 19 de janeiro, as lideranças Matís expulsaram Bruno Pereira da sede da Coordenação Regional do Vale do Javari, em Atalaia do Norte (a 1.338 de Manaus), na fronteira com o Peru. Elas acusaram o servidor de dividir as lideranças, desvirtuar a função de indigenista, ser arrogante e ter desrespeitado e ameaçado o povo Matís durante o ápice do conflito interétnico entre a etnia e os índios isolados Korubo. Os indígenas disseram também que Pereira não soube intermediar a pacificação entre os dois grupos.

Segundo a Funai, o conflito interétnico na Terra Indígena Vale do Javari aconteceu no dia 5 de dezembro de 2014, quando índios isolados Korubo mataram as lideranças Matís Damë e Ivã Xukurutá, da aldeia Todowak. Na mesma ocasião, disse a fundação, os Matís revidaram o ataque e mataram com arma de fogo oito índios isolados Korubo, além de ferirem mais três deles.

Os índios Matís pediram ao coordenador Bruno Pereira e ao Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, Carlos Travassos, para continuarem a aproximação com os índios Korubo e a instalação de bases de monitoramento e segurança nas aldeias para evitar mais conflitos com os isolados, mas não foram atendidos. Segundo os Matís, Pereira continuou os intimidando por causa das mortes dos Korubo, ameaçando chamar a Polícia Federal e o Exército.

Na versão de Travassos, os Matís formalizaram um contato com os índios Korubo por meio de coerção no dia 26 de setembro de 2015. "Lembremos que o mesmo grupo Korubo sofreu um ataque de revide dos Matís menos de um ano antes. Nesse contexto, o desejo dos Matís em terem os Korubo junto não se sobrepôs ao desejo dos Korubo em saírem dali. Jamais pactuaríamos com isso", disse o coordenador da CGIIRC.

Com a sede da Funai em Atalaia do Norte ocupada, a Funai enviou no dia 5 de fevereiro o diretor de Proteção Territorial, Walter Coutinho, para negociar o fim do protesto, mas ele não teve sucesso nas reuniões. Coutinho optou por afastar Bruno Pereira por três meses da coordenação por motivo de saúde, sugestão que não foi aceita pelas lideranças.

No dia 23 de fevereiro, as lideranças desocuparam a sede da fundação após o presidente João Pedro Gonçalves prometer que iria exonerar o coordenador até o fim de março. Mas, antes de assinar o decreto de exoneração, o presidente causou um constrangimento para o povo Matís que quase colocou as negociações da pacificação em nova rota de conflito.

O presidente João Pedro esteve reunido com mais de 200 lideranças indígenas no dia 04 de março. Quatro dias após o encontro, ele assinou uma carta de repúdio contra um grupo de índios da etnia Matís por terem ameaçado colaboradores e agredido um médico do Distrito Sanitário Indígena (Dsei) Vale do Javari, do Ministério da Saúde. O repúdio provocou uma reação no movimento indígena nacional e causou revolta em indigenistas. Os indígenas formalizaram denúncia contra a Funai a respeito a nota de repúdio, encaminhando uma carta à relatora especial da Organizações das Nações Unidas (ONU) para povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, durante sua passagem pelo Brasil, encerrada no último dia 17.

Desde o início do protesto no Vale do Javari, a agência Amazônia Real tentou várias vezes ouvir o ex-coordenador regional Bruno Pereira sobre as acusações dos indígenas, mas ele preferiu não se pronunciar. Uma manifestação pública de apoio ao ex-coordenador ocorreu por meio de uma carta, divulgada no dia 1o de fevereiro e assinada por funcionárias da Coordenação Vale do Javari. A presidência da Funai também não respondeu às perguntas feitas ao longo da cobertura do protesto feita pela reportagem relativas ao posicionamento de Bruno Pereira.

Em defesa de Pereira, o coordenador Carlos Travassos em entrevista à reportagem disse que "é importante deixar bem claro que o Bruno não ameaçou os Matís", durante o contato de 2015. "Como coordenador, ele tinha consciência de seu dever institucional. Em diálogo comigo, deixei claro ao coordenador que, se houvesse dentro daquele contexto ameaça de violência aos servidores da Funai ou aos Korubo, no intuito de impedi-los de realizar a mudança do acampamento Korubo, acionaríamos as forças policiais competentes e solicitaríamos a aplicação da legislação federal vigente, empreendendo uma intervenção para pôr fim ao conflito. Nossos servidores estavam lá para salvar e proteger vidas, e não o contrário", disse Travassos, em entrevista exclusiva dada anteriormente.

Marubo diz que diálogo vai voltar

Procurado para falar sobre a saída de Bruno Pereira, o indígena Marcelo Marke Matís, principal liderança da mobilização dos indígenas, não se manifestou. Ele preferiu falar sobre a audiência que terá nesta segunda-feira (28), com o presidente da Funai, em Brasília, acompanhado de outras duas lideranças indígenas do Vale do Javari, Clóvis Marubo e Paulo Marubo.

Em entrevista anterior dada à Amazônia Real, Marke Matís falou que os indígenas pediam a saída de Pereira porque ele não soube intermediar o conflito da etnia com os isolados Korubo do rio Coari.

"Bruno sempre gritou com os indígenas. Desrespeitou os velhos. O povo Matís não aceita isso", afirma. Ele também negou que o conflito interétnico (que resultou na morte de ao menos oito índios Korubo e dois Matís em dezembro de 2014, quando o conflito começou) tenha sido causado por briga por território, como afirmou Carlos Travassos, e sim por problemas internos entre os próprios Korubo em disputa por mulher.

Para Clóvis Marubo, a decisão de João Pedro Gonçalves em exonerar Bruno Pereira foi acertada. "Os povos indígenas do Vale do Javari estão contentes com a decisão do presidente da Funai. Agora o diálogo vai voltar. Esperemos que ele seja direto com o presidente. A exoneração do Bruno vai servir para se pensar em um novo momento de trabalho com o órgão indigenista, com maior presença do movimento indígena na criação do comitê gestor", disse Clóvis Marubo, uma das principais lideranças do movimento indígena do Vale do Javari.

A Funai ainda não divulgou quem será o substituto de Bruno Pereira. Durante o protesto realizado entre janeiro e fevereiro deste ano, os indígenas indicaram para ocupar o cargo os indígenas Manoel Chorimpa, vereador em Atalaia do Norte, e Darcy Marubo, atualmente funcionário da Fundação Estadual de Índio (FEI), do governo do Amazonas, e que foi criada após a extinção da Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (Seind) pelo governador José Melo (Pros).

Em nota divulgada nesta sexta-feira (25), a Associação Indígena Matís (Aima), agradeceu o apoio recebido à manifestação. Na nota, os indígenas Matís lembram do período do contato com servidores da Funai, em 1976, e de como essa aproximação causou doenças e retiradas de suas comunidades tradicionais para outras áreas do Vale do Javari. Os Matís também elogiam João Pedro Gonçalves, por ele, ter "ouvido os indígenas e ter reconhecido os erros cometidos pelos servidores do órgão que vem se arrastando ao longo do tempo".

"(Considero) o movimento indígena como uma única família, que essa família tem resistência de luta em prol dos povos indígenas do Vale do Javari, que é um grande exemplo para os jovens que vão continuar a luta na defesa dos seus povos. Estamos saindo com mais uma vitória", finaliza a carta.

Viagem a Brasília

Na próxima segunda-feira (28), Marcelo Marke Matís estará em Brasília junto com outras duas lideranças do Vale do Javari, Clóvis Marubo e Paulo Marubo, a convite do presidente da Funai, João Pedro Gonçalves. Paulo Marubo é presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e Clóvis Marubo é considerado uma liderança histórica do movimento indígena naquela região.

Segundo Marke, o convite foi feito após a divulgação da nota de repúdio no dia 8 deste mês na qual a Funai dizia que grupo de Matís havia agredido um médico na Base de Proteção Etnoambiental da Funai, que fica na Terra Indígena Vale do Javari. Para Marke Matís, a repercussão negativa da nota, criticada por lideranças do movimento indígena do Amazonas e pelo sertanista Sidney Possuelo, principal referência indigenista em índios isolados, tenha motivado a manifestação de João Pedro.

"O João Pedro ligou para mim, disse que queria conversar. Ele afirmou que não queria briga de Funai contra Matís. Falei: 'quem começa são vocês. Vocês que estão desrespeitando e discriminando o povo indígena'. Depois tem uma guerra e o culpado é você mesmo'. Falei assim para ele", contou Marke Matís, que não aceitou viajar sozinho a Brasília para a conversa e sugeriu que fosse acompanhado.

Segundo Marke, a Funai também convidou outras duas lideranças, Bonifácio Baniwa, presidente da FEI, e Nara Baré, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), mas a Amazônia Real não conseguiu confirmar essa informação.

Clóvis Marubo espera que a audiência com João Pedro Gonçalves seja o momento para reiterar as reivindicações apresentadas durante a visita ele à Atalaia do Norte no último dia 4. "Não sabemos se ele chamou para pedir desculpas ou se retratar (a respeito da nota de repúdio). Se for para se retratar e pedir desculpas, não é o momento. A Funai precisa atender nossos pedidos, que estão acima de tudo. Não dá para dizer 'desculpa aí e passar a mão dos indígenas'. Queremos que ele atenda os itens da Carta. Queremos resolver e nós agradecermos", afirmou.

A nota de repúdio da Funai contra o grupo de indígenas Matís causou revolta entre os indígenas do Vale do Javari e provocou desconforto, surpresa e indignação entre lideranças de etnias de outros territórios e de indigenistas consultados pela Amazônia Real.

O sertanista Sidney Possuelo disse que ficou "chocado" com a nota. "Essa nota de repúdio ameaça os povos indígenas brasileiros. O presidente da Funai [João Pedro Gonçalves ] não está aí para ameaçar índio nenhum. Ele fala em abrir um inquérito para punir os Matís, isso é um absurdo. Ele tem que fazer uma ameaça para o invasor, o madeireiro, o garimpeiro, para os que roubam as terras dos índios, e não fazer uma ameaça para os povos indígenas", afirmou em entrevista à Amazônia Real.

Lideranças indígenas ouvidas pela reportagem também se disseram surpresas, como foi o caso de Nara Baré, coordenadora executiva da Coiab. "É a primeira vez que a Funai lança uma nota de repúdio pública contra um povo indígena do país, no caso contra os Matís. Isso é estranho vindo de um órgão que deve proteger os indígenas. Não ficou claro se esta nota é para tentar defender o povo Korubo. Não está uma posição clara sobre o que aconteceu", afirmou ela.

Para Clóvis Marubo, o conteúdo da nota mostrou a incapacidade de funcionários da Funai para lidar com situação de conflito interétnico.

"Pessoas que concordam com esta nota colocam a gestão do atual presidente da Funai em risco. Pode causar problema para ele. Não se pode desafiar um indígena dessa forma. Para muitos povos, como no Vale do Javari, isso pode ser entendido como guerra. É um grande insulto", afirmou.

Lideranças querem abertura de diálogo

Clóvis Marubo elogiou a decisão de João Pedro Gonçalves. O presidente da Funai havia se comprometido em atender os indígenas até o final deste mês durante uma tensa reunião ocorrida no dia 4 de março em Atalaia do Norte, diante da presenta de mais 200 indígenas.

"Os indígenas do Vale do Javari acharam que essa exoneração foi uma grande consideração que o presidente da Funai teve com eles. Vão trabalhar agora em uma proposta que já foi apresentada na carta de reivindicação para o presidente, quando ele esteve aqui. E que esses itens da Carta serão discutidos. Esperemos que o diálogo seja agora de uma forma aberta e que favoreça todos os indígenas do Vale do Javari. Os isolados, os de recente contato e os contatados. Até agora, os índios vinham sofrendo nas mãos de funcionários que não tinham compromisso", afirmou Clóvis Marubo.

A carta a que se refere Clóvis é um documento com 14 reivindicações nas áreas de segurança, fiscalização e educação, elaborada no dia 02 de março, em assembleia das lideranças da TI Vale do Javari. A carta também pedia a saída de Bruno Pereira.

Entre as reinvindicações, eles pedem a criação de uma Coordenação Técnica Local (CTL) no rio Branco, dentro da Terra Indígena Vale do Javari, com estrutura e condições de fiscalização de monitoramento dos índios Korubo e Matís. Para coordenar a CTL no rio Branco, eles indicaram o indígena Binã Makwananté Matís.

As lideranças também querem a criação de uma CTL de vigilância no Rio Batan, onde vivem os índios Mayoruna. Segundo os indígenas, a área tem sido alvo de invasão de pessoas vindas do Estado do Acre, da região do município de Cruzeiro do Sul, colocando em risco os grupos de índios isolados que vivem na região.

Na carta encaminhada ao presidente da Funai, a Univaja diz que a Terra Indígena Vale do Javari tem mais de 12 povos, sendo que seis são contatados. Há 37 referências de grupos que vivem em isolamento e que não querem contato com a sociedade. "Esta área, localizada na tríplice fronteira, precisa de implantação de uma política de segurança nacional, com estratégia de ações efetivas e eficazes", diz trecho da carta.

Novo coordenador deve ser indígena

Segundo a liderança Marubo, é interesse que dos povos do Vale do Javari que o novo coordenador seja um indígena. Para ele, "não há possibilidade da Funai funcionar se não tiver um indígena".

"Quando os não indígenas assumem, sobe o poder para a cabeça deles. Usam esse poder para intimidar e também para fazer divisão entre nós. Os indígenas não. Eles entendem a diversidade do Vale do Javari. Sabem como pensam os Matís, como pensam os Marubo, como pensam os Mayoruna, como pensam os Kanamari e os Kulina. Quando estão no poder, os brancos vão para a área e voltam correndo, gastam litros de gasolina, não resolvem e trazem relatório mentiroso", disse Clóvis Marubo.

Clóvis Marubo reconhece a dificuldade de coordenar uma área diversa e gigantesca e que, por este motivo, será preciso continuar com a união. "Vamos corrigir se estiver fazendo errado. A pessoa precisa estar aberta ao diálogo, buscando melhorias e sempre ouvir o que as lideranças indígenas acham", afirmou.

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