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Água e lixo não se misturam

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: PESCE, Jorge
01 de Out de 2006

Água e lixo não se misturam

Jorge Pesce

Nos intervalos da programação da Rede Globo gerada para parabólicas, somos brindados por filmetes produzidos por suas várias afiliadas que mostram um Brasil belíssimo, com paisagens que nos enchem de orgulho da nacionalidade. Entre estas, chama a atenção o Aqüífero Guarany, tão pouco conhecido da maioria da população brasileira.

Com seu 1,2 milhão de quilômetros quadrados de área total, dos quais 70% sob território brasileiro, tem um volume de água aproveitável capaz de abastecer toda a população brasileira por séculos. Dádiva da Natureza que contribui em muito para que nosso país detenha as maiores reservas de água doce do planeta, cerca de 15%.

Após o deslumbramento vem a indagação: estando este enorme manancial situado no subsolo de sete estados brasileiros - RS, SC, PR, SP, GO, MT e MS - que têm populosas cidades e, em conjunto, são detentores da maior área cultivada e do maior parque industrial do país, que cuidados vêm sendo observados para evitar a contaminação destas águas por infiltração de defensivos agrícolas, resíduos industriais e, principalmente, lixo urbano?

Estamos no dia de mais uma eleição e pouco ou nada se fala sobre gestão de resíduos urbanos. Raros candidatos citam, de passagem, o problema quando tratam de saneamento básico. Embora a gestão dos serviços de limpeza pública seja atribuição constitucional dos municípios, cujos cargos não estão em disputa na próxima eleição, o estabelecimento de políticas e diretrizes, o licenciamento e a fiscalização cabem aos estados, assim como é prerrogativa da União a elaboração de políticas federais e o repasse de recursos financeiros. E o mais importante: serão eleitos os deputados federais que poderão vir a ter o mérito de, finalmente, aprovar um projeto de lei de Resíduos Sólidos que tramita na Câmara há inacreditáveis 15 anos!

Enquanto isso, a situação se agrava. Um documento do Ministério das Cidades de 2002 afirma que "o problema da disposição final de resíduos no Brasil continua de uma magnitude alarmante". Das mais de 150 mil toneladas de lixo urbano coletadas diariamente em todo o Brasil (IBGE/PNSB 2000), cerca de 50% são constituídos de matéria orgânica, principalmente restos de alimentos. Considerando-se que o mesmo estudo do IBGE admite que 59% dos resíduos urbanos coletados são destinados de forma inadequada, em lixões a céu aberto, aterros irregulares, rios e alagados, podemos concluir que aproximadamente de 45 mil toneladas de matéria orgânica são simplesmente lançadas sem qualquer tratamento no meio ambiente todos os dias.

A decomposição dessa impressionante massa de matéria orgânica, além das emanações dos hoje tão propalados gases do efeito estufa, gera um fluido denominado chorume, considerado uma das substâncias mais nocivas para o meio ambiente em razão de reduzida biodegradabilidade e alto conteúdo de metais pesados. Trata-se, portanto, de uma substância extremamente poluidora, capaz de infiltrar-se, atingindo as águas subterrâneas e os mananciais. Apenas para que se tenha uma pequena dimensão do problema: um grande aterro da periferia de São Paulo gera em torno de 1,1 milhão de litros de chorume por dia.

O problema é, potencialmente, um dos mais graves a enfrentar e demanda uma abordagem urgente por parte das autoridades de todos os níveis. O Brasil já tem tecnologias ambientalmente corretas para o tratamento e a destinação final do lixo urbano, inclusive seu uso como combustível para geração de eletricidade, alinhadas com as melhores técnicas utilizadas há pelo menos três décadas no Primeiro Mundo, e hoje muito comuns nos países em desenvolvimento. Por outro lado, a engenharia brasileira, que há anos atua com reconhecimento mundial, está plenamente capacitada a contribuir para a solução. Os instrumentos estão disponíveis. Cabe às autoridades priorizar o problema e enfrentar a situação.

Afinal, se água é vida, o que há de mais importante do que protegê-la?

Jorge Pesce é engenheiro químico.

O Globo, 01/10/2006, Opinião, p. 7

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