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Vergonha nacional

CB, Brasil, p.14-15
12 de Mai de 2005

Vergonha nacional
Levantamento da Organização Internacional do Trabalho revela que o país tem 25 mil trabalhadores escravos. Apesar disso, entidade elogia iniciativas do governo para o combate à mão-de-obra forçada
Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
Cento e dezessete anos depois de a princesa Isabel assinar a abolição da escravatura, 25 mil pessoas ainda trabalham, no Brasil, em condições análogas às da escravidão, segundo o relatório Uma aliança global contra o trabalho forçado, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O documento, lançado simultaneamente em Brasília e Genebra, é o primeiro levantamento quantitativo realizado pela entidade, que utilizou dados do Ministério do Trabalho e Emprego e de organizações não-governamentais. Apesar do número expressivo de cativos, o Brasil foi citado como exemplo pelas estratégias de combate à mão-de-obra forçada. Há dois anos, as ações de erradicação intensificaram-se, com a criação de um plano nacional e da lista suja”, onde são divulgados os nomes dos proprietários de terras onde há trabalhadores escravos.
No período de 2003 a 2004, foram resgatados mais trabalhadores que todos os anos anteriores”, comemora Patrícia Audi, coordenadora do projeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT. O Brasil é referência mundial pelas ações implantadas e, ao lado do Paquistão, foi o primeiro país a lançar um plano de erradicação. No documento da OIT, além do destaque às estratégias de enfrentamento do problema, é feita uma reflexão sobre os motivos que levam trabalhadores à senzala em pleno século 21.
Falta muito para alcançar um verdadeiro consenso sobre as causas estruturais do trabalho forçado”, diz o relatório, que aponta a política agrária e as desigualdades sociais como possíveis motivos. Para o ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo Berzoini, são exatamente essas as raízes da exploração da mão-de-obra forçada no Brasil. Ele admite que é preciso intensificar os programas sociais para combater esse flagelo. Geração de emprego é fundamental, além de outras experiências produtivas que permitam aos trabalhadores produzir, ter renda, sem se submeter à exploração”, afirma.
Miséria
Um estudo realizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela o perfil dos aliciados e confirma que, hoje, o que prende trabalhadores rurais aos grilhões é a miséria. Eles são camponeses que tentam sobreviver com agricultura familiar, pertencem ao sexo masculino, têm de 18 a 40 anos e 80% são analfabetos. Segundo a OIT, os estados que mais exportam mão-de-obra escrava são Piauí e Maranhão, que estão entre as cinco unidades da federação com Índices de Desenvolvimento Humano mais baixos do país – 0,673 e 0,647, respectivamente. No desolamento social em que se encontram, tornam-se isca fácil para os gatos”, intermediários do negócio.
O modus operandi é o mesmo em todo o Brasil. Gatos” procuram por trabalhadores em locais de grande vulnerabilidade. Prometem serviço, muitas vezes até carteira assinada. Fazem adiantamentos de R$ 50 a R$ 100 para manter a família assistida enquanto o agricultor estiver fora. É quando tem início o ciclo da escravidão. Sem saber, ele está assumindo sua primeira dívida. Chegando à fazenda, todo equipamento de trabalho, como foice, chapéu e botas, é anotado no caderno. O trabalhador só pode ir embora se pagar a dívida, mas ele nunca vai ter saldo porque também são contabilizadas as despesas com transporte, alojamento e alimentação. Se insistir em deixar o lugar, ele pode ser morto”, explica Marcelo Campos, coordenador do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego. Para não reconhecer o caminho, geralmente os agricultores recrutados pelos gatos são embriagados antes da viagem.
Ainda que consigam fugir, estão a milhares de quilômetros de casa. Os estados que mais recrutam escravos são Pará e Mato Grosso, locais de expansão da fronteira agrícola. Por trás do crime estão fazendeiros graúdos, que abastecem o mercado interno e exportam para Estados Unidos, Europa e Ásia. Uma pesquisa realizada pela OIT, juntamente com a Ong Repórter Brasil a partir da lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego, onde constam os nomes das propriedades que fizeram uso do trabalho forçado, revelou a cadeia econômica.
Entre as 163 fazendas citadas — dois proprietários conseguiram retirar, na Justiça, seus nomes da lista —, 80% dedicam-se à agricultura e 17% à pecuária. São grandes fazendas do agronegócio, como as produtoras de soja Tupy S/A e Fazenda Vó Gercy (ambas no MT), que vendem para Europa e Ásia.
Promessas
No dia 24 fevereiro de 2003, os piauienses Francisco de Souza Moraes, Antônio Francisco da Silva, Ivan Rodrigues de Sousa e José do Egito Santos procuraram a CPT de Marabá (PA) para denunciar a fazenda Monte Castelo, a 58 quilômetros de Sapucaia, no sul do Pará. Os quatro saíram do Piauí em busca de emprego. Eles estavam em um ponto de ônibus em Sapucaia quando foram abordados por um homem que perguntou se queriam emprego. Ofereceu trabalho na fazenda, onde eles deveriam limpar o campo de juquira (mato selvagem) a R$ 50 o alqueire.
Quando chegaram a Monte Castelo, foram alojados em um barracão que servia de depósito de lixo. Trabalhavam das 6h às 18h, todos os dias da semana. Segundo os trabalhadores, eles eram obrigados a comprar mantimentos na própria fazenda, pois o gerente negava o fornecimento de comida. Quando já não tinham como pagar, receberam carne, arroz e feijão para continuar o serviço. Muitas vezes passaram fome.
No momento que quiseram acertar as contas, o gerente pagou R$ 70 a cada um, mas os mandou de volta ao serviço. Decidiram ir embora, mas os seguranças da fazenda, armados, os impediram. Os quatro conseguiram sair escondidos numa caminhonete que transportava leite. Quando chegaram a Sapucaia, pegaram caronta até Marabá, onde procuraram a Polícia Federal. Encaminhados pela PF à CPT, prestaram depoimento, afirmando, porém, que não sabiam o nome do fazendeiro e nem onde ele morava. Analfabetos, assinaram o depoimento com o polegar.

As equipes são poucas
Em 1995, o governo federal reconheceu oficialmente à OIT que havia exploração da mão-de-obra forçada no país e criou o Grupo Executivo para Combate ao Trabalho Escravo (Gertraf) e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que estabelece ações interministeriais no combate à escravidão.
No ano passado, 2.887 ganharam a liberdade depois de identificados pelos auditores do Grupo de Fiscalização Móvel. Até 2003, eram três equipes. Hoje, são sete, compostas por um coordenador, um subcoordenador e cinco auditores. O número de ações do grupo aumentou de 69 em 2003 para 76 em 2004. Isso é reflexo do incremento no número de equipes”, acredita Marcelo Campos. O coordenador do Grupo de Fiscalização Móvel ressalta, porém, que a quantidade ideal seria dez equipes e reclama das diárias baixas pagas aos auditores, que recebem R$ 60 por dia de trabalho. Eles têm de tirar dinheiro do próprio bolso, porque esse valor não cobre as despesas de hospedagem. Com isso, ficam desestimulados”, afirma.
Para chegar às senzalas modernas, o grupo móvel do ministério precisa receber denúncias. Um dos maiores parceiros é a Comissão Pastoral da Terra, presente em 21 regionais, do Acre ao Rio Grande do Sul. Dom Pedro Casaldáliga (ex-bispo do prelado de São Félix do Araguaia) foi uma das primeiras pessoas a denunciar o trabalho escravo”, lembra Marcelo Campos.
As informações são checadas no Ministério do Trabalho e Emprego e, caso haja fortes indícios da exploração de mão-de-obra forçada, as equipes móveis vão até o local. Entre as investigações e o resgate, passam-se dez dias. São ações muito desconfortáveis, geralmente o acesso às fazendas é dificílimo”, conta Campos. Acompanhados por policiais federais, os auditores verificam a condição de trabalho dos supostos escravos. Não bastam situações degradantes, como alojamentos precários e desrespeito às leis trabalhistas, para se configurar trabalho forçado. O que caracteriza a exploração da mão-de-obra forçada é a coerção e o cerceamento da liberdade”, explica Patrícia Audi. (PO)

Flagelo no Maranhão e Piauí
Os dois estados onde há maior aliciamento de mão-de-obra escrava enfrentam também a exploração dos seus trabalhadores rurais. Em S. Raimundo Nonato (PI), existe até associação de viúvas de maridos vivos
Paloma Oliveto
Da equipe do Correio
Em março de 2004, 28 trabalhadores foram resgatados de uma carvoaria em Açailândia, sul do Maranhão. Entre eles, uma mulher e dois adolescentes de 16 e 18 anos. Os escravos libertados procediam da Bahia e de Minas Gerais, nenhum era maranhense. Os gatos trazem pessoas de fora para trabalhar aqui e aliciam pessoas no estado para trabalharem no Pará, no Mato Grosso e em São Paulo”, conta Antônio, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Maranhão, que pede para não ter o sobrenome divulgado por questão de segurança. Aqui, o clima é complicado”, explica, referindo-se às ameaças de morte recebidas por quem denuncia a exploração de mão-de-obra forçada.
O Maranhão só tem uma fonte empregadora: as prefeituras municipais. Os pequenos agricultores não têm onde trabalhar porque são expulsos pelos latifundiários que plantam soja”, diz Antônio. Ele tenta explicar por que, mesmo sabendo da existência de aliciadores de trabalho escravo, muitos camponeses preferem acreditar nas promessas dos gatos” a inchar a periferia dos centros urbanos, onde não há garantia de ocupação. A miséria faz com que eles se sujeitem a qualquer oferta de emprego. Não sabem fazer outra coisa, só trabalhar com terra”, justifica Marta Bispo, coordenadora da frente de combate ao trabalho escravo da CPT.
O movimento da Igreja Católica fez uma parceria com o Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Maranhão para realizar uma pesquisa que vai traçar o perfil da mão-de-obra escrava no estado. Outra iniciativa da pastoral é capacitar professores do ensino fundamental e médio que discutam, na sala de aula, o uso do trabalho forçado. O projeto, chamado De olho aberto para não virar escravo” é realizado juntamente com a Delegacia Regional do Trabalho.
No Piauí, os casos de aliciamento são tantos que, em São Raimundo Nonato, há uma associação de mulheres viúvas de maridos vivos”. Algumas esperam seus maridos há décadas, sem saber se já morreram ou estão em cativeiro”, conta Antônio Carvalho, coordenador regional da CPT. Ele critica os municípios pela ausência de programas que mantenham o homem no campo, sem necessidade de migrar para outros lugares. Não há uma política de reforma agrária efetiva nem programas de geração de renda. As pessoas precisam de terra, semente, subsídios”, diz.
Curiosamente, Barras, uma das cidades onde há mais assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), é também a localidade campeã de aliciamentos de trabalho escravo no Piauí. Não adianta jogar as pessoas na terra como se fossem animais, sem condição nenhuma de cultivo”, critica.
Impunidade
O trabalho escravo não pode ser justificado pela miséria. O problema é a impunidade”, acredita Patrícia Audi, coordenadora do projeto de combate ao trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Embora as fazendas recebam multas milionárias decorrentes das ações civis públicas e coletivas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho – de 1999 foram pagos cerca de R$ 14 milhões – a legislação brasileira é confusa quanto à competência do julgamento das ações penais. Até hoje, nenhum proprietário de terras onde há trabalho escravo foi julgado e condenado.
Sancionada em dezembro de 2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 10.803 altera o Código Penal e estabelece pena de dois a oito anos, além de multa, a pessoas que tenham trabalhadores em condição análoga à de escravo em suas propriedades. Segundo a lei, a condição análoga à de escravo” configura-se quando há trabalho forçado ou jornada exaustiva, cerceamento do uso de meio de transporte, vigilância ostensiva ou retenção dos documentos do trabalhador. O problema é que, como não há definição se quem julga os processos é a Justiça Federal ou a comum, os processos ficam parados”, diz o frei Herni de Roziers, que coordenador da CPT em Xinguara (PA).
O relatório da OIT divulgado ontem ressalta que, em todo mundo, quando os tribunais julgam casos de trabalho forçado as condenações são parcas quando se leva em conta a gravidade do delito”. E diz: Cabe nos perguntar se as leis não são inadequadas, seja porque impõem sanções demasiado leves ou porque não facilitam as ações judiciais dada sua ambigüidade”.
Para o ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, a aprovação da proposta de emenda constitucional que expropria as terras onde há exploração do trabalho escravo seria uma forma exemplar de punição. Aprovada no Senado, a PEC aguarda votação na Câmara. Estou pedindo uma audiência com o deputado Severino (Cavalcanti, presidente da Câmara) para discutir isso e ver se a gente estimula colocar a PEC em pauta”, diz. No dia 19, empresas vão assinar um pacto comprometendo-se a não comprar produtos de produtores que tenham trabalhos escravos. Muitas vezes, sem saber, as empresas consumem produtos da cadeia produtiva do trabalho escravo”, alerta Miranda.

Reparação na justiça
Duzentos cidadãos brasileiros negros planejam entrar na Justiça pedindo reparação, em dinheiro, pelo sofrimento de seus antepassados na condição de escravos. A intenção é buscar indenizações que lhes propiciem acesso a serviços de saúde, educação e moradia. A requisição é baseada em uma ação proposta, na Alemanha, por judeus cujos parentes foram perseguidos pelos nazistas. As 200 pessoas são militantes do movimento negro e vivem em São Paulo. São ligadas a cinco entidades, entre elas a ONG Educafro, que luta pela inclusão de afro-brasileiros nas universidades. Numa primeira etapa, elas serão incluídas em vinte ações coletivas, com dez integrantes cada uma.

Entrevista: Henri Burin de Roziers
"0 trabalho escravo é uma realidade"
Nascido em Paris há 75 anos, o advogado e frei dominicano Henri Burin de Roziers chegou ao Brasil em 1978 para trabalharem Conceição do Araguaia, no Pará. Desde então, tem se dedicado a questões agrárias, como a violência praticada contra pequenos trabalhadores e a mão-de-obra escrava. Segundo Roziers, o agronegócio e as madeireiras impulsionam o trabalho escravo no Pará. Condecorado na França com a Legião de Honra, o dominicano é coordenador regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara (PA), e sofre constantes ameaças de morte - sua cabeça vale R$ 100 mil. Contra sua vontade, o frei anda com um policial militar, designado pelo governo do estado. Em janeiro, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, telefonou a Roziers oferecendo proteção da Polícia Federal. Ele rejeitou.
Correio Braziliense - Porque o Pará, juntamente com o Mato Grosso, é o estado que mais alicia trabalhadores escravos?
Henri Burin de Roziers - Há dois anos, a agropecuária vem crescendo muito no Pará. Além da soja, os frigoríficos abastecem o mercado interno e, para essa atividade, é necessário haver grandes pastos em bom estado. Para limpar a pastagem e fazer as cercas, os fazendeiros recrutam mão-de-obra escrava. Em Terra do Meio, no Pará, estudos recentes mostram que há muito desmatamento por parte de madeireiros, que também empregam trabalhadores escravos.
Correio - O número de resgates de escravos aumentou nos últimos dois anos. Já é possível notar diferenças práticas no Pará?
Roziers - Sim, a quantidade de denúncias que recebemos está menor. A fiscalização do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego foi importantíssima para isso. Mas as equipes são poucas, insuficientes para atender à demanda.
Correio -Como advogado, o senhor acredita que a legislação brasileira é clara quanto à tipificação do trabalho escravo? ROZIERS - Para a Justiça do Trabalho, não há problemas na identificação do trabalho escravo e no pedido de multas e indenização por danos coletivos. Uma fazenda já foi multada em R$ 1,5 milhão. Mas a grande confusão é sobre a competência do processo criminal. Não há definição se a competência é da Justiça Federal ou da comum. Muitos proprietários são presos preventivamente, mas logo conseguem a liberdade porque não são julgados e condenados.
Correio - Como os fazendeiros do Pará têm reagido ao combate à escravidão? Roziers - O Sindicato Rural do Pará já negou a existência do trabalho escravo no estado. Eles sempre vão negar, tentam justificar o impossível. Mas todos na região sabem que (o trabalho escravo) é uma realidade. Por isso a "lista suja' com os nomes dos envolvidos na contratação de mão-de-obra escrava é importante. Ninguém quer ter seu nome manchado. (PO).

CB, 12/05/2005, p. 14-15

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